Governo e oposição travam guerra há um ano, e o maior prejudicado é o próprio país. Situação não era diferente quando o PT estava do outro lado, na era FHC. Como o país pode se livrar de um ambiente político tão tóxico?
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No final de 2002, poucas semanas antes de deixar o poder, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) comentou sobre o papel da oposição feita pelo PT durante seu governo. "O PT foi contra tudo, sem nem pestanejar. Moveu processo sem base, pediu impeachment a toda hora, botou 'fora FHC' três meses depois de eu ter obtido vitória por maioria absoluta", disse na ocasião.
Em novembro de 2014, poucas semanas após conquistar um segundo mandato, foi a vez de a presidente Dilma Rousseff (PT) fazer um discurso similar, desta vez acusando o PSDB, que passou para a oposição em 2003 e que desde o último pleito adota uma tática de confronto. "Esses golpistas que hoje têm essa característica, eles não nos perdoam por estar tanto tempo fora do poder", afirmou.
Os dois discursos ocorreram com um intervalo de 12 anos, mas ilustram uma característica que, segundo especialistas, é persistente na cultura política brasileira: o oposicionismo destrutivo, que tem como máxima o "nós contra eles" a qualquer preço, que não considera regras institucionais ou uma visão de longo prazo.
"Infelizmente, a cultura política nacional ainda é marcada por uma característica predatória, em que o convívio democrático entre diferentes setores é a exceção. Isso faz com que quem está na oposição tenha como missão apenas conquistar ou recuperar o poder, e não fazer avançar sua agenda de outra forma ou pensar no bem comum. Tanto a esquerda como a direita exibem esse comportamento", afirma o cientista político Renato Perissinotto, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Como exemplo recente desse método de oposição, Perissinotto cita uma das medidas tomadas pela chapa do senador e candidato derrotado à Presidência Aécio Neves (PSDB-MG) após as eleições: o pedido de auditoria para comprovar a "lisura" da segurança das urnas eletrônicas sem apresentar qualquer caso concreto que botasse em dúvida a inviolabilidade dos equipamentos. "Não havia nenhum motivo para fazer isso e alimentar essa desconfiança na população, a não ser criar um fato para continuar a mobilizar o eleitorado do partido", afirma. Em outubro, o próprio partido acabou concluindo que não havia indícios de fraude.
Para o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, autor do texto Quem vai dar o golpe no Brasil – que em 1962 antecipou em dois anos o risco de uma sublevação militar no país – é compreensível certo tipo de inconformismo por parte da oposição depois de uma derrota eleitoral, mas a persistência desse sentimento denota imaturidade.
"A estridência oposicionista se aproxima da sublevação institucional. O inconformismo com a derrota eleitoral foi, durante algum tempo, compreensível. Resmungos, suspeitas de ilicitudes, impossíveis sonhos de reescrever a história fazem parte do luto. De duração curta, contudo. (...) Negar ao vitorioso o direito de governar expressa imaturidade política ou aventureirismo", afirma.
Votações contraditórias
Após a derrota eleitoral, o PSDB, tal como o PT havia feito mais de uma década antes, também passou a votar contra o governo em várias discussões no Congresso e a fazer avançar as chamadas "pautas-bomba" para prejudicar o financiamento do governo.
É como se os partidos brasileiros não tivessem a menor noção do significado de 'oposição responsável', voltada para o bem coletivo. Cada um olha apenas o seu próprio umbigo", diz o professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"O PSDB adotou a atitude do PT de antanho, vindo a criticar as medidas de ajuste fiscal como se essas fossem prejudiciais ao país. Ora, essas medidas seriam muito parecidas com as que Aécio Neves viria a implementar caso tivesse sido eleito. Neste sentido, os tucanos são contraditórios consigo mesmos. Exercem uma oposição irresponsável, apostando também no fracasso. Acontece que um fracasso das atuais medidas econômicas, mais do que uma disputa partidária, mostrar-se-ia extremamente daninho para o país."
Como deveria ser
Para cientistas políticos, uma oposição construtiva não significa uma oposição dócil ou inteiramente colaborativa. "É óbvio que ela tem que saber se diferenciar da situação e apontar problemas, assim o eleitorado pode enxergar uma alternativa", afirma o cientista político francês Stéphane Monclaire, da Universidade de Sorbonne.
Para Monclaire, um dos caminhos para construção de uma oposição construtiva é aumentar a disciplina partidária. "Infelizmente, hoje a maior parte dos partidos, incluindo siglas da oposição no Brasil, servem de veículos para interesses individuais. Não há disciplina ou orientação ideológica. Assim fica mais difícil direcionar a força para um programa comum", afirma.
Perissinotto também compartilha dessa opinião. "Nos EUA, o Partido Republicano tem ficado mais radical nos últimos anos, mas ainda possui alas capazes de censurar membros mais exaltados em questões sensíveis. É o que tem acontecido com Donald Trump. Os setores mais tradicionais, em vez de abraçar um candidato que tem deslanchado nas pesquisas, passaram a censurá-lo por suas posições extremistas, como no caso das opiniões de Trump sobre os muçulmanos. Aqui, uma coisa similar segue apenas um cálculo político. Setores do PSDB que estavam contra o impeachment só o faziam porque achavam mais interessante esperar por 2018", diz.
Altos e baixos da trajetória política de Dilma Rousseff
Ela foi a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Antes disso, lutou contra a ditadura militar e foi ministra de Lula. Eleita, o adversário passou a ser a crise econômica e a pressão pelo impeachment.
Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Contra a ditadura
Dilma Rousseff começou a vida política ainda jovem. No final dos anos 60, integrou organizações de combate à ditadura, até ser presa em janeiro de 1970 e torturada por mais de 20 dias. Quando deixou a prisão, no final de 1972, abandonou a luta armada e se mudou para o Rio Grande do Sul – onde se formou em Economia e ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Foto: AP/Arquivo Público do Estado de São Paulo
Ao lado de Lula
Dilma se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) em 2001, enquanto era secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, foi nomeada ministra de Minas e Energia. Em 2005, ela assumiu a chefia da Casa Civil no lugar de José Dirceu, após o escândalo do mensalão. A mudança marcou o início de uma reforma ministerial em meio à crise política.
Foto: Ricardo Stuckert/PR
"Ministra linha dura"
Enquanto era ministra-chefe da Casa Civil, Dilma anunciou a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007 – que acabou não se desenvolvento tanto quanto o esperado –, e assumiu a direção de iniciativas como o programa Minha Casa, Minha Vida. Em 2009, apresentou o marco regulatório do pré-sal, definindo as regras para a exploração das recém-descobertas reservas de petróleo.
Foto: A. Nascimento/ABr
Luta contra o câncer
Em abril de 2009, a então ministra foi diagnosticada com câncer linfático. Após cirurgia para retirada do tumor e meses de radioterapia, Dilma anunciou estar curada em setembro do mesmo ano, já como pré-candidata do PT à sucessão de Lula. Na ocasião, falou à DW sobre o câncer: "Se você se desarmar diante da doença, ela vence. Mas, se não, percebe que a vida não acabou e que pode até ficar melhor".
Foto: AP
De coadjuvante a presidente
Em outubro de 2010, Dilma deixou se der coadjuvante no cenário político para se tornar sucessora das políticas do ex-presidente. Contra o tucano José Serra no segundo turno, ganhou a disputa com cerca de 55 milhões de votos válidos, e se tornou a primeira presidente mulher da história brasileira. Dilma assumiu o posto em 1º de janeiro de 2011.
Foto: AFP/Getty Images/Evaristo Sa
Primeiro discurso na ONU
"Pela primeira vez, na história das Nações Unidas, uma voz feminina inaugura o debate geral. É a voz da democracia e da igualdade se ampliando nesta tribuna", disse Dilma na abertura da 66ª Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2011. Em seu discurso, exaltou o papel feminino na sociedade e na política, lamentou a ausência palestina e defendeu a reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Foto: picture-alliance/dpa
Demissão de ministros
Dos 39 ministros que integravam a equipe da presidente eleita, oito deixaram seus cargos nos primeiros 14 meses de mandato, após escândalos deflagrados principalmente pela imprensa. Sete deles vinham do governo Lula, com exceção do ministro do Turismo, Pedro Novais. Dos oito que caíram, apenas Nelson Jobim, então ministro da Defesa, não estava envolvido em denúncias de corrupção.
Foto: AP
Inclusão social
Ao longo do primeiro mandato, Dilma deu continuidade a programas sociais do governo Lula, como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, e realizou o leilão do Campo de Libra, no pré-sal, destinando recursos para educação e saúde. Novos programas também foram criados, como Pronatec e Mais Médicos, este último alvo de duras críticas das entidades médicas, que responderam com protestos e paralisações.
Foto: picture alliance/AE
Corrupção na Petrobras
Em março de 2014, a Polícia Federal deflagou a Operação Lava Jato, que investiga um megaesquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e dezenas de políticos – entre eles, os ex-ministros Edison Lobão e Antonio Palocci. O escândalo na estatal serviu de munição aos candidatos de oposição contra Dilma durante a campanha eleitoral daquele ano.
Foto: AFP/Getty Images/K. Betancur
Eleições acirradas
Dilma foi reeleita presidente em 26 de outubro de 2014, com 54,5 milhões de votos no segundo turno. Foi uma das eleições mais disputadas da história, com diferença de apenas 3,5 milhões de votos para o segundo colocado, Aécio Neves (PSDB). A campanha eleitoral foi marcada por ataques, escândalos e a morte de um dos presidenciáveis, Eduardo Campos (PSB), substituído por Marina Silva.
Foto: picture-alliance/dpa/Sebastião Moreira
Protestos e reprovação recorde
As manifestações de junho de 2013 apenas respingaram em Dilma. Em 2015, por outro lado, centenas de milhares de pessoas foram às ruas em todo Brasil para protestar especificamente contra o governo da presidente e os escândalos de corrupção. A gestão Dilma Rousseff, que chegou a ser aprovada por 73% dos brasileiros em pesquisa de 2011, viu essa taxa cair para 8% quatro anos mais tarde.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Orçamento com déficit
Em agosto de 2015, em guerra com o Congresso, o governo apresentou uma proposta de Orçamento para 2016 com previsão de déficit de 30,5 bilhões de reais, algo inédito. A decisão levou a agência de classificação de risco Standard & Poor's a retirar o grau de investimento do Brasil. Duas semanas depois, o governo anunciou o ajuste fiscal, aprovado pelo Congresso somente em dezembro.
Foto: picture-alliance/epa/F. Bizerra jr.
Pedaladas fiscais
No início de outubro, o Tribunal de Contas da União recomendou a rejeição das contas de 2014 do governo, devido às chamadas "pedaladas fiscais". A decisão é usada pela oposição para fundamentar um pedido de impeachment. Para reduzir despesas, Dilma anunciou o corte de oito ministérios, a extinção de 30 secretarias em todas as pastas e a redução em 10% do salário dos ministros e do seu próprio.
Foto: Reuters/U.Marcelino
Cunha: peça-chave do jogo político
Apesar de ser membro do PMDB, partido da base aliada, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, rompeu com o governo quando passou a ser investigado no escândalo da Petrobras. Em meio a denúncias de corrupção e ao aumento da pressão pela cassação de seu mandato, Cunha autorizou, em dezembro, o pedido de abertura de um processo de impeachment de Dilma. "Não me cabia outra decisão", afirmou ele.
Foto: reuters
Afastamento da presidência
Após cinco meses de debates acalorados e prolongadas sessões no Congresso – incluindo uma votação tumultuada na Câmara –, o processo de impeachment tem sua abertura aprovada pelo Senado em 12/05, marcando o ápice da mais grave crise política brasileira dos últimos tempos. Com isso, Dilma foi afastada da presidência por até 180 dias, enquanto enfrentaria julgamento por crime de responsabilidade.
Foto: Reuters/A. Machado
O impeachment
A etapa final do processo de impeachment – o julgamento no Senado – durou cinco dias, incluindo oitiva de testemunhas, a defesa pessoal de Dilma aos senadores e a votação final, que culminou no afastamento definitivo da petista da Presidência da República. Foram 61 votos favoráveis à cassação, ante 20 contrários. O Senado, porém, decidiu por manter o direito de Dilma de exercer cargos públicos.
Foto: Reuters/J. Marcelino
Discurso de despedida
"É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo", disse Dilma, ao se despedir do cargo, em 31 de agosto de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Tentativa de se eleger ao Senado
Com os direitos políticos mantidos após o impeachment, Dilma concorreu ao Senado por Minas Gerais nas eleições de 2018. Ela recebeu 15,29% dos votos válidos, número insuficiente para se eleger, ficando em quarto lugar.
Foto: Reuters/W. Alves
Volta ao Congresso após o impeachment
Três anos após seu afastamento do cargo, voltou pela primeira vez ao Congresso em 4 de setembro de 2019, para o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, que tem entre as principais bandeiras a luta contra as privatizações de estatais.
Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
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Para Monclaire, a elaboração de um programa também é um ponto fundamental para a construção de uma oposição construtiva. "Ninguém sabe exatamente até hoje, por exemplo, qual seria o plano de Aécio Neves diante de todos esses problemas econômicos e institucionais.
Os partidos de oposição só costumam delinear seus planos em cima da hora, pouco antes das eleições, e ainda assim eles são bastante vagos. Na França, na Alemanha ou no Reino Unido, por exemplo, os partidos de oposição traçam planos alternativos bem definidos, sem promessas vagas. Os custos apresentados em algum plano podem até ser arredondados, mas há uma ideia do que a oposição está propondo. Assim, no momento da eleição não se trata apenas de apostar simplesmente em outra figura para ocupar o cargo", afirma.
Por fim, Monclaire aponta que os oposicionistas têm sim o direito de explorar crises, mas também devem propor soluções nesses momentos, e não se colocar simplesmente como possíveis substitutos de um governo impopular. "A oposição fez seu papel ao denunciar a corrupção e os desvios na Petrobras, mas qual é exatamente o plano dela para estancar os roubos? Ela também tem que propor um plano para melhorar a eficiência da empresa e coibir desvios, acelerar os processos e a punição dos corruptos. Várias organizações, incluindo grupos que reúnem promotores, têm planos nesse sentido, mas a oposição não criou ou adotou nenhum. Ela apenas se limita a afirmar que tudo vai acabar se ela assumir", diz Montclaire.
Já Perissinotto, aponta que outras características da oposição construtiva, não é pensar somente nas eleições ou em tomar o poder, mas também pensar em projetos de médio e longo prazo para o país.
"Uma oposição construtiva não vive de ciclos eleitorais a cada dois anos, apenas na expectativa de tomar o poder. Ela aceita os resultados eleitorais e impõe barreiras para a exploração de crises que não devem ser ultrapassadas. Embora conserve diferenças, ela aceita a convivência com um governo com diferentes objetivos. Ela também deve pensar independente de partidos, analisando projetos de médio e longo prazo que beneficiem o país, mesmo que isso acabe por favorecer em algum momento o governo", afirma Perissinotto.