Para a Europa é pouco admissível Lula e primeira-dama prestarem honras a um agressor bélico autocrático como Putin. Mas ele age pragmaticamente, seguindo uma longa tradição brasileira. Estados têm interesses, não amigos.
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De 30 chefes de Estado e governos presentes ao desfile de vitória em Moscou, Lula foi o único de uma grande democraciaFoto: Sergey Bobylev/Anadolu/picture alliance
As imagens de Moscou são inequívocas: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sentia-se visivelmente bem em sua visita de Estado à Rússia, por ocasião das festividades pelos 80 anos da vitória sobre o nazismo.
Ele descreveu o encontro com seu homólogo Vladimir Putin como um "momento histórico", enfatizando a importância da parceria Brasil-Rússia: "Temos a chance de, neste momento histórico, a gente poder fazer com que nossa relação comercial possa crescer muito."
Sua esposa, Janja da Silva, já viajara cinco dias antes para a Rússia, a convite pessoal de Putin. Ela visitou o Kremlin, o Teatro Bolshoi, o museu Hermitage – mas também a Universidade de São Petersburgo, a fim de discutir temas como educação e cultura, e a Aliança Global Contra Fome e Pobreza iniciada pelo Brasil.
Lula não criticou, ou sequer mencionou com uma só palavra, que a Rússia continua em guerra com a Ucrânia, ou que persegue e assassina membros da oposição. Não há notícias de que o mandatário brasileiro tenha pressionado Putin a negociar pela paz. De Janja, tampouco se ouviu dizer que tenha condenado a sistemática repressão das vozes críticas nas universidades russas.
Por fim, Lula participou do desfile de vitória em Moscou, como único chefe de Estado de uma grande democracia a apoiar Putin na ocasião. Os demais 29 líderes de Estado e governo presentes provinham quase exclusivamente de nações autoritárias, como China, Venezuela, Belarus ou Coreia do Norte.
Embora tenha se pronunciado na Organização das Nações Unidas contra a invasão russa da Ucrânia, o Brasil rejeita as sanções e segue cultivando relações diplomáticas e econômicas intensificadas com Moscou – apesar do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional contra Putin.
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Solidariedade Sul-Sul
Essa apresentação de Lula e sua primeira-dama nos desconcerta na Europa: afinal de contas, trata-se de um político que esteve, ele próprio, nas garras de uma ditadura militar, e que deve também à pressão internacional o fato de ter sobrevivido à prisão e à perseguição.
No entanto, por mais que, de uma perspectiva ocidental, sua participação no desfile triunfal de Putin seja moralmente discutível ou condenável, do ponto de vista da política de poder e do pragmatismo, ela é consistente. Segundo o realismo político, uma escola clássica das relações internacionais, os Estados agem, em primeira linha, em interesse próprio, não segundo critérios ideológicos ou morais: Estados têm interesses, não amigos.
Desse ponto de vista, o Brasil trilha uma política externa independente, multipolar, uma "autonomia pela diversidade", e não se vê como vassalo do Ocidente. O país não quer tomar partido – Ocidente x Oriente – mas sim atuar com autodeterminação – mesmo que isso seja desconcertante, de uma perspectiva europeia.
Portanto está claro que Lula utilizou o palco de Moscou para demonstrar a independência de seu país e sua prerrogativa enquanto potência média global. Ao mesmo tempo, posiciona-se como principal representante da esquerda latino-americana contra a "moralização" ocidental das relações internacionais – em especial quando ela parte de Estados igualmente responsáveis por intervenções militares.
Além disso, essa apresentação é símbolo de uma crescente solidariedade Sul-Sul. Assim como o Brasil, e ao lado da China e da Índia, a Rússia é membro fundador do grupo Brics. Em julho, o Brasil será anfitrião de mais uma cúpula dessa aliança que pretende propor alternativas à ordem mundial de dominação ocidental.
A viagem de Lula é uma ruptura calculada com as expectativas diplomáticas, porém ele dá continuidade a uma longa linha de política externa profundamente arraigada na tradição diplomática brasileira. Quer a gente na Europa goste, quer não.
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Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.
O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.
Guerra na Ucrânia completa três anos
Resistência militar, milhões de refugiados, milhares de mortes e o medo da retirada dos EUA: uma retrospectiva do drama no país do Leste Europeu desde a invasão russa em fevereiro de 2022.
Foto: Narciso Contreras/Anadolu/picture alliance
Exército russo se posiciona
Imagens de satélite mostram tanques e tropas russas em Yelnya, na Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia. Em 11 de novembro de 2021, o então secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, alertou o presidente russo, Vladimir Putin, sobre os riscos que resultariam caso suas tropas invadissem a Ucrânia. Putin ignorou os alertas e ordenou a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022.
Foto: Maxar Technologies/AFP
Invasão da Ucrânia
A ofensiva militar russa contra a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 resultou em ataques com mísseis nas cidades de Kiev, Odessa e Kharkiv. Um prédio militar foi incendiado na capital ucraniana. A guerra, chamada por Moscou de "operação militar especial", havia começado.
Foto: Efrem Lukatsky/AP Photo/picture alliance
O trauma de Bucha
Após algumas semanas, o exército ucraniano expulsou tropas russas das cidades do norte e do nordeste. O plano das forças de ocupação de cercar Kiev fracassou. As atrocidades cometidas pelos militares russos foram reveladas durante a libertação dos territórios. As imagens de civis torturados e mortos em Bucha, perto de Kiev, deram a volta ao mundo. Autoridades registraram 461 mortes.
Foto: Serhii Nuzhnenko/AP Photo/picture alliance
Vida em ruínas
Nos planos de Moscou, a invasão deveria durar três dias e terminar em vitória. De acordo com o Instituto para o Estudo de Guerra, o Kremlin agora controla 20% do território ucraniano, principalmente no leste.
Foto: Sofiia Gatilova/REUTERS
Eleições nos territórios ocupados pela Rússia
Desde setembro de 2022, a Rússia anexou as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporíjia e Kherson. Um ano depois, Moscou realizou eleições nas mesmas regiões. O partido Rússia Unida saiu vitorioso em todas as votações, apontadas amplamente como fraudulentas.
Foto: Alexander Ermochenko/REUTERS
Nove milhões em fuga
A guerra na Ucrânia provocou uma onda de refugiados na Europa sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com a ONU, 3,7 milhões de ucranianos estão internamente deslocadas no país. Outros seis milhões fugiram da Ucrânia, e a maioria foi acolhida pela Polônia e Alemanha.
Foto: Hannibal Hanschke/Getty Images
Mariupol, símbolo da resistência ucraniana
O cerco à cidade de Mariupol, no sul da Ucrânia, durou 82 dias. A cidade foi fortemente bombardeada e os últimos defensores ucranianos se entrincheiraram na siderúrgica de Azovstal. A foto de uma mulher grávida sendo retirada da maternidade deu a volta ao mundo.
Foto: Evgeniy Maloletka/AP/dpa/picture alliance
Ponte da Crimeia em chamas
Com 19 quilômetros de comprimento, a Ponte da Crimeia é a mais longa da Europa. Explosões danificaram severamente a ponte em outubro de 2022, que ficou apenas parcialmente transitável. Em junho de 2023, um novo ataque causou mais danos. O ministro da Defesa ucraniano admitiu que o serviço secreto do país estava por trás dos ataques.
Foto: Alyona Popova/TASS/dpa/picture alliance
Inundações em larga escala
Em 6 de junho de 2023, a barragem de Kakhovka, no rio Dnipro, foi deliberadamente explodida. A Rússia e a Ucrânia culparam uma à outra. A barragem estava sob controle russo na época. Ocorreram grandes inundações, e milhares perderam suas casas.
Foto: Libkos/AP Photo/picture alliance
Infraestrutura de energia destruída
Os ataques russos têm mirado repetidamente a rede elétrica. Em junho de 2024, o ministro de Energia da Ucrânia anunciou que 80% das usinas térmicas e mais da metade das hidrelétricas haviam sido atacadas. O resultado foram cortes significativos de energia e o agravamento da situação humanitária, principalmente no inverno.
Foto: Sergey Bobok/AFP
Ataques ucranianos em território russo
Em agosto de 2024, as forças armadas ucranianas lançaram uma ofensiva em território russo pela primeira vez. Inicialmente, conseguiram controlar cerca de 1,4 mil quilômetros quadrados na região de Kursk. Desde então, perderam novamente dois terços do território ocupado.
Foto: Roman Pilipey/AFP/Getty Images
Guerra dos drones
Os drones viraram um artefato de guerra central na Ucrânia. Ambos os lados usam os veículos aéreos não tripulados para reconhecimento e vigilância, mas também para ataques direcionados.
Três anos de guerra deixaram marcas profundas na sociedade e no território ucranianos. No leste e no sul, muitas cidades e vilarejos foram severamente devastados pelos ataques russos. Várias se tornaram cidades fantasma, como o vilarejo de Bohorodychne, na região de Donetsk.
Longe do front, os problemas não são imediatamente visíveis. A vida continua para alguns, com lojas, cafés e restaurantes abertos. Geradores de energia viraram um antídoto contra cortes de energias.
Foto: Oleksandr Kunytskyi/DW
Trump, um agente de mudança?
Durante a campanha eleitoral, o então candidato Donald Trump afirmou que poderia acabar com a guerra em 24 horas. Em mais de um mês de mandato, ainda não conseguiu. Entretanto, sua aproximação com a Rússia e o simultâneo distanciamento da Ucrânia geraram preocupações crescentes entre ucranianos sobre a possibilidade de a guerra terminar em breve sob termos ainda desconhecidos.
Há mais de 25 anos, Alexander Busch é correspondente de América do Sul para jornais de língua alemã. Ele estudou economia e política e escreve, de Salvador, sobre o papel no Brasil na economia mundial.