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Com uma perna só, venezuelano atravessa América do Sul a pé

Manuel Rueda da Colômbia / av
24 de agosto de 2018

O acidente poderia ter destruído a vida do motorista de ônibus Yeslie Aranda. Mas ele aproveitou a oportunidade para realizar um sonho ambicioso. E inspirar seus companheiros de estrada e as gerações futuras.

Yeslie Aranda pretende percorrer 10 mil quilômetros a pé e depois voltar
Yeslie Aranda pretende percorrer 10 mil quilômetros a pé e depois voltarFoto: DW/M. Rueda

O venezuelano Yeslie Aranda deixou sua cidade natal, San Cristóbal, em meados de 2018 com um saco de dormir, uma mochila e uma prótese de alumínio que lhe serve como perna esquerda. No bolso, tinha apenas 30 dólares: suas economias foram consumidas pela hiperinflação descontrolada.

Seu plano é caminhar os 10 mil quilômetros até a ponta sul da Argentina, numa jornada que poderá levar mais de um ano. E depois voltar a pé. "Estou vivendo o meu sonho agora", diz o ex-motorista de ônibus de 56 anos. "Quero que as pessoas saibam que, o que quer que resolva fazer, perseverando você alcança, apesar da sua condição no momento."

Ele sempre gostou de estar ao ar livre, mas só tomou o gosto por longas caminhadas cinco anos atrás, depois de sobreviver a um acidente de estrada em que tanto ele quanto a filha Paola, de 23 anos, perderam uma perna.

O desastre ocorreu numa estrada interestadual: um caminhoneiro perdeu o controle e se chocou com o ônibus de dois andares de Aranda. Ele e a filha passaram semanas hospitalizados. "Depois do acidente, eu fiquei em coma induzido por quase 15 dias. Quando acordei, conferi minha perna e notei que ela não estava lá. E agradeci a ela pelos seus 51 anos de serviço."

Após 44 dias hospitalizada, Paola recebeu a notícia de que sua perna também seria amputada. "Foi muito duro para ela. Mas tentei sempre animá-la, lhe dizer que a gente é como barcos a vela, que precisamos ir em frente mesmo quando o vento sopra contra nós."

Prótese de Aranda foi doação de companhia venezuelana interessada em ajudá-lo na viagemFoto: DW/M. Rueda

Quando seus ferimentos sararam, Aranda passou a frequentar de muletas os santuários religiosos nas montanhas em torno de San Cristóbal. Isso o ajudava a aceitar o acidente e também serviu de motivação para Paola, que por vezes o acompanhava de cadeira de rodas.

Durante essas caminhadas, ele notou que o rosto de alguns passantes se iluminava que vê-lo se esforçando para galgar os morros. "As pessoas ficavam me olhando e pensavam: 'O que é que esse maluco está fazendo?' Acho que me ver dava a elas uma certa perspectiva dos próprios problemas."

Depois que conseguiu uma prótese de verdade, Aranda passou a sonhar alto. E em 2017 planejou uma viagem pela América do Sul, usando toda ajuda que conseguisse de companhias locais: um sapateiro doou sapatos tênis, uma firma de prótese reforçou sua "perna" de alumínio.

Ponte Símon Bolívar em Cucuta: muitos deixam a Venezuela à busca de vida melhor na ColômbiaFoto: picture alliance/colprensa/J. P. Cohen

Em 28 de junho, então, Aranda partiu em direção à cidade de Cucuta, na fronteira com a Colômbia. Lá, um sobrinho observou que talvez suas costas acabariam "entregando os pontos", se ele carregasse todos os seus pertences numa mochila, numa viagem tão longa assim.

Com a ajuda de uma loja de consertos de motocicletas local, ele e o rapaz construíram uma robusta carreta de duas rodas, que Aranda agora empurra pelas acidentadas estradas sul-americanas. Ele apelidou o veículo de "Jesus", pois é seu "companheiro eterno".

A experiência de viagens anterior de Aranda se limitava a um ano trabalhando nas Ilhas Canárias, na costa da Espanha. "Eu agora me vejo em Ushuaia [Argentina], tirando uma foto debaixo de um cartaz que diz 'Bem-vindos ao fim do mundo'." Ele nunca teve muito dinheiro para viajar, e continua não tendo, "mas, no fundo do coração, eu sou um aventureiro, e estou disposto a aguentar o que for necessário para chegar lá".

Até o momento, percorreu 900 quilômetros de sua cidade natal na Venezuela até a colombiana Medellín. Lá ele encontrará um engenheiro que prometer fazeer alguns ajustes em sua prótese, de graça. Aranda conta que a solidariedade na estrada tem sido imensa: pelo caminho ele encontrou quem lhe desse um casaco contra o tempo frio, comida e até uma tenda de acampar, caso ele não encontre lugar para dormir.

Viajante de uma perna só carrega seus pertences em carreta que construiu com sobrinhoFoto: DW/M Rueda

Em sua longa jornada, o venezuelano tem dormido no chão de postos de gasolina e terminais rodoviários. Mas também foi recebido em casa por gente curiosa com essa aventura inusitada. Na estrada para Pamplona – uma gelada cidade colombiana a quase 3 mil metros acima do mar –, ele foi acolhido por um fazendeiro que lhe deu abrigo do frio glacial.

Na capital colombiana, Bogotá, uma comerciante que simpatizou com sua causa lhe pagou a conta do albergue. "Acho que o que ele está fazendo é fascinante, devido à limitação física dele", comenta o hoteleiro Oscar Ragua. "É também um jeito incrível de deixar um legado e continuar vivendo nas histórias que as pessoas contam sobre ele."

Yeslie Aranda pegou algumas caronas de caminhão pelo caminho, para evitar ficar preso durante a noite nas estradas de montanha geladas. Ele também partilhou essas caronas com migrantes venezuelanos que fogem da implosão econômica de seu país a pé e sem dinheiro.

A Organização das Nações Unidas estima que mais de 1 milhão de venezuelanos tenham deixado o país desde 2015, a maioria para a vizinha Colômbia. "É bem triste o que o nosso país está passando", diz Aranda. "Mas quando vejo esses migrantes na estrada, eu digo para eles fazerem planos para o futuro, e aproveitarem ao máximo essa oportunidade que a vida está lhes dando."

No momento, o peregrino não tem planos de emigrar. Ele quer voltar para sua família na Venezuela dentro de dois a três anos, partilhar histórias de viajante e possivelmente escrever um livro sobre sua jornada "perneta" através do continente sul-americano.

"Acho que essa viagem vai fornecer material para um livro", avalia. "Eu quero fazer algo de bom, e deixar alguma coisa para os meus netos lembrarem de mim."

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