Espancamentos, gás lacrimogênio, dezenas de mortos: colombianos entram em segunda semana de manifestações contra pobreza e abusos dos direitos humanos, enquanto governo minimiza acusações de brutalidade policial.
Anúncio
Em algumas de suas últimas imagens, Lucas Villas é visto dançando em passeatas pacíficas na cidade de Pereira. Num dos vídeos, o universitário diz para a câmera: "Estão matando a gente na Colômbia." Agora ele luta pela própria vida numa unidade de terapia intensiva, após receber oito disparos.
As autoridades afirmam ainda estar à procura dos culpados. Porém muitos manifestantes já veem Villa como símbolo dos protestos manchados por brutalidade policial, com um balanço de pelo menos 24 mortos.
As manifestações contra a pobreza e os abusos dos direitos humanos por toda Colômbia entraram em sua segunda semana, apesar de toda a repressão pela polícia antimotins e o fato de o país estar atravessando a terceira onda da pandemia de covid-19.
"Quão ruim a situação deve estar para a gente estar marchando no meio de uma pandemia?", indaga Jhon Ramirez, numa passeata em Zipaquira, perto da capital, Bogotá. "O vírus passou para segundo plano, porque não aguentamos mais esse governo que não para de nos matar."
Indignação continua
As manifestações de massa deflagradas em 28 de abril por uma reforma tributária impopular se expandiram para cobrir uma lista muito mais longa de insatisfações.
Anúncio
Já no fim de 2019, os colombianos protestavam contra a presidência de Ivan Duque devido à desigualdade extrema, violência generalizada nas zonas rurais e falta de acesso aos serviços de saúde. A crise do novo coronavírus exacerbou alguns desses problemas, e agora mais de 40% da população vive na pobreza.
Na segunda-feira (03/05), o governo rescindiu o controvertido plano tributário que oneraria ainda mais a classe média que se debate com a economia da pandemia. Mas a ira nas ruas não arrefeceu, e um dos motivos é a extensão das queixas, explica Sergio Guzmán, diretor da consultora Colombia Risk Analysis.
"A coisa vai além daqueles que normalmente se encontraria nesses protestos – organizações estudantis, sindicatos de operários e dos transportes: um segmento muito maior da sociedade quer expressar seu descontentamento."
Outro fator que ainda alimenta a indignação é a dureza da reação policial em cidades como Bogotá ou Cali. Tanto grupos internacionais de direitos humanos quanto as Nações Unidas, a União Europeia e os Estados Unidos expressaram apreensão.
A ONG Anistia Internacional compilou e verificou vídeos que mostrariam as forças de segurança usando armas letais, atirando a partir de veículos blindados, espancando manifestantes e disparando gás lacrimogênio a queima-roupa.
A Defensoria do Povo da Colômbia, responsável pela defesa dos direitos humanos, informou que já morreram durante os protestos pelo menos um agente e 23 ativistas, sendo a polícia responsável por 11 dessas mortes.
Colocando a culpa nos manifestantes
Embora até agora Ramirez só tenha participado de protestos pacíficos, os relatos de amigos e as imagens explícitas circulando nas redes sociais lhe têm tirado o sono. O medo de uma ação repressiva por parte da polícia antimotim está sempre em seu subconsciente: "Não nos sentimos protegidos por eles, eles pode se virar contra nós."
O presidente Duque não tem dedicado muita atenção ao problema da brutalidade policial. Em vez disso, se concentra no "vandalismo extremo e terrorismo urbano" dos manifestantes, que bloquearam estradas, incendiaram ônibus e agrediram agentes da lei.
Isso de colocar o ônus exclusivamente nos manifestantes, contudo, não está sendo bem recebido pelo público, segundo Guzmán: "A minimização da violência [policial] pelo governo, sem expressar qualquer tristeza pelos cidadãos que morreram, tem gerado muita indignação."
Ivan Duque está tentando mover-se adiante, apelando por um diálogo entre o governo, o setor privado e a sociedade civil. No entanto, seus críticos temem que isso só resultará numa repetição das infrutíferas conversas de 2019.
Para pôr um fim à crise, o chefe de Estado deveria abordar todas as queixas dos manifestantes, incluindo as acusações de má conduta policial, propõe Guzmán. Caso contrário, provará que não está escutando, "principalmente se a retórica dele continuar a sugerir que quem protesta contra seu governo está agindo ilicitamente".
Cronologia do conflito e do processo de paz na Colômbia
Acordo com as Farc foi alcançado após décadas de luta armada e tensões sociais na Colômbia. País trabalha agora na implementação do pacto e na reintegração de ex-guerrilheiro à sociedade.
Foto: Imago/Agencia EFE
Longo caminho da violência à paz
As décadas de violentas tensões sociais, que chegam ao fim com o novo acordo de paz na Colômbia, têm origem na luta no campo, que opôs trabalhadores rurais e proprietários de terras desde os anos 1920. As hostilidades se intensificaram a partir da década de 1960.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
1940-1950: A Violência
Enfrentamentos sangrentos entre liberais e conservadores provocam milhares de mortes. O assassinato do liberal Jorge Elíecer Gaitán (foto), em 1948, gera protestos que ficaram conhecidos como "El Bogotazo", dando início ao período denominado "La Violencia". Membros do Partido Comunista são perseguidos, o Exército ocupa povoados e reprime os "lavradores comunistas".
Foto: Public Domain
1964: Farc e ELN
São fundadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), contra a concentração de terras, e o Exército de Libertação Nacional (ELN), fruto da radicalização do movimento estudantil e apoiado por adeptos da Teologia da Libertação, que prega a opção pelos pobres. O padre Camilo Torres (foto), guerrilheiro, é morto em combate. O governo colombiano recebe ajuda dos Estados Unidos.
Foto: picture-alliance/AP Photo
1970-1980: M-19 e negociações fracassadas
Surgem outros movimentos clandestinos como o M-19, que protagonizou a trágica ocupação do Palácio da Justiça em 1985 (foto), com mais de 350 reféns. A retomada do prédio pelas Forças Armadas deixa 98 mortos e 11 desaparecidos. O governo abre negociação pela primeira vez com as Farc e o ELN, mas o entendimento fracassa devido ao assassinato do ministro da Justiça.
Foto: Getty Images/AFP
Meados dos anos 80: Paramilitares
Surgem numerosos grupos paramilitares de ultradireita, a serviço de grandes proprietários de terras, contra os ataques rebeldes. Ao longo do tempo, vários desses grupos se envolvem com cartéis de droga. Quatro candidatos presidenciais e numerosos políticos de esquerda são assassinados por paramilitares entre 1986 e 1990.
Foto: Carlos Villalon/Liaison/Getty Images
1989: Desmobilização do M-19
O movimento M-19 entrega as armas em outubro de 1989, optando por disputar o poder como um partido político. Seu líder, Carlos Pizarro, candidata-se a presidente. Em 1990, ele é morto durante a campanha eleitoral.
Foto: picture alliance/Demotix/K. Hoffmann
1996: Esquadrões da morte
Grupos paramilitares se reúnem no movimento Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) e formam "esquadrões da morte" com até 30 mil membros.
Foto: AP
1998-99: Presidente Pastrana tenta negociar
Eleito em 1998, o presidente Andrés Pastrana inicia negociação com as Farc. Conversa também com o ELN (foto) e a AUC. Um vasto território até então controlado pelas Farc, no sul do país, comemora o recuo do grupo. Um massacre interrompe as conversas com a AUC.
Foto: picture-alliance/dpa
2002: Ingrid Betancourt e Álvaro Uribe
Depois que as Farc sequestram um avião, o governo interrompe o diálogo. Em 23 de fevereiro é sequestrada a candidata à presidência Ingrid Betancourt (foto). Álvaro Uribe ganha as eleições em maio, intensifica o combate militar e repudia qualquer entendimento. Ele é reeleito em 2007 e Betancourt, libertada em 2008.
Foto: AFP/Getty Images
2003-06: Recuo dos paramilitares e anistia
Após longas negociações, aproximadamente 32 mil paramilitares da AUC se rendem (foto). Até 2014, cerca de 4.200 deles são julgados por violações dos direitos humanos. Muitos retomam as armas. Em junho de 2005 é aprovada a Lei de Justiça e Paz, uma ampla anistia para membros dos esquadrões da morte.
Foto: picture-alliance/dpa
2007-08: "Falsos positivos"
Políticos de direita, acusados de vínculo com os paramilitares, são detidos em 2007 pela primeira vez. Aliados de Uribe também são atingidos. Em setembro de 2008 é revelado o escândalo batizado de "falsos positivos": entre 2004 e 2008, mais de 3 mil pessoas foram mortas pelo Exército para adulterar a estatística de guerrilheiros eliminados. Centenas de militares foram julgados até agora.
Foto: Jesús Abad Colorado
2012: Iniciados diálogos de paz com Farc
Ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos é eleito presidente da Colômbia em junho de 2010. Dois anos depois, entra em vigor a Lei de Vítimas e Restituição de Terras, para compensar os deslocados pelos combates. Em novembro têm início oficialmente os diálogos de paz entre governo (foto) e as Farc.
Foto: Reuters
2014-15: Santos reeleito e prazo para a paz
Santos se reelege em 2014. O governo colombiano anuncia conversações con o ELN. Enquanto isso, entendimentos com as Farc são interrompidos e reabertos devido a ações militares de ambos os lados. Em 23 de setembro de 2015, em Havana, Santos e Rodrigo Londoño Echeverri (Timochenko), líder das Farc, concordam com a meta de assinar um termo de paz em até seis meses.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Ernesto
2016: Diálogos de paz com ELN
Em 30 de março, Frank Pearl, representante do governo da Colômbia, e Antonio García, chefe da delegação do ELN (foto), anunciam em Caracas o início de um processo formal de diálogos de paz. Em relação às Farc, desacordos levam ao adiamento da assinatura do acordo de paz definitivo, cujo prazo expira em 23 de março.
Foto: Reuters/M. Bello
Junho de 2016 - Dia da paz
Acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc foi finalmente concluído. A decisão foi recebida com entusiasmo tanto pela população do país, como pela comunidade internacional. O cessar fogo definitivo foi assinado em Cuba em 23 de junho com a presença do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e outros presidentes e observadores.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/A. Ernesto
Agosto de 2016 - Acordo histórico
Em 24 de agosto, governo e Farc selaram o acordo final que encerra as negociações de paz realizadas em Havana nos últimos quatro anos. Ele foi assinado pelos chefes das equipes de negociação de ambas as partes, Humberto de la Calle, pelo governo, e Luciano Marín, conhecido como "Ivan Márquez", representando a guerrilha, assim como pelos embaixadores de Cuba e Noruega, fiadores no processo.
Foto: Reuters/E. de la Osa
Setembro de 2016 – Assinatura
Três dias após os líderes das Farc ratificarem por unanimidade o acordo de paz, o documento foi assinado pelo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e pelo número um do grupo armado Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, em Cartagena, em 26 de setembro. Numa cerimônia que lembrou as vítimas da guerra, o líder guerrilheiro pediu perdão pelo sofrimento causado durante o conflito.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
Outubro de 2016 – Não
Em 2 de outubro, os colombianos foram às urnas decidir sobre o futuro do acordo de paz. Em resultado surpreendente, 50,22% dos eleitores rejeitaram o documento. Apenas 37% dos colombianos participaram do plebiscito, ou seja, cerca de 13 milhões dos 34 milhões de eleitores.
Foto: picture alliance/AP Photo/A. Cubillos
Outubro de 2016 - Nobel da Paz para Santos
Apenas cinco dias depois do referendo sobre o acordo as Farc, os apoiadores do processo de paz foram reconhecidos internacionalmente. O presidente colombiano Juan Manuel Santos foi homenageado com o Prêmio Nobel da Paz. A cerimônia de premiação foi realizada em dezembro de 2016 em Oslo.
Foto: Getty Images/AFP/T. Schwarz
Novembro de 2016 - Ratificação no Parlamento
Após uma série de alterações no texto original do acordo de paz, o Parlamento colombiano ratificou o pacto em 30 de novembro de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/G. Legaria
Junho de 2017 - Desarmamento
A entrega das armas pelos guerrilheiros das Farc ocorreu em três fases sob a supervisão da ONU. Em 27 de junho de 2017, Santos declarou: "Hoje é, para mim e para todos os colombianos, um dia especial, um dia em que trocamos as armas por palavras."
Foto: picture-alliance/dpa/A. Pineros
Agosto de 2017 - As novas Farc
As Farc desarmadas selaram num congresso em 27 de agosto de 2017 o abandono da luta armada e sua reformulação como partido político. O ex-líder guerrilheiro Rodrigo Londoño (foto) foi eleito presidente do partido. Sua saúde fragilizada, no entanto, impediu que ele se candidatasse às eleições presidenciais.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
Março de 2018 - Farc nas eleições
Pela primeira vez desde o fim da luta armada, representantes das Farc participam de eleições legislativas em 11 de março de 2018. Apesar de o partido das Farc só ter recebido 50 mil votos, ele obteve cinco assentos em cada uma das duas casas legislativas, como determinou o acordo de paz. O partido conservador do antigo presidente Álvaro Uribe foi o grande vencedor do pleito.