Diante das circunstâncias em que a vida da escritora começou, sua trajetória tem um caráter quase miraculoso. Um dos maiores nomes da literatura brasileira recentemente se tornou também ícone internacional.
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Se consideradas as circunstâncias em que a vida de Clarice Lispector começou, sua trajetória tem um caráter quase miraculoso. Nascida em 10 de dezembro de 1920, numa cidade minúscula da Ucrânia, fugindo de pogroms contra a população judaica do continente eurasiano, chegando ao Brasil com os pais, imigrantes pobres, sem falar a língua – o nascimento e a sobrevivência desta mulher parecem tão excepcionais quanto sua obra. Tinha o mundo contra si, mas ao morrer, aos 57 anos, havia doado à língua portuguesa e à literatura mundial alguns dos textos mais assombrosos do seu século.
Não é literatura para todos, apesar de sua imensa popularidade. Mesmo sua popularidade é um caso estranho, estando entre os poucos autores que geram tanto o entusiasmo de especialistas quanto a paixão dos mais simples leitores. Em sua entrevista já mencionada muitas vezes, ela se refere a uma leitora de 17 anos, que tinha por livro de cabeceira seu romance A Paixão segundo GH (1964), o mesmo livro discutido com profundidade por um filósofo e crítico brasileiro como Benedito Nunes. São dois exemplos do alcance amplo de sua escrita.
O fenômeno em torno de seu nome vinha crescendo desde a publicação da biografia de Benjamin Moser, Why This World: A Biography of Clarice Lispector, lançada em 2009 nos Estados Unidos, seguida de novas traduções para 5 de seus maiores romances – no Brasil, a biografia foi lançada no mesmo ano pela editora Cosac Naify com o título Clarice, uma biografia. Mas o que se viu com a publicação de seus contos reunidos foi espantoso: o primeiro autor brasileiro na capa do New York Review of Books, recebeu resenhas de Los Angeles a Sydney, passando por Londres.
Escritora brasileira para o mundo
Moser acredita que ainda serão necessárias gerações de professores, jornalistas, críticos e leitores falando e escrevendo sobre Clarice Lispector para que ela tenha um papel no cânone ocidental, como Kafka, Joyce ou Woolf. "O que quis fazer primordialmente foi informar as pessoas que a obra de Clarice Lispector existe, tornar seus livros acessíveis em boas traduções, especialmente em minha própria língua. Prover um contexto crítico e biográfico para que ela fosse compreendida. E então deixar que sua obra mesma fizesse seu caminho pelo mundo", disse o biógrafo e tradutor à DW Brasil.
Moser certamente fez sua parte, traduzindo novamente A Hora da Estrela (1977) e coordenando para a editora americana New Directions – além da Penguin, na Inglaterra –, traduções para Perto do Coração Selvagem (1943), A Paixão segundo GH (1964), Água Viva (1973), Um Sopro de Vida (1978) e O Lustre (1946), assim como a edição dos contos reunidos (muito bem traduzidos por Katrina Dodson). Uma parte central da obra de Clarice Lispector está agora disponível a todos os que falam inglês.
Clarice na Alemanha
Com o ímpeto que a Clarice anglófona tomava no mundo e a participação do Brasil como convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt em 2013, a autora foi uma das que receberam mais visibilidade oficial naquele ano na Alemanha. Foram lançados a biografia de Moser e traduções novas para seus dois primeiros romances, com os títulos Nahe dem wilden Herzen, traduzido por Ray-Güde Mertin e Corinna Santa Cruz, e Der Lüster, em tradução de Luis Ruby.
A editora Schöffling & Co. apresentou em 2016 uma nova tradução de A Hora da Estrela, com o novo título Der grosse Augenblick. As novas traduções na Alemanha podem não ter sido recebidas com o estardalhaço que receberam no EUA, mas houve artigos entusiasmados em jornais importantes como o Frankfurter Allgemeine Zeitung e o Süddeutsche Zeitung.
Por décadas, o autor brasileiro mais conhecido no mundo foi Jorge Amado, primeiramente por seus romances engajados na Alemanha Oriental, e mais tarde na Alemanha Ocidental, com o sucesso de Dona Flor e seus Dois Maridos (1966). Nos últimos anos, o sucesso do filme Cidade de Deus catapultou Paulo Lins para o cenário internacional, e Paulo Coelho seguiu sendo o best seller do país.
Nos últimos anos, Clarice Lispector desperta a paixão em novos leitores pelo mundo, assim como conquista novos leitores a cada geração no Brasil. Sobre o legado de Clarice Lispector hoje, uma das maiores autoras brasileiras vivas, Márcia Denser, a autora de O Animal dos Motéis, de 1981, escreveu: "Clarice Lispector jamais foi minha leitura de sustentação, ela não integra meu paideuma composto por Faulkner, Fonseca, Cortázar, Capote. Mas Clarice é uma escritora essencial: você pode não gostar dela, mas Lispector continuará lá, intacta, perfeita como uma laranja pode ser perfeita: nada a acrescentar, nada a tirar."
Grandes nomes da literatura brasileira
Com influência multicultural, autores abordam de temas político-sociais a intimistas e autobiográficos. Nomes como Clarice Lispector, comparada a Kafka, e Paulo Coelho com sua busca espiritual, exemplificam diversidade.
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Mestre do realismo
Vindo de família simples, Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 1839. Começou a carreira literária colaborando com jornais e revistas. Sua obra inclui os clássicos "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Dom Casmurro", romances marcados pelo realismo. Machado de Assis foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) e é considerado o maior escritor brasileiro.
Foto: Marc Ferrez/Instituto Moreira Salles
Representante do Nordeste
Nascido na Bahia em 1912, Jorge Amado foi traduzido para 49 idiomas e publicado em mais de 50 países. Entre seus romances mais conhecidos, estão "Capitães de Areia" e "Gabriela, Cravo e Canela", que retratam a realidade social baiana, marca da obra do autor. Foi membro da ABL, recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra e o título de doutor honoris causa pela Universidade de Sorbonne.
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Kafka brasileira
A ucraniana Clarice Lispector chegou ao Brasil com um ano de idade, em 1926. Após o primeiro romance, "Perto do Coração Selvagem", vieram clássicos como "A Hora da Estrela e "A Paixão Segundo G.H.", marcados pela temática existencial e psicológica. Traduzida para diversos idiomas, foi descrita como o Kafka da ficção latino-americana no "New York Times" e biografada pelo americano Benjamin Moser.
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Uma pedra no meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade, nascido em 1902, foi cronista, contista e tradutor, mas foi como poeta que ganhou fama. Sua poesia divide-se em fases: irônica ou gauche; social; filosófica; nominal; e das memórias. Um de seus versos mais célebres é "Tinha uma pedra no meio do caminho", do polêmico poema "No meio do caminho". O influente poeta brasileiro foi traduzido para mais de dez idiomas.
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Repórter de guerra
O escritor, professor, sociólogo, engenheiro e repórter Euclides da Cunha nasceu em 1866. Como correspondente do jornal "O Estado de S. Paulo", cobriu a Guerra de Canudos, travada entre o Exército e sertanejos no interior da Bahia. A partir daí nasceu sua obra-prima: "Os Sertões". O livro de cunho sociológico foi traduzido para vários idiomas, entre eles alemão e inglês.
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Conhecedor do sertão
Guimarães Rosa, nascido em 1908, ingressou na faculdade de Medicina com apenas 16 anos. Foi como médico que conheceu a realidade dos sertanejos, retratada em seus contos, novelas e no romance “Grande Sertão: Veredas”. Sua coletânea de contos “Sagarana” é considerada um dos volumes mais importantes da ficção brasileira do século 20. Pelo conjunto de sua obra, Rosa recebeu o Prêmio Machado de Assis.
Foto: Ed. Nova Fronteira
Ventos do sul
Nascido em 1905, Erico Verissimo desenvolveu já na infância o interesse pelos clássicos da literatura. Nos anos 1940, lecionou literatura brasileira nos EUA e começou a escrever a obra-prima "O Tempo e o Vento". A trilogia, que tem como pano de fundo a história de seu estado natal, Rio Grande do Sul, levou 15 anos para ficar pronta, virou série de televisão e foi traduzida para vários idiomas.
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Um brasileiro em Berlim
João Ubaldo Ribeiro nasceu na Bahia em 1941. Do nordeste brasileiro, o escritor preocupado com a identidade nacional partiria para o mundo. A carreira literária o levou aos EUA, a Portugal, à Alemanha. Dos 15 meses como bolsista do DAAD, saíram as crônicas reunidas no bem-humorado livro “Um brasileiro em Berlim“. Vários de seus livros foram publicados em alemão, incluindo “Viva o povo brasileiro“.
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Primeira presidente dos imortais
A carioca Nélida Piñon, nascida em 1937, foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras. Formada em jornalismo, teve seu contos, ensaios e romances traduzidos em vários países, inclusive Alemanha, e ocupou cátedras em diversas universidades estrangeiras. Entre os prêmios recebidos, está o Jabuti, pelo livro "Vozes do Deserto", que tematiza a mulher no mundo árabe.
Foto: Divulgação/Editora Record
Versos sujos e melódicos
Ferreira Gullar nasceu no Maranhão em 1930 e vive no Rio de Janeiro. Publicou o primeiro livro de poesia aos 19 anos. Membro do Partido Comunista, foi preso na ditadura e, durante o exílio, escreveu seu livro mais conhecido: “Poema Sujo“. Marcado pelas lembranças da infância, o cotidiano da cidade e a riqueza rítmica e melódica, o livro é considerado um dos mais importantes da poesia brasileira.
Foto: José Olympio Editora/Cristina Lacerda
Entre o mundo árabe e o amazônico
Filho de libaneses, Milton Hatoum nasceu em Manaus em 1952. Formado em Arquitetura, morou em Madri, Barcelona e Paris. De volta à Amazônia, publicou o primeiro romance: "Relato de um Certo Oriente". Já doutor em teoria literária, escreveu "Dois irmãos", trama sobre uma família libanesa que vive em Manaus. Estes e os livros seguintes receberam diversos prêmios e foram publicados em 14 países.
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Sucesso com a busca espiritual
Paulo Coelho, nascido em 1947, iniciou a carreira literária nos anos 1980. Da peregrinação pelo Caminho de Santiago, resultou o primeiro romance de destaque: "O Diário de um Mago". A busca espiritual continuou em "O Alquimista", livro brasileiro mais vendido de todos os tempos e mais traduzido no mundo (69 idiomas). Sua literatura, alvo de polêmica, lhe rendeu dezenas de prêmios e condecorações.