Como compras de vacina enredaram Bolsonaro em escândalos
6 de julho de 2021O debate público sobre a atuação do governo Jair Bolsonaro na pandemia covid-19, que há mais de um ano girava em torno de uma postura de negação às recomendações científicas, mudou de foco em junho e passou a se debruçar sobre escândalos de corrupção e negociações suspeitas para a aquisição de imunizantes.
O fio do novelo começou a ser puxado no caso da vacina indiana Covaxin, quando um servidor do Ministério da Saúde disse, em depoimento ao Ministério Público Federal, que havia sofrido uma pressão incomum para acelerar os trâmites para importar o imunizante.
Nas semanas seguintes, mais detalhes sobre a compra da Covaxin vieram à tona e envolveram Bolsonaro e o líder do governo na Câmara, o deputado Roberto Barros (PP-PR), e novas investigações foram abertas, potencializadas pelo trabalho da CPI da Pandemia.
Os escândalos não se limitaram ao imunizante indiano. Estouraram também acusações de um suposto pedido de propina em uma oferta inusitada de doses da AstraZeneca, e surgiram conexões de Barros com uma intenção de compra da vacina da chinesa CanSino, que seria a mais cara já adquirida pelo governo.
Entenda cada uma dessas histórias:
Primeiro, Covaxin implicou Bolsonaro e líder do governo
A compra da Covaxin pelo Brasil foi anunciada em 26 de fevereiro e envolvia o fornecimento de 20 milhões de doses de março a maio, no valor total de R$ 1,6 bilhão. Cada dose sairia por 15 dólares, o que fez dela a vacina mais cara negociada pelo Brasil naquele momento. Nenhuma chegou a ser entregue, devido a restrições da Anvisa e outros problemas.
Desde o início, a decisão de comprar esse imunizante destoava da postura do governo em relação a outras vacinas: foi tomada de forma muito rápida, antes que o resultado do ensaio clínico de fase 3 fosse divulgado e sem que ele estivesse autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Além disso, foi fechado por meio de uma empresa intermediária, a Precisa Medicamentos, em vez de direto com a farmacêutica.
Em abril, a Procuradoria da República no Distrito Federal instaurou um inquérito civil público para apurar a prática de improbidade administrativa no contrato. Nesse procedimento, Luís Ricardo Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde e chefe da divisão de importação da pasta, relatou ter sofrido pressões incomuns para acelerar os trâmites da Covaxin e ouvido pedidos para que a Anvisa abrisse uma exceção.
Miranda é irmão do deputado Luís Miranda (DEM-DF), que em 23 de junho chamou mais atenção ao caso. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ele disse ter informado pessoalmente Bolsonaro em 20 de março de suspeitas de irregularidades envolvendo a Covaxin, que incluía um pedido de pagamento adiantado de 45 milhões de dólares (R$ 234 milhões) não previsto em contrato.
Depois, em depoimento à CPI da Pandemia , o deputado Luiz Miranda confirmou ter alertado Bolsonaro e foi além. Segundo ele, o presidente disse que encaminharia o caso à Polícia Federal (PF) e que Barros estaria por trás do "rolo" da Covaxin. A PF não abriu à época investigação sobre o caso, e Barros – que nega ter participado de qualquer negociação relacionada à compra da vacina – seguiu líder do governo.
Outros elementos ligam a compra da Covaxin a Barros. A fiscal desse contrato no Ministério da Saúde, Regina Célia Silva Oliveira, havia sido nomeada à pasta quando Barros era ministro da Saúde, no governo Michel Temer. Ela prestou depoimento à CPI nesta terça-feira, e negou ter sofrido qualquer pressão.
A Precisa Medicamentos, que intermediou a compra da Covaxin pelo Brasil, é de Francisco Emerson Maximiano, que também é sócio da Global Gestão de Saúde. Em dezembro de 2018, o Ministério Público Federal instaurou uma ação de improbidade administrativa contra Barros pelo pagamento antecipado de R$ 20 milhões à Global, feito na sua gestão à frente da pasta por medicamentos que não foram entregues.
O Ministério da Saúde suspendeu o contrato de compra da Covaxin em 29 de junho, após recomendação da Controladoria-Geral da União (CGU), que também apura o tema.
Depois, caso Covaxin virou inquérito no STF e entrou em pedido de impeachment
As revelações sobre as negociações para a compra da vacina indiana levaram a CPI a pedir que o Supremo Tribunal Federal solicitasse à Procuradoria-Geral da República (PGR) que investigasse Bolsonaro pelo crime de prevaricação, que ocorre quando um servidor público, no caso o presidente, não toma um ação que deveria ter sido tomada para satisfazer um interesse pessoal.
A PGR inicialmente pediu para aguardar o fim da CPI antes de abrir o inquérito, mas Weber rejeitou a argumentação, dizendo que o órgão não era "espectador das ações dos Poderes da República". A PGR então abriu o inquérito, autorizado pela ministra na última sexta-feira.
Um dia antes, a Polícia Federal também abriu outro inquérito para investigar o caso, a pedido do ministro da Justiça, Anderson Torres.
Além disso, a acusação de que Bolsonaro teria cometido o crime de prevaricação foi incluída em um pedido de impeachment apresentado por partidos e movimentos de oposição na última quarta-feira. Também vinculado ao caso Covaxin, os autores acusaram o presidente ainda por denunciação caluniosa, em função de Bolsonaro ter ordenado que a PF investigasse o servidor Luis Ricardo Miranda após ele ter dito que havia avisado sobre as irregularidades.
Nesta segunda-feira, o Tribunal de Contas da União pediu ao Ministério da Saúde explicações sobre a compra da Covaxin. O ministro Benjamin Zymler, relator do caso, deu dez dias para a pasta entregar documentos. Um dos pontos que o TCU quer esclarecer é por que, em novembro, a vacina havia sido oferecida ao governo a 10 dólares a dose, e o acordo foi assinado em fevereiro a 15 dólares a dose. O tribunal já havia solicitado informações sobre o tema, que ainda não foram prestadas.
O governo federal diz que Bolsonaro comunicou as suspeitas ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que teria avisado o então secretário-executivo da pasta, Élcio Franco. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), afirmou que as denúncias foram apuradas, mas não foram encontradas irregularidades.
No meio disso, acusação de propina em doses da AstraZeneca
Enquanto o governo tentava lidar com as revelações e perguntas não respondidas sobre a Covaxin, um segundo escândalo estourou, agora envolvendo uma negociação suspeita para a compra de 400 milhões de doses da vacina produzida pela AstraZeneca.
Luiz Paulo Dominguetti Pereira, policial militar em Minas Gerais que também atuava como representante da empresa Davati Medical Supply, disse em entrevista publicada em 29 de junho pelo jornal Folha de S.Paulo que Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística do Ministério da Saúde, cobrou propina de 1 dólar por dose para que a pasta fechasse a compra. Dias foi exonerado do cargo no mesmo dia.
Desde o início, a história tinha elementos suspeitos. A Davati, sediada nos Estados Unidos, foi formada em 2020 e tem apenas três funcionários. A AstraZeneca declarou que não negocia vacinas com entes privados, negou ter trabalhado com a Davati e afirmou que todas as vendas no Brasil foram tratadas com a Fiocruz.
Em depoimento à CPI, Dominguetti disse ter se reunido em 25 de fevereiro em um restaurante de Brasília com Dias e o tenente-coronel Marcelo Blanco, que então era assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. Ali, Dias teria feito o pedido de propina.
Dominguetti também relatou ter se reunido em outra data com Franco, então secretário-executivo do Ministério da Saúde, quando apresentou novamente a proposta de venda de vacina.
Dias prestará depoimento à CPI nesta quarta-feira. A comissão também já aprovou a convocação de Blanco, que falará aos senadores em data a ser agendada.
Governo deu aval a reverendo evangélico para conduzir negociação
Se as circunstâncias da negociação de 400 milhões de doses da AstraZeneca detalhadas por Dominguetti já eram inusitadas, elas ficaram ainda mais estranhas com novas revelações feitas pelo Jornal Nacional, da TV Globo, neste sábado.
Um reverendo evangélico, Amilton Gomes, recebeu aval formal do Ministério da Saúde para negociar com a Davati, em nome do governo brasileiro, a compra das supostas 400 milhões de doses. A autorização foi dada pelo diretor de Imunização do Ministério da Saúde, Laurício Cruz, em 9 de março.
Gomes é fundador e presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), uma organização privada. Ele já havia sido mencionada no depoimento do Dominguetti, como alguém que o ajudou a agendar sua reunião com Franco.
Em 10 de março, a tratativa entre Gomes e Cruz já estava formalizada no sistema eletrônico do Ministério da Saúde, e foi em seguida enviada para a secretaria-executiva da pasta.
Cruz também enviou e-mails a Herman Cardenas, presidente da Davati, confirmando que a Senah tinha aval do Ministério da Saúde para negociar a compra de vacinas. Nesse contato, o reverendo pede que a oferta de venda seja corrigida para o valor de 17,50 dólares por dose – três vezes mais do que o próprio governo pagou por dose da AstraZeneca em janeiro, comprada de um laboratório na Índia.
Segundo a TV Globo, a Senah informou à Davati o nome de duas empresas nos Estados Unidos onde poderia ser feito o pagamento de comissão, caso a compra fosse finalizada, ambas associadas ao reverendo. Uma delas também tem como diretor Daniel Fernandes Rojo Filho, que em 2015 chegou a ser preso nos EUA por fraude.
Cruz, do Ministério da Saúde, disse ter sido designado para negociar com Gomes, confirmou ter se reunido com ele e que deu andamento às tratativas, e afirmou que a pasta não conferia a idoneidade das pessoas que ofereciam vacinas.
Intenção de compra com laboratório chinês também na mira da CPI
Por fim, a CPI da Pandemia pretende investigar a negociação feita pelo Ministério da Saúde para aquisição do imunizante chinês Convidecia, do laboratório CanSino Biologics.
O Ministério da Saúde assinou em 15 de junho uma intenção de compra de 60 milhões de doses, a 17 dólares a dose – mais cara que a Covaxin e a da Pfizer/BioNTech –, totalizando cerca de R$ 5 bilhões. O contrato ainda não foi formalizado.
Assim como no caso Covaxin, a negociação envolvendo a Convidecia contou com uma empresa intermediária no Brasil, a Belcher Farmacêutica. Essa empresa é sediada em Maringá (PR), onde Barros, o líder do governo na Câmara, também ligado ao escândalo Covaxin, foi prefeito de 1989 a 1992.
A Belcher é apoiada por empresários bolsonaristas, entre eles Luciano Hang e Carlos Wizard, e tem como um de seus sócios o filho de Francisco Feio Ribeiro Filho, que foi presidente da empresa de urbanização de Maringá, a Urbamar, durante a gestão Barros como prefeito da cidade.
Além disso, Flávio Pansieri, advogado de Barros, atuou como representante legal da vacina Convidecia no Brasil, e participou de uma reunião com a Anvisa sobre o tema. Pansieri defende Barros em diversa ações, inclusive no Supremo.
A parceria entre a Belcher a CanSino, porém, foi rompida em 10 de junho, segundo a Belcher. A Anvisa confirmou que já ter sido comunicada pela empresa chinesa que a Belcher não a representa mais.
A Belcher é alvo de um investigação da Polícia Federal que apura a dispensa de licitação, superfaturamento e a baixa qualidade de testes para covid-19 comprados pelo Distrito Federal.
Senadores da CPI da Pandemia querem aprofundar no futuro as investigação sobre as tratativas do Ministério da Saúde para comprar a Convidecia.
bl (ots)