Cinema cura dores das diferenças
26 de outubro de 2005Para divulgar o novo medicamento da firma Bayer, Johann viaja com seu caminhão de lugarejo a lugarejo do sertão nordestino. Ranulpho, um jovem pobre do Nordeste, o ajuda nas apresentações dos filmes publicitários nas praças das pequenas cidades. Ranulpho precisa do dinheiro para comprar a sua passagem e tentar a sorte no Sul mais rico.
O filme se passa em 1942 e a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial muda o destino dos dois protagonistas.
Cinema, Aspirinas e Urubus é o primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, 42, e foi selecionado, entre os filmes participantes do Festival de Cinema de Cannes 2005, para o Prêmio da Educação Nacional do governo francês.
O júri justificou o prêmio pela "capacidade do filme de mudar nosso olhar sobre o mundo" e pela "recusa dos clichês". Com o prêmio, o governo francês se compromete, nos próximos três anos, a levar pelo menos um milhão de estudantes a ver o filme.
A Bayer não financiou a obra, mas permitiu o uso do nome do seu produto mais famoso. Em novembro, ele estréia no Brasil e, em janeiro próximo, na França, nos Estados Unidos e em oito outros países.
Alemanha imaginária x Alemanha real
Através de uma história real, contada por seu tio-avô, Ranulpho Gomes, o próprio Marcelo Gomes escreveu o roteiro do seu filme, sem mesmo ter visitado a Alemanha.
DW-WORLD conversou com o diretor para saber como ele construiu a sua Alemanha imaginária.
Marcelo Gomes nos chamou a atenção para a tradição de viajantes alemães ao Brasil. Ele leu os relatos deixados por estes viajantes, que desde o descobrimento se interessaram pela nova terrra, escrevendo suas impressões. Através desta visão alemã sobre o Brasil, o cineasta construiu o seu personagem Johann. Antes do início das filmagens, ele visitou a Alemanha. Surpreso por encontrar aquilo que não esperava – alegria e simpatia – o diretor mudou o caráter do seu personagem.
Johann tornou-se um "jovem doce e alegre, um hippie dos anos 40, que não tinha a menor vontade de matar alguém na Segunda Guerra Mundial e, por tal, teve que deixar a Alemanha", explicou o diretor.
"A minha intenção foi fazer um filme que falasse sobre a alteridade. Ranulpho, o personagem brasileiro, é um homem sisudo e fechado, marcado pela dura vida no sertão. Johann, ao contrário, é alegre e gentil. Com esta 'inversão', eu queria desconstruir o estereótipo. Os dois estão na mesma situação e precisam um do outro para sobreviver: um foge da guerra; o outro, da seca. Através da amizade com Ranulpho, Johann consegue interagir com aquela pobre região brasileira. A necessidade obriga Ranulpho a abrir-se. Ele passa a ver Johann não mais como um alienígena, mas como um amigo", acrescenta Marcelo.
Possibilidade e diferença
A narrativa de Marcelo Gomes é praticamente uma fábula pós-estruturalista: a identificação do "eu" vem através do "outro" e, assim, a alteridade fica preservada. A história nos mostra a possibilidade da coexistência de duas culturas sem que elas tenham que se tornar uma só.
O filme é um caso feliz de cinema de autor. Uma produção relativamente barata, que vive da coerência do roteiro e da interação entre cenário e atores. A pequena cabine do caminhão, o ermo e a luz do sertão sem nuvens focalizam a atenção do espectador para a história e os protagonistas.
Para o seu personagem alemão, Gomes queria um ator alemão que falasse português e não conhecesse o sertão. Ele o encontrou em Berlim. O bávaro Peter Ketnath, 32, já trabalhou para Joseph Vilsmaier em And Nobody Weeps for Me, como também para a televisão alemã e francesa.
O baiano João Miguel, 35, o protagonista brasileiro, deveria vir realmente do Nordeste. Ele acaba de ganhar o prêmio de melhor ator do Festival de Cinema do Rio de Janeiro.
O tio, Ranulpho Gomes, faleceu há um mês, em São Paulo. Sua saúde abalada não lhe permitiu ver o filme sobre este episódio de sua vida. Ele nos deixou, porém, uma bela história.