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Comemorar 1964 é imoral e inadmissível, diz relator da ONU

29 de março de 2019

Fabián Salvioli, relator especial das Nações Unidas sobre promoção da verdade, afirma que é dever do Estado preservar as evidências de crimes horrendos como os cometidos durante a ditadura, e não celebrá-los.

Ditadura militar no Brasil
A ditadura militar, de 1964 a 1985, foi marcada por censura à imprensa, tortura de dissidentes e cassação de direitosFoto: Arquivo Nacional

O relator da ONU Fabián Salvioli exigiu nesta sexta-feira (29/03) que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro reconsiderasse seu plano de comemorar o aniversário de 55 anos do golpe militar. Segundo ele, celebrar um regime que cometeu "crimes horrendos" é "imoral e inadmissível".

"Tentativas de revisar a história e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo", afirmou o argentino, que é relator especial das Nações Unidas sobre promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não-repetição.

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Momentos depois do comunicado emitido pela ONU, uma juíza federal em Brasília acabou proibindo o governo federal de realizar comemorações em 31 de março, atendendo a um pedido da Defensoria Pública da União.

A ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985, teve início com a derrubada do governo do então presidente democraticamente eleito, João Goulart, e foi marcada por censura à imprensa, fim das eleições diretas para presidente, fechamento do Congresso Nacional, tortura de dissidentes e cassação de direitos.

A ONU lembra que mais de 8 mil indígenas e ao menos 434 suspeitos de serem dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram forçadamente durante o regime, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade. Estima-se ainda que dezenas de milhares de pessoas foram arbitrariamente detidas e torturadas.

Contudo, a chamada Lei da Anistia, promulgada pelo governo militar em 1979, concedeu perdão a civis e militares envolvidos em crimes durante o regime, "impedindo a responsabilização pelos abusos", afirma a nota das Nações Unidas.

O advogado Fabián Salvioli já foi presidente do Comitê de Direitos Humanos da ONUFoto: picture-alliance/YONHAPNEWS AGENCY

"Comemorar o aniversário de um regime que trouxe tamanho sofrimento à população brasileira é imoral e inadmissível em uma sociedade baseada no Estado de Direito. As autoridades têm a obrigação de garantir que tais crimes horrendos nunca sejam esquecidos, distorcidos ou deixados impunes", acrescentou Salvioli no comunicado.

"Quaisquer ações que possam justificar ou relevar graves violações de direitos humanos durante a ditadura reforçariam ainda mais a impunidade que os perpetradores desfrutam no Brasil, dificultariam esforços para impedir qualquer repetição de tais violações e enfraqueceriam a confiança da sociedade nas instituições públicas e no Estado de Direito."

O relator afirmou ainda que é direito dos brasileiros conhecer a verdade sobre crimes hediondos cometidos no passado, bem como as circunstâncias que conduziram a esses crimes. É dever do Estado, por sua vez, preservar as evidências de tal violência, completou.

"Isso poderia incluir a preservação da memória coletiva desses eventos e a proteção contra argumentos revisionistas e negacionistas", disse Salvioli. "Estou profundamente preocupado que as celebrações planejadas possam levar a um processo de revitimização para aqueles que sofreram."

O apelo do relator especial das Nações Unidas ocorreu depois de a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladimir Herzog terem feito, nesta mesma sexta-feira, uma denúncia em caráter confidencial à ONU contra a iniciativa do governo Bolsonaro de comemorar o golpe de 1964.

O documento das entidades denunciou a "tentativa do presidente e de outros membros do governo – como o chanceler Ernesto Araújo – de modificar a narrativa histórica do golpe que instaurou uma ditadura militar". Elas citam entrevistas recentes de Bolsonaro sobre o assunto.

A petição destaca ainda que o regime ditatorial "aterrorizou o país com uma série de gravíssimas violações de direitos humanos, como perseguições, prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos e assassinatos".

Na última segunda-feira, o porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros, anunciou que Bolsonaro havia determinado ao Ministério da Defesa que fossem feitas "comemorações devidas" no próximo domingo, 31 de março, data que marcou o início da ditadura militar no Brasil.

O general ainda afirmou que Bolsonaro não considera que houve um golpe militar em 1964. O próprio presidente disse ao longo da semana que, em sua concepção, não houve ditadura militar no Brasil e defendeu que todo regime, como todo casamento, tem alguns "probleminhas".

Na quinta-feira, ele suavizou o tom. Segundo Bolsonaro, a ordem não foi para que as Forças Armadas comemorem o golpe, mas que "rememorem". "Foi rememorar, rever, ver o que está errado, o que está certo. E usar isso para o bem do Brasil no futuro", afirmou o presidente, que é capitão reformado.

A proibição da Justiça Federal deve impedir qualquer evento marcado para o domingo, embora cerimônias já tenham sido realizadas nos últimos dias. Na quinta-feira, houve uma solenidade no Comando Militar do Sudeste com a presença de seis deputados estaduais do PSL, partido de Bolsonaro.

Na manhã desta sexta, o Exército realizou uma cerimônia no pátio do Comando Militar do Planalto, em Brasília, que começou às 8h e durou apenas meia hora. O evento já constava na agenda do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, desde o início da semana, como "Solenidade comemorativa ao dia 31 de março de 1964".

A determinação do presidente para que houvesse festejos nas unidades militares havia sido rechaçada por parte da população e virou alvo de ações na Justiça buscando impedir novas comemorações nos quartéis em 31 de março – como a da Defensoria acatada nesta sexta-feira pela juíza em Brasília.

Na quarta-feira, vítimas e parentes de vítimas da ditadura se somaram ao coro e pediram ao Supremo Tribunal Federal (STF) que concedesse uma liminar impedindo as comemorações ordenadas pelo presidente.

O 31 de março foi retirado do calendário oficial do Exército em 2011 por determinação da então presidente, Dilma Rousseff, que foi torturada no regime ditatorial. Agora, com Bolsonaro na Presidência e diversos militares ocupando cargos ministeriais, o retorno da data à agenda estaria sendo avaliado pelas Forças Armadas.

Bolsonaro sempre afirmou que o período de 21 anos não foi uma ditadura. Durante a votação do impeachment de Dilma, em 2016, ele chegou a homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça de São Paulo como torturador durante o regime militar.

EK/kna/ots

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