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Como funcionará o Marco Global da Biodiversidade

Laís Modelli Montreal
20 de dezembro de 2022

Países da ONU fecharam em Montreal acordo histórico para proteger 30% das áreas naturais e restaurar 30% dos ecossistemas degradados.

Ave exótica com asas abertas em área verde
Objetivo do acordo é frear a perda acelerada de espécies e proteger ecossistemas vitais para a segurança alimentar e econômicaFoto: Liu Xun/ Xinhua News Agency/picture alliance

Após dois anos de intensas negociações, 196 países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU) concordaram com um Marco Global para a Biodiversidade, com o objetivo de frear a perda acelerada de espécies e proteger ecossistemas vitais para a nossa segurança alimentar e econômica.

O documento foi publicado nesta segunda-feira (19/12), após 13 dias de negociações em Montreal durante a 15ª Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, a COP15.

O texto tem 23 metas que deverão ser alcançadas até o final desta década. A principal é proteger 30% das terras, oceanos, áreas costeiras e águas interiores (rios, reservatórios, várzeas, etc.) até 2030 em todo o mundo, e restaurar 30% dos ecossistemas já degradados – por isso, foi apelidada de 30 por 30.

"É o maior compromisso global da história com a conservação das áreas terrestres e aquáticas", afirmou Brian O'Donnell, diretor da organização Campaign for Nature.

Outro ponto importante do acordo é o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e da sua importância para a preservação da natureza.

Um dos temores dos povos indígenas era de que a meta de conservação de áreas e restauração de ecossistemas fosse usada para expulsar populações tradicionais de seus territórios de origem. Um levantamento da Iniciativa Rights and Resources mostrou que, entre 1990 e 2014, mais de 250 mil pessoas de 15 países foram expulsas de suas terras após elas serem sido transformadas em áreas de proteção.

Texto estabelece como meta reduzir a quase zero a perda de áreas de alta importância para a biodiversidadeFoto: JOAQUIN SARMIENTO/AFP/Getty Images

"Estamos satisfeitos que abordamos a experiência que os povos indígenas têm em relação à conservação da natureza. Embora não seja a redação exata que propusemos, é um bom compromisso", diz Jennifer Corpuz, representante do Fórum Indígena Internacional de Biodiversidade, que representa mais de 10 mil povos indígenas em todo o mundo. A redação inicial proposta pelo movimento era a de que terras indígenas fossem consideradas um tipo de terras protegidas.

"Não só no Brasil, mas no mundo todo, os povos indígenas são os guardiões mais eficazes e conhecedores da natureza. O reconhecimento explícito de seus direitos, territórios e conhecimento como a melhor forma de proteger a biodiversidade no texto final é um marco importantíssimo. Este reconhecimento só foi possível com a incisiva presença de lideranças indígenas globais na COP15, inclusive do Brasil, com uma forte delegação da APIB", diz Paulo Adário, estrategista de campanhas sênior do Greenpeace Brasil.

Fundo de compensação

Um item que provocou grande discordância entre os países foi a criação de um fundo para compensar povos indígenas e comunidades tradicionais pelo uso de recursos naturais e saberes tradicionais por países e empresas, como as indústrias farmacêutica e de cosméticos.

Esse fundo, chamado Acesso e Repartição de Benefícios, foi criado, mas segundo especialistas as regras de seu funcionamento ainda estão vagas.

"Teremos um fundo dos recursos genéticos da biodiversidade [princípios ativos extraídos de plantas, frutos, etc. para uso comercial], está decidido. Mas como será esse fundo e como ele será governado e operacionalizado será definido em dois anos, na COP16", diz Carlos Rittl, conselheiro sênior em política da Fundação Rainforest Noruega (RFN).

Segundo relatos de quem esteve nas reuniões a portas fechadas, os países que bloquearam as negociações até o penúltimo dia da COP15 foram os da União Europeia e o Japão, que se opunham às metas de criação de um fundo de financiamento da biodiversidade pelos países desenvolvidos e às que regularizavam o uso dos recursos genéticos retirados dos países pobres pelos países ricos.

"É hora de outros países com capacidade de contribuir se posicionarem. Países como o Catar, que acabou de gastar 220 milhões de dólares na Copa do Mundo de Futebol, Arábia Saudita, Cingapura, Emirados Árabes Unidos e outros estão em condições de contribuir [para o financiamento da biodiversidade]. Também acreditamos que a China, como a segunda maior economia do mundo, tem capacidade de aumentar seus compromissos financeiros", afirmou Mark Opel, finance lead da Campaign for Nature.

Experiência brasileira

O Brasil já tem em vigor uma normativa semelhante à do fundo de compensação, que foi mencionada durante as negociações em Montreal como um exemplo – imperfeito – de política pública para remunerar os povos indígenas e comunidades tradicionais pelo uso da biodiversidade.

É a chamada Lei da Biodiversidade, de 2015, que criou um fundo de repartição de benefícios. Essa norma determina que as empresas devem pagar às comunidades tradicionais e indígenas pelos recursos naturais e genéticos retirados dessas áreas para exploração.

Acordo foi assinado após 13 dias de negociações em MontrealFoto: Ryan Remiorz/AP/picture alliance

A lei brasileira estabelece que essas populações devem ser previamente consultadas e consentir antes de qualquer uso de seus recursos naturais. Após a exploração econômica de produto ou de material genético, deve ser repassado 1% da renda líquida obtida com a venda do produto ao Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios, que depois transfere o valor às comunidades indígenas ou tradicionais de onde o recurso foi retirado.

Cristiane Julião, indígena do povo Pankararu e cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, estava na COP15 e falou sobre a lei brasileira, à qual faz ressalvas. "Uma repartição de 1% é uma quantia vergonhosa. Deveria ser a partir de 1%, pelo menos. Estamos falando de um conhecimento tradicional passado de geração a geração, construído por centenas de anos", diz.

O Ministério do Meio Ambiente também esteve na COP15 para apresentar a lei brasileira. O atual ministro da pasta, Joaquim Leite, contudo, não compareceu.

Karen Oliveira, diretora para Políticas Públicas e Relações Governamentais da TNC Brasil, avalia que a criação de um fundo de compensação pela COP15 poderá pressionar o Brasil a aprimorar a sua norma sobre o tema.

Faltou ambição

Apesar de histórico, cientistas alertam que, devido à atual situação de devastação da natureza – a ONU estima que pelo menos um milhão de espécies estão em risco de extinção – o Pacto Global para a Biodiversidade deveria ser mais ambicioso. 

"[A meta] 30 por 30 é o mínimo absoluto que precisamos fazer para proteger e restaurar nossa biodiversidade. Dado que já perdemos 60% de nossas espécies terrestres nos últimos 50 anos, devemos entender que este é um ponto de partida, além de reconhecer que devemos trabalhar para além de 2030", alerta Kina Murphy, Atualmente, apenas 17% das áreas terrestres e 10% das áreas marinhas do planeta estão sob proteção. 

"O projeto diz proteção de pelo menos 30% da terra, água doce e oceano, mas é importante garantir que seja protegido 30% de cada um deles até 2030", complementa Enric Sala, ambientalista da Campaing for Nature. 

"Também precisamos que seja fortalecido a estrutura de implementação do Marco Global. Precisamos de cronogramas, responsabilidades etc. O texto está genérico, traz muitas intenções, mas não se compromete de forma clara sobre como fazer", diz Karen Oliveira.

Por outro lado, um ponto positivo que merece reconhecimento, segundo Murphy, é que o documento aborda a importância de restaurar o que já foi devastado: uma das metas do Pacto Global recomenda que os países restaurem, nos próximos oito anos, completa ou parcialmente pelo menos 30% dos ecossistemas terrestres e aquáticos degradados. 

Outras metas

O acordo também estabelece que os os países deverão eliminar progressivamente ou reformar até 2030 os subsídios que prejudicam a biodiversidade. Oliveira afirma que, nesse ponto, estão incluídos incentivos dos governos ao uso de agrotóxicos, o que deve impactar também o Brasil – um dos campeões em uso de pesticidas.

O texto prevê ainda que os países desenvolvidos invistam 20 bilhões de dólares ao ano em proteção da biodiversidade em nações mais pobres, quantia que deve ser elevada para 30 bilhões de dólares anuais de 2026 a 2030.

"Apesar de não ser o suficiente globalmente, é aceno positivo ao Brasil, tornando mais fácil o cumprimento das promessas de Lula durante sua campanha", afirma Adário, do Greenpeace. 

Além disso, o documento estabelece como metas:

●      Reduzir a quase zero a perda de áreas de alta importância para a biodiversidade, entre elas, a Mata Atlântica brasileira.

●      Reduzir pela metade o desperdício global de alimentos.

●      Reduzir "significativamente" o consumo excessivo e a geração de resíduo.

●      Reduzir pela metade o uso e os riscos ao meio ambiente decorrentes do uso de pesticidas e produtos químicos altamente perigosos na agricultura.

●      Prevenir a introdução de espécies exóticas invasoras e erradicar ou controlar espécies exóticas invasoras em ilhas e outros locais prioritários.

●      Exigir que empresas e instituições financeiras grandes e transnacionais monitorem, avaliem e divulguem de forma transparente seus riscos, dependências e impactos sobre a biodiversidade por meio de suas operações, cadeias de suprimentos e de valor.

O acordo também recomenda aos países a monitorar e relatar a cada cinco anos ou menos um conjunto de indicadores relacionados que serão usados para medir seus progressos no marco global. 

Entre os medidores de avanço das metas, os governos deverão relatar nos próximos anos, por exemplo, a porcentagem de terra e mar efetivamente conservada, enquanto que as empresas de cada país deverão divulgar seus impactos na natureza e demonstrar como elas dependem da biodiversidade para suas atividades para se possa colocar em prática a repartição de benefícios. 

"O texto final não inclui a obrigatoriedade desses relatórios por parte das empresas, mas determina que deverão se preparar para passar a fazer esse tipo de documento. Consideramos esse um fator de fundamental importância, afinal, mais da metade da produção econômica mundial (44 trilhões de dólares por ano) é moderada ou altamente dependente da natureza", diz Ricardo Mastroni, diretor executivo do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS).

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