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FutebolCatar

Começa mal "a maior Copa de todos os tempos"

Gerd Wenzel
Gerd Wenzel
22 de novembro de 2022

Discurso constrangedor do chefe da Fifa e abertura do Mundial no Catar tentaram pintar um quadro de tolerância e inclusão – uma hipocrisia diante da realidade no emirado e da atuação da entidade máxima do futebol.

Gianni Infantino e Tamim bin Hamad al-Thani, emir do Catar, na cerimônia de abertura da CopaFoto: JB Autissier/PanoramiC/IMAGO

Esta Copa do Mundo, no Catar, não poderia ter começado pior: 24 horas antes de a bola rolar, Gianni Infantino, o poderoso chefão da Fifa, fez um discurso constrangedor no Centro Nacional de Convenções de Doha, num palco gigantesco perante centenas de jornalistas do mundo inteiro. 

Infantino começou seu infeliz monólogo recheado de clichês, intenções dúbias e acusações desconexas contra os europeus. Fez-se de vítima de racismo e preconceito, que teria sofrido na adolescência, recém-chegado da Itália com seus pais imigrantes que foram tentar melhor sorte na Suíça.

Logo no início de sua fala formulou a frase: "Hoje me sinto catariano, hoje me sinto árabe, hoje me sinto africano, hoje me sinto gay, hoje me sinto deficiente, hoje me sinto um trabalhador estrangeiro. Sinto tudo isso porque já vi."

Disse também que toda e qualquer crítica ao Catar é "pura hipocrisia", principalmente vinda do Ocidente, e que todos precisam saber que "todo mundo é bem-vindo no Catar – essa é a posição do país e da Fifa". Aproveitou para criticar a imprensa, que estaria mentindo ao se referir à existência de torcidas fake pagas pelo Catar para animar o evento: "Isso é racismo, puro racismo. Tem que acabar com isso." 

A patética apresentação de Infantino causou meneios de cabeça, entreolhares atônitos e sorrisos sarcásticos dos jornalistas, estupefatos com a mais absoluta falta de bom senso do presidente da Fifa.

Festa da hipocrisia

Não bastasse a ridícula coletiva de imprensa do presidente da Fifa, no dia seguinte foi realizado o evento de abertura da Copa no Estádio Al-Bat, com a presença de Tamim bin Hamad al-Thani (emir do Catar), de Abdullah 2º (rei da Jordânia) e de Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Esse último teria sido responsável por graves crimes e violações dos direitos humanos no seu próprio país e também no exterior. Uma das mais graves suspeitas, levantada pela organização Repórteres sem Fronteiras, é de que o príncipe herdeiro estaria envolvido no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, crítico da monarquia saudita.

Todo evento foi moderado pelo consagrado ator americano Morgan Freeman, juntamente com o embaixador do Catar para a Copa do Mundo Ghanim al-Muftah, que sofre de uma malformação congênita da coluna vertebral.

Durante o show de 30 minutos, o país árabe, que tem sido criticado pela falta de direitos para mulheres e pessoas da comunidade LGBTQ, entre outras coisas, tentou pintar um quadro de tolerância. Numa das principais cenas, Freeman e Al Muftah tiveram um diálogo sobre os altos valores de inclusão, diversidade e tolerância que estariam norteando o país: "Todos são bem-vindos à Copa do Mundo", encerrou Al Muftah.

Em seguida, Hamad al-Tani, emir do Catar, se pronunciou: "Pessoas de diferentes origens, religiões e orientações vão se reunir aqui e vivenciar fantásticos momentos. Como é bonito ver que as pessoas deixam de lado o que as separa para poder festejar o que as une."

Para Wenzel Michalski, diretor da ONG Human Rights Watch na Alemanha, são palavras ocas: "Vi mesmo muita hipocrisia neste evento. Foi mostrada inclusão. Se falou sobre diversidade e tolerância. Mas tudo isso dito pelo representante do país e por pessoas do país que não vivenciam esses valores."

Aos olhos de Infantino, essas críticas não fazem a menor diferença. Deu as boas-vindas a todos e logo, ainda que simbolicamente, declarou aberta a "maior Copa do Mundo de todos os tempos".

Futebol pífio

Se já não bastassem todas essas críticas que o país vem sofrendo por conta das questões de intolerância e exclusão, também na hora do futebol o que se viu foi uma seleção do Catar jogando um futebolzinho de quinta categoria.

Vale lembrar que esse elenco dirigido pelo técnico espanhol Félix Sanchez está se preparando praticamente em clausura desde setembro, mas falhou fragorosamente logo no seu primeiro jogo numa Copa. A derrota para o Equador poderia até ser considerada normal se não fosse o futebol pífio, sem padrão de jogo e sem domínio dos mais elementares fundamentos futebolísticos por alguns dos seus jogadores. Foi constrangedor.

Constrangimento esse que pôde ser notado no semblante de torcedores catarianos que, à medida que a sua seleção foi naufragando em campo, começaram a abandonar o luxuoso estádio especialmente construído para a Copa. Muitos aproveitaram o intervalo entre o primeiro e o segundo tempo para não voltar aos seus assentos.

Jornalistas presentes no estádio relataram que ao final da partida vencida pelo Equador (2x0) menos de 30% das dependências da arena ainda estavam ocupadas por torcedores, sendo a grande maioria equatorianos comemorando a vitória do seu país. Imagens com as arquibancadas vazias rodaram o mundo.

Esporte e política

Gianni Infantino gosta de se apresentar como um dirigente de futebol aberto e tolerante, contanto que ninguém tente questionar os supostos valores sagrados da Fifa. Um desses supostos valores é não misturar política com esporte.

Só que em fevereiro deste ano, a Fifa decidiu suspender a Rússia por tempo indeterminado das competições internacionais de futebol após o ataque militar russo à Ucrânia. A decisão vale para seleções e clubes, em todos os níveis. A alegação principal para a suspensão foi a invasão da Ucrânia pela Rússia, com graves violações dos direitos humanos.

Por qual razão essa alegação de violação dos direitos humanos não foi aplicada também ao Catar é uma incógnita. Talvez seja porque a Fifa tenha obtido lucros bilionários com a Copa do Mundo que agora se realiza no emirado. De fato, foi um lucro líquido de 1,5 bilhão de dólares que entrou nos cofres da Fifa (Fonte: RDN – RedaktionNetzwerk Deutschland).

Pano rápido.

Sete federações nacionais de futebol tinham decidido um dia antes de a Copa começar que seus respectivos capitães entrariam em campo com uma braçadeira de diversas cores com o lema One Love. Era para ser um sinal de tolerância e inclusão. A Fifa de Gianni Infantino não apenas vetou o uso da braçadeira, mas ameaçou punir os jogadores que a usassem com cartão amarelo.

É esse o mundo do poderoso chefão da Fifa: abertura, tolerância e inclusão como força de expressão num discurso. Como ações concretas, por menores que sejam, nem pensar. Especialmente quando essas podem afrontar monarcas absolutistas encastelados nos seus palácios.    

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Atuou nos canais ESPN como especialista em futebol alemão de 2002 a 2020, quando passou a comentar os jogos da Bundesliga para a OneFootball de Berlim. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit é publicada às terças-feiras. 

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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Halbzeit

Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Na coluna Halbzeit, ele comenta os desafios, conquistas e novidades do futebol alemão.