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Com medo da penúria e da morte? Bem-vindos ao mundo real

J.P. Cuenca
3 de abril de 2020

A pandemia de covid-19 democratizou a insegurança e o receio do futuro que já afligia milhões de brasileiros. Resta saber se os abastados aprenderão alguma coisa com isso.

Comércio fechado em São Paulo, em 20 de março
Comércio fechado em São Paulo, em 20 de marçoFoto: Reuters/A. Perobelli

1.

Você vai até a janela, olha para o céu, estica o braço apontando o telefone para cima, fecha o olho esquerdo, olha o céu no quadro do telefone – é o mesmo. Você tira uma fotografia, a examina, volta a olhar para o céu: as nuvens desembestaram a mudar de lugar, o sol talvez agora lhe cegue um pouco.

Mas você estava lá, e por isso publica um instantâneo daquele céu onde não havia nada de especial, apenas o panorama difuso do círculo solar por trás de nuvens em contraluz, visto por uma nesga entre edifícios e antenas de São Paulo. As pessoas vão olhar sua fotografia, cada uma dentro de cada apartamento, e ler seu nome impresso no canto esquerdo sobre a imagem do céu nos cristais dos telefones, e pensar em você, talvez olhando pela janela – talvez sentindo o mesmo pavor.

Andamos assim, silenciando no meio das frases.

Especialmente, os privilegiados que hoje podem isolar-se em cápsulas domésticas. Nas últimas semanas, nossas horas foram ocupadas por tentativas de trabalho remoto, aulas online, ativismo de internet, drinks via zoom e houseparty – e uma enevoada sensação de luto antecipado. Até que percamos o emprego, enterremos nossos mortos ou, na melhor das hipóteses, tenhamos que nos confrontar com um mundo que ainda desconhecemos do outro lado desta quarentena.

São tempos estranhos? Talvez não mais que há três semanas – a diferença é que agora todos sabemos disso.

2.

Nas últimas décadas, o capitalismo tardio promoveu mudanças climáticas irreversíveis e um aumento exponencial na concentração de renda mundial. Pouco importava aos detentores dos meios de produção e do capital financeiro – e às classes médias que votam nos representantes daqueles no governo – que a política econômica de seus países causasse desigualdade, doenças e morte aos menos favorecidos.

O colunista J.P. Cuenca vive entre São Paulo e BerlimFoto: privat

No Brasil, o 1% mais rico hoje concentra 28,3% da renda total do país, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU divulgado em dezembro do ano passado. É a segunda maior concentração de renda do mundo, apenas atrás do Catar, um emirado absolutista sem eleições legislativas desde os anos 1970 que usa a charia como sistema legal, onde mulheres supostamente adúlteras são punidas com chibatadas e relações homossexuais, com a pena de morte.

Essa combinação nefasta de concentração de renda e ameaças aos direitos humanos também encontra-se por aqui.

Ainda que, durante o recente ciclo do Partido dos Trabalhadores no poder, tal desigualdade tenha sido mitigada via programas de distribuição de renda e uma economia aquecida, os brasileiros moradores de periferias e favelas seguiram tendo direitos desrespeitados pelas polícias militares de todo o país, assim como os povos indígenas originários ameaçados por ruralistas, grileiros, milícias e superfaturadas obras de infraestrutura. E, se nossas favelas são guetificadas pelo Estado, o que dizer dos presídios brasileiros, verdadeiros campos de concentração para negros e pobres?

Abrindo o panorama, pesquisas do IBGE em 2017 e 2018 apontaram que 64,9% da população brasileira não têm pelo menos um dos seguintes direitos garantidos: educação, proteção social, moradia adequada, serviços de saneamento básico e comunicação (internet). A realidade é certamente pior: o relatório usa o conceito de autodeclaração e só inclui os brasileiros que tenham domicílios, excluindo moradores de rua. Entre mulheres negras ou pardas, sozinhas, e com filhos pequenos, o número é ainda maior: 81,3% . Entre idosos, são 80%. 

O Estado Democrático de Direito, garantido pela Constituição de 1988 e ameaçado pelo bolsonarismo, nunca foi democratizado no Brasil pós abertura – jamais chegou plenamente aos cantos menos favorecidos do país, mesmo sob governos supostamente de esquerda. E, com a guinada abertamente fascista da política brasileira depois do golpe de 2016, a situação, que já era trágica, piorou.

Em tempos de pandemia, talvez um pouco – apenas um pouco – do pesadelo distópico no qual já viviam milhões de brasileiros pareça agora democratizado. Insegurança financeira e ameaça constante à vida: antes tão normalizados quando no andar de baixo, agora motivos para ansiedade generalizada.

3.

A grande novidade não é a pandemia. É o fato de que as classes mais abastadas brasileiras possam enfrentar, pela primeira vez em gerações, circunstâncias em que sua casta superior não lhes oferece grande vantagem de sobrevivência.

No Brasil, hospitais particulares já sofrem estrangulamento semelhante ao SUS – e mal começamos a escalar a curva de casos e mortes. Tragédia com horizontalidade semelhante, talvez apenas durante guerras, sob bombardeio. O que nunca tivemos por aqui.

Quando isso tudo acabar, talvez a espera e o testemunho da catástrofe, a implosão do que entendíamos como vida normal, faça os abastados da Zona Sul do Rio de Janeiro e da Zona Oeste de São Paulo mais empáticos com quem convive com o medo de ver o chão abrindo sob seus pés desde que nasceu.

Mas não sei se eu apostaria nisso.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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