Como a propaganda nazista se apropriou de Beethoven
Gaby Reucher
17 de dezembro de 2020
O regime nazista usou sistematicamente a música de Beethoven para propósitos políticos. Após a Guerra, ditadores e ativistas em todo o mundo usaram as obras do gênio musical que completa 250 anos para seus próprios fins.
Wilhelm Furtwängler rege a Filarmônica de Berlim em 1935 diante de proeminências nazistasFoto: The Print Collector/Heritage Images/picture alliance/dpa
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Em 1945, a ópera Fidelio , de Ludwig van Beethoven, foi ouvida em Viena como um símbolo de libertação. Os Aliados haviam vencido a guerra contra a Alemanha nazista. Sete anos antes, o regime de Hitler havia celebrado a obra como a "Ópera da Vitória" na Áustria ocupada.
Quase nenhum outro compositor foi tão instrumentalizado para fins políticos quanto Ludwig van Beethoven. Nascido há 250 anos, sua música serviu a ditadores e lutadores pela liberdade em todo o mundo para confirmar suas respectivas visões políticas.
A 9ª Sinfonia de Beethoven pelo mundo
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"O segredo desta música ainda é discutido hoje", diz o musicólogo Michael Custodis, da Universidade de Münster, em entrevista à DW. "A apropriação internacional é uma história cultural muito complexa, da qual ainda não sabemos muito e para a qual ainda temos que desenvolver modelos explicativos."
Propaganda sistemática com a música de Beethoven
O regime nazista usou Beethoven para seus propósitos de propaganda. Hitler não estava interessado apenas na música em si, mas também nos atributos conferidos ao compositor e à pessoa Ludwig van Beethoven, considerado um titã, um herói que havia superado sua surdez e, por último, mas não menos importante, um gênio musical alemão.
O fato de Beethoven também representar valores da Revolução Francesa, como liberdade, igualdade e fraternidade, não incomodou o regime de Hitler. "As ditaduras nunca tiveram problemas em assumir o controle da narrativa histórica e simplesmente reescrevê-la em caso de dúvida", diz Custodis. "Além disso, o nazismo sempre se apresentou como um movimento revolucionário."
Michael Custodis estuda a música dos tempos do nazismoFoto: privat
Um movimento revolucionário que − ao menos no aspecto musical − quis se vincular a antigas tradições: com carros-chefe como Beethoven e Wagner. Para organizar os eventos musicais, o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, fundou a Câmara de Cultura do Reich com o departamento Câmara de Música do Reich. Seu primeiro presidente foi o conhecido compositor Richard Strauss. Ele serviu como figura de proa cultural da ditadura. Obras de compositores judeus ou oponentes políticos foram banidas como "música degenerada".
Preservar o legado cultural
Com a criação do Império Alemão, ou Reich, em 1871, o imperador Guilherme 1º pavimentou o caminho para o uso da cultura e da música para fins do governo. Ele acabou com a noção romântica de que música e política são dois mundos estritamente diferentes. O reconhecimento internacional de compositores como Beethoven, Wagner, Brahms e Bruckner jogou a seu favor.
"O Império Alemão entra em cena para a administração do patrimônio cultural e gastou muito dinheiro para expandir o status conquistado pelo repertório musical alemão nas salas de concerto e nos palcos de ópera do mundo", explica Custodis.
Além disso, a música alemã era tocada também nas colônias na África e na China − principalmente para convencer de forma missionária as "culturas estrangeiras" sobre o valor da cultura alemã.
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Propaganda nazista também no exterior
O regime nazista continuou essa tradição. Canções alemãs foram tocadas no Brasil e no Chile, e a Filarmônica de Berlim fez turnês no exterior como "Orquestra do Reich". Maestros como Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan encheram as grandes salas de concerto do mundo com as obras orquestrais de Beethoven.
Mais tarde, na Segunda Guerra, pianistas como Elly Ney, Wilhelm Kempff ou Walter Gieseking deram concertos de propaganda e fortaleceram a resistência das tropas na frente de batalha com as sonatas para piano de Beethoven.
A quem pertence Beethoven?
Que Hitler pretendia "dominar o mundo" ficou claro no mais tardar na Segunda Guerra Mundial. As nações ocupadas estavam culturalmente divididas. Por um lado, rejeitavam estritamente as sinfonias alemãs durante o conflito; por outro, tocavam exatamente essa música em protesto. "Os alemães tiveram negado o direito de assumir para si compositores como Beethoven", explica Custodis.
Três batidas curtas e uma longa marcam a abertura da Quinta Sinfonia. Elas foram o sinal de identificação das transmissões internacionais da BBC durante a Guerra e, portanto, o indicativo da resistência contra os alemães. Em código Morse, os tons representam a letra "V", da palavra "vitória".
Quem foi Ludwig van Beethoven?
O que distinguiu o mestre compositor? Qual dos seus trabalhos marcou a história da música? Como ele era? Conheça melhor o grande compositor alemão que completaria 250 anos em 2020.
Foto: picture-alliance/Ulrich Baumgarten
O gênio musical
Ainda criança, Ludwig van Beethoven (1770-1827) era um prodígio. Dizem que seu pai, que queria fazer dele um segundo Mozart, tinha métodos de aprendizado bastante rigorosos. Ludwig tocou seu primeiro concerto aos sete anos. Suas primeiras composições, aos 12. A genialidade só seria evidenciada em obras posteriores, por extrapolarem padrões conhecidos até então, e que continuam inspirando até hoje.
Foto: DW
Estrela já em seu tempo
Hoje, Beethoven é um dos compositores mais ouvidos e interpretados do mundo. Ele já era famoso em vida, o que não era o caso de outros músicos excepcionais de seu tempo. Pense, por exemplo, no triste destino de Mozart, que foi enterrado num túmulo anônimo. Por outro lado, 20 mil pessoas assistiram ao funeral de Beethoven - metade da população do centro da cidade de Viena na época.
Foto: picture-alliance/Ulrich Baumgarten
Primeiro artista freelancer
Nos períodos barroco e pré-clássico, compositores como Bach, Haydn ou Händel normalmente eram empregados da corte de um príncipe ou rei - ou em uma igreja. Mas com Beethoven não foi assim: ele conseguiu montar um círculo de mecenas que o apoiavam financeiramente com regularidade. Além disso, ganhava dinheiro com os concertos e a publicação de composições.
Foto: picture-alliance / akg-images
Gênio respeitado
Sua obra ainda é fonte constante de inspiração para os músicos. Seus trabalhos incluem nove sinfonias, cinco concertos para piano, o concerto para violino, 16 quartetos de cordas, 32 sonatas para piano, a ópera "Fidelio", a Missa em dó maior op. 86 e a Missa solemnis op. 123. Seus cadernos com manuscritos meticulosos foram preservados, pois Beethoven costumava desenhar e anotar suas ideias.
Foto: picture alliance/H. Lohmeyer/Joker
A fatídica "Quinta"
Ta-ta-ta-taaaa. Quatro notas sem melodia – ultrajante para a época! Hoje, é sinônimo de Beethoven, e a "Sinfonia do Destino" é uma das obras eruditas mais tocadas. No entanto, na sua estreia, em 1808, a "Sinfonia nº 5 em dó menor, opus 67" não foi bem recebida: os sons incomuns deixaram o público perplexo. Além disso, a orquestra havia ensaiado muito pouco e o teatro não estava aquecido.
Foto: picture-alliance/akg-images
O clássico: "Para Elisa"
Uma música que cativa há 200 anos: seja em filme, em espera de telefone, como toque, no elevador ou caminhão de gás. "Para Elisa" é uma das peças de piano mais populares do mundo. Não está claro até hoje quem era Elisa. Beethoven se apaixonou muitas vezes, geralmente sem reciprocidade. Ele nunca teve esposa ou família. A obra pode ter sido dedicada à cantora de ópera Elisabeth Röckel.
Foto: picture-alliance/akg-images
A insuperável "Nona"
As sinfonias são feitas para a interpretação por uma orquestra. Para cantores até então não havia lugar no palco. Como Beethoven não se importava muito com convenções, ele inventou algo novo em sua nona e última sinfonia. Assim, no último movimento, não há apenas cantores, mas também um coral. Parte da "Sinfonia n° 9 em ré menor, op. 125, Coral" tornou-se o hino oficial da União Europeia em 1972.
Foto: akg-images/picture alliance
Além da surdez
É inimaginável: um compositor que já não ouve a própria música. Os problemas auditivos de Beethoven começaram antes mesmo de ele fazer 30 anos. Isso ameaçou não só a sua carreira, mas também a sua vida social. Durante um tratamento em 1802, ele até teve pensamentos de suicídio. Mas o amor pela música o trouxe de volta - seguiram-se 25 anos altamente produtivos.
Beethoven nasceu em Bonn, onde teve as suas primeiras atuações, incentivadores e mentores. Hoje, Bonn se considera A cidade de Beethoven, com o museu Casa de Beethoven e seu amplo arquivo, e o festival anual Beethovenfest. Aos 22 anos, Ludwig mudou-se para Viena, onde encontrou inúmeros apoiadores. Aqui ele também teve aulas de composição com Joseph Haydn. Beethoven morreu em Viena em 1827.
A estudante judia de música Fania Fénelon, de Paris, conhecia esse simbolismo político quando foi presa no campo de concentração de Auschwitz e fez o arranjo da Quinta Sinfonia para a "orquestra de meninas". Em seu livro de mesmo nome, a sobrevivente do Holocausto escreve que ficou contente porque os administradores dos campos de concentração não perceberam essa importância.
Dois Estados alemães disputam Beethoven
Nos primeiros anos após o fim da Segunda Guerra, eclodiu uma disputa ideológica entre a Alemanha Oriental e a Ocidental sobre o direito de reivindicar a música de Beethoven. Na Alemanha de regime comunista, Beethoven era visto como um pioneiro do socialismo. "Diziam lá que Hitler foi derrotado com a ajuda do Exército Vermelho e que, portanto, deve-se abordar o aspecto pacífico e europeu da música de Beethoven", explica o musicólogo.
Já a Alemanha Ocidental ocupava-se com os processos de desnazificação, em que também o maestro Wilhelm Furtwängler teve que assumir sua responsabilidade. Em 1942, ele havia tocado a Nona Sinfonia de Beethoven com a Filarmônica de Berlim por ocasião do aniversário de Hitler.
"A partir de 1948, a Filarmônica de Berlim voltou a fazer turnês com Furtwängler, diretamente para a Inglaterra, sob a premissa de projeto de paz", conta. Apesar dos debates acalorados sobre o papel de Furtwängler no chamado "Terceiro Reich", os concertos tinham ingressos esgotados, e as críticas musicais eram arrebatadoras. As pessoas queriam voltar a ver música e política separadas.
A Nona Sinfonia a serviço da política
Depois da Guerra, a Nona Sinfonia de Beethoven foi apropriada politicamente em todo o mundo. Os governantes do antigo regime de apartheid da Rodésia, atual Zimbábue, usaram o quarto movimento como hino nacional na década de 1970. Durante a ditadura militar no Chile, mulheres manifestaram-se com a "Ode à Alegria" pela libertação de presos políticos. Em junho de 1989, estudantes na China cantaram a "Ode" durante seus protestos na praça da Paz Celestial.
Leonard Bernstein conduziu a Nona em 1989, quando caiu o Muro de Berlim. Na esteira da Reunificação, os políticos cantaram a "Ode à Alegria". A Nona Sinfonia de Beethoven é também o hino da União Europeia, com os seus valores de liberdade, paz e solidariedade.
A vida de Beethoven em fotos
Conheça algumas etapas da vida do grande compositor alemão nascido em Bonn.
Foto: GNU, CC-RobertG-SA
Beethoven com 13 anos
Esta pintura de Beethoven aos 13 anos é o mais antigo retrato autêntico do compositor. Seu primeiro professor de música foi o pai, Johann van Beethoven, que era alcoólatra e por vezes tratava o filho de maneira muito rude. Mesmo assim, seu talento foi reconhecido logo cedo. Com 13 anos, Ludwig já havia publicado três sonatas para piano e tocava também cravo e viola regularmente na corte de Bonn.
Foto: GNU, CC-RobertG-SA
Beethoven e Goethe encontram a família real em 1812
Este quadro retrata o "incidente de Teplitz". Ao lado de Johann Wolfgang von Goethe (à esq., no fundo) em 1812, Beethoven se recusou a curvar-se diante da família imperial. Beethoven tinha grandes expectativas em relação a seu primeiro encontro com Goethe. Porém o poeta descreveu o compositor como "muito introvertido". Neste momento de sua vida, Beethoven estava conturbado e pouco compunha.
Foto: Wikipedia public domain
Prédio onde Beethoven concluiu a Nona Sinfonia
Beethoven acabou sua famosa Nona Sinfonia em 1824, quando vivia neste prédio da rua Ungargasse, em Viena. Neste período, ele cuidava do sobrinho Karl, que ficara sob sua tutela após a morte do irmão do compositor. O relacionamento entre o garoto e seu tutor era difícil, e em 1826 Karl tentou o suicídio. Beethoven ficou arrasado.
Foto: GNU / Wikipedia / Pressemappe
A Casa de Beethoven
Ludwig van Beethoven nasceu nesta pequena casa em Bonn, em dezembro de 1770, e lá viveu até 1792, quando se mudou para Viena. A Beethovenhaus é agora um museu com grande coleção de manuscritos, instrumentos e outros objetos pertencentes ao famoso compositor.
Foto: picture-alliance/dpa
Heiligenstadt: a Probusgasse em 1898
Em 1802, pouco após começar a perder a audição, o compositor mudou-se para Heiligenstadt, nos arredores de Viena. Esta foto, tirada em 1898, mostra uma rua principal da cidade. Durante essa estadia, Beethoven redigiu o famoso 'Testamento de Heiligenstadt', uma carta aos irmãos Johann e Carl, jamais enviada. O documento expressa sua luta contra a progressiva perda da audição.
O último piano de Beethoven
Beethoven aprendeu a tocar piano ainda criança, e compôs numerosas sonatas, concertos e outras obras para o instrumento. Beethoven era fascinado pelo Iluminismo e pelo novo movimento romântico da Europa. Sua música é revolucionária e foi decisiva na transição do estilo musical do Classicismo para o Romantismo.
Foto: picture-alliance/akg-images
O crânio de Ludwig van Beethoven
Esta reprodução do crânio de Beethoven encontra-se no Centro para Estudos sobre Beethoven da Universidade de San José, Califórnia. O crânio foi doado ao centro por um executivo californiano descendente do médico vienense Romeo Seligmann. Este recebera secretamente fragmentos do crânio de Beethoven em 1863, quando os restos do compositor foram exumados.
Foto: AP
Ludwig van Beethoven em 1803
Em 1792, Beethoven mudou-se para Viena, onde estudou com diversos mestres. O jovem compositor tinha esperanças de conhecer Mozart, contudo chegou à cidade um ano após sua morte. Embora Beethoven fosse visto como virtuose, seus mecenas muitas vezes não o financiavam de modo suficiente, e ele contraiu grandes dívidas.
Foto: Christian Hornemann / Wikipedia
La Redoute
Beethoven estudou sob a tutela do famoso compositor Joseph Haydn. As aulas foram combinadas durante um encontro entre os dois músicos no salão La Redoute, que ainda hoje é palco de bailes e concertos. Consta que a ópera de Mozart "A Flauta Mágica" teve uma de suas primeiras apresentações neste local. O prédio em estilo clássico está localizado em Bad Godesberg, perto de Bonn.
Foto: Presseamt Bundesstadt Bonn
Manuscrito da Nona Sinfonia
A Nona Sinfonia é provavelmente a obra mais famosa de Beethoven, tendo-se tornado o hino da União Europeia. Consta que, ao reger a estreia desta obra, a surdez do compositor era tão completa que alguém teve que girá-lo em direção à plateia para que ele percebesse o aplauso entusiástico. Diz-se que Beethoven chorou, ao perceber que não ouvia nada.
Foto: picture-alliance/dpa/dpaweb
O funeral de Beethoven, por Franz Stober
Beethoven morreu em 26 de março de 1827, de um mal que lhe atacou o fígado e os intestinos. Esta pintura de Franz Stober mostra seu funeral no dia 29 de março, em Viena. Conta-se que cerca de 20 mil pessoas compareceram à cerimônia.
Aparelho de surdez sob medida
Beethoven começou a perder a audição em 1795. Em 1808, sua deficiência estava agravada, e 10 anos depois ele estava completamente surdo. Esta "trombeta auditiva" foi especialmente criada para ele pelo amigo Johann Maelzel, um inventor vienense. Beethoven usava cadernos para se comunicar por escrito. Apesar de a surdez não tê-lo impedido de compor, o diálogo com outras pessoas era muito difícil.