Mais de 95% das crianças brasileiras levam tapas dos pais. Mas a tradição, herança da colonização portuguesa, é condenada por psicólogos e educadores – e pode deixar cicatrizes: baixa autoestima, medo e agressividade.
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Uma brincadeira, um estrondo e estilhaços pelo chão. Renata quebrou o tampo de vidro da mesa da sala, e sua mãe, a dona de casa carioca Cristina, de 37 anos, ficou descontrolada. Recorreu a um velho corretivo para reprimir a menina de 6 anos: um tapa no bumbum. A pequena chorou e nunca mais pulou sobre os móveis da casa.
Embora a palmada tenha teoricamente surtido efeito, especialistas condenam a prática, que, argumentam, pode deixar cicatrizes como baixa autoestima, medo e agressividade. E alertam para a necessidade de buscar formas de punição reparatórias e não expiatórias. Ao contrário da canção popular, um tapinha, mesmo com a melhor das intenções, dói, sim.
"Às vezes, a criança faz uma malcriação e não adianta conversar. É preciso uma palmada para impor limites. Jamais vou ferir a minha filha. É apenas uma palmada! Eu confesso que me sinto péssima depois. Acho que dói mais em mim do que nela, mas se não for assim, ela não obedece", argumenta Cristina, convicta do seu método educativo.
É essa crença popular que assusta psicólogos e educadores. Somente em 2014 o Disque-Denúncia Nacional da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República registrou mais de 91 mil denúncias de violações de direitos das crianças e adolescentes no Brasil – sendo cerca de 70% dos casos episódios de violência doméstica.
Apesar da enorme diferença entre a palmada e o espancamento brutal, o psicólogo Cristiano da Silveira Longo, pesquisador da Universidade Federal do Sul da Bahia, adverte que até um leve tapa é um ato de violência arraigada na sociedade brasileira. Em sua tese sobre punição corporal doméstica de crianças, defendida na Universidade de São Paulo (USP), ele descobriu que mais de 95% das crianças brasileiras foram educadas à base de palmadas.
"Chegamos a quase 100%. A prática de bater para educar está presente em todas as classes, dos mais ricos aos mais pobres. É um ato que não educa e não estrutura a personalidade da criança. Toda palmada é um ato violento, e a pouca força que os pais acreditam usar num tapa nem sempre é a mesma percebida pela criança", afirma o pesquisador.
Até castigo é violência psicológica
Segundo ele, o castigo corporal no Brasil está diretamente atrelado ao passado colonial. Com a chegada dos jesuítas à Bahia, em 1549, a educação ganhou caráter punitivo. Os religiosos abominavam o tratamento dispensado pelos índios a seus filhos. Além de catequizá-los, era preciso, ainda, enquadrá-los nos preceitos portugueses. Com a recusa indígena a prestar mão de obra para os colonizadores, estabeleceu-se a cultura da violência. E após a chegada dos escravos da África, as punições passaram a visar aos negros.
"A palmada é a evolução dos resquícios da crença jesuítica de que a dor corrige os desvios da alma. Hoje, o pai que acha que está disciplinando ao bater, está, na verdade, extravasando o próprio estresse, mas não está ajudando na educação do filho", opina.
As situações que levam à palmada normalmente estão relacionadas a limites. Movida pela curiosidade, à medida que cresce, a criança tende a querer experimentar tudo e atravessar fronteiras. Cabe aos pais delimitá-las de maneira inteligente, em cooperação com os filhos.
"Existem formas construtivas de fazer com que a criança desenvolva sua moralidade. Se ela quebrou algo, é preciso que ajude a limpar ou consertar, dentro das possibilidades. Não se pode usar violência física, ou mesmo psicológica. Colocar de castigo, por exemplo, é uma prática altamente criticável. Quando se diz a uma criança de 5, 6 anos 'vá para o quarto pensar no que você fez', isso é uma espécie de tortura psicológica, pois ela não tem capacidade de refletir. Vai ficar ruminando, entregue a sentimentos negativos de vergonha, raiva, privação e vingança", aponta Longo.
Disciplina positiva aposta na conversa
A alternativa são técnicas que favoreçam o debate e a confiança. A educadora e doutora em Educação pela PUC-Rio Andrea Ramal diz que ainda chamam a atenção vozes contrárias à Lei do Menino Bernardo, a chamada Lei da Palmada, promulgada em 2014 para proteger crianças e adolescentes de castigos físicos. Segundo ela, a punição física está associada ao aumento do nível de agressividade infantil e pode ter sérias implicações na vida adulta, relacionadas à depressão, ansiedade e desajustes psicológicos.
“Os pais devem tratar os filhos como eles gostariam de ser tratados. Chamamos isso de disciplina positiva. Nessa linha educativa, em vez de bater, os pais usam técnicas para distrair as crianças e guiá-las amorosamente até que elas deixem de lado uma atividade inadequada. As regras são explicadas e até elaboradas em conjunto, como acordos. Os problemas são resolvidos com diálogo, para que a dignidade de todos seja preservada", explica a educadora.
Mudar o modo de reagir diante de pirraça e indisciplina não é fácil. Mas Andrea alerta para a necessidade de mais contenção dos pais – cada vez mais estressados no dia a dia. Por exemplo, se um irmão mais velho bate no menor, os pais devem, calmamente, dar mais atenção ao que foi agredido. Isso já daria à criança a dimensão da gravidade do que ela fez.
"Desde cedo, esta é a forma mais benéfica de educar, porque gera um comportamento correto, mesmo quando não há ninguém olhando. Você reforça a consciência e a responsabilidade, não o medo. Sem isso, vemos por aí adultos que dirigem sempre em alta velocidade e só reduzem quando há um radar pelo caminho. Não é isso que queremos. É preciso fazer o certo e incentivar o certo sempre", pontua Andrea.
O livro infantil declarou guerra
Enquanto os mais velhos lutavam nas trincheiras da Primeira Guerra, as crianças "viviam" o conflito nos livros infantis. Exposição na Alemanha mostra que nem tudo era propaganda nacionalista.
Foto: DW/S. Hofmann
Papai na guerra
Quando em 1914 a Europa – e depois o resto do mundo – entrou em guerra, o conflito não passou despercebido pelas crianças. Afinal, seus pais e irmãos as tinham deixado em casa para irem lutar nos campos de batalha. Também não é surpreendente que inúmeros livros juvenis e infantis dessa época retratem a guerra de diferentes maneiras.
Foto: DW/S. Hofmann
Sobre heróis e outros contos
Esse é o tema da exposição "O livro infantil declara guerra", que reúne 200 livros, brochuras e folhetos no Museu dos Livros Ilustrados em Troisdorf, na Alemanha. "Tem de tudo na exposição, de uma literatura patriótica e belicista adequada a qualquer idade até livros moderados, que chamam a atenção para o fato de que os inimigos também eram seres humanos", afirma a curadora Carola Pohlmann.
Foto: DW/S. Hofmann
Da Guerra Franco-Prussiana até o nazismo
A exposição abrange desde o fim da Guerra Franco-Prussiana, em 1871, até a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, o que permite identificar a influência da literatura de guerra em mais de uma geração. Mas o ponto forte são os quatro anos da Primeira Guerra Mundial. Na foto, o "Divertido livro infantil de guerra", de 1916, mostra crianças vestidas com uniformes de soldados a expulsar os inimigos.
Foto: DW/S. Hofmann
Humor na guerra? Parece que não...
Os ingleses são conhecidos por seu humor negro, e isso vale também para livros infantis. "No entanto, até os britânicos deixaram de lado o humor diante das atrocidades da guerra. O que significou uma perda para a literatura infantil", comenta Pohlmann, que avaliou uma enorme quantidade de material para compor a exposição.
Foto: DW/S. Hofmann
Brincando de guerra
Diversos livros infantis têm um caráter lúdico, como uma versão em francês de Chapeuzinho Vermelho em que franceses e seus aliados belgas e ingleses lutam contra o Lobo Mau, neste caso a Alemanha. Como também comprova a imagem de um livro infantil alemão, a guerra era também encenada como um jogo, na maioria das vezes fácil de ganhar.
Foto: DW/S. Hofmann
Cartas e jogos de tabuleiro
Além dos livros, brincava-se de guerra também com cartas e jogos de mesa, como mostra o baralho "O mico preto da Sérvia" (Schwarzen Peter aus Serbien). Por trás dos jogos bélicos estavam não somente os aspectos educacionais e de propaganda, mas sobretudo as questões comerciais. Para as editoras, a guerra foi uma boa oportunidade para fazer dinheiro.
Foto: DW/S. Hofmann
Matéria no quadro: guerra!
Os livros não eram lidos apenas em casa. Também na escola os professores davam lições patrióticas sobre a guerra. Frequentemente as aulas eram suspensas porque a escola era transformada em hospital, ou porque não havia carvão e madeira para o aquecimento.
Foto: DW/S. Hofmann
Livros para meninas
Grande parte da literatura de guerra apelava aos anseios de aventura da juventude e, conforme o pensamento da época, isso significava literatura para meninos. Mas as garotas também eram um público-alvo. As histórias para meninas se davam sobretudo no front, dentro da própria Alemanha – como nos contos "Cabeça teimosa" (Trotzkopf) ou "Caçula" (Nesthäkchen), passado em Berlim.
Foto: DW/S. Hofmann
Entre a impressão rápida e a arte
Em geral, os desenhistas tinham prazos muito curtos para ilustrar determinadas batalhas, afirma o pesquisador da área de literatura infantil e co-curador da exposição Friedrich C. Heller. Os livros franceses quase sempre chamavam a atenção por sua boa qualidade. Na imagem acima vê-se a invasão da Bélgica pelos alemães, representados pelo coturno gigantesco que esmaga a pequena cidade de Liège.
Foto: DW/S. Hofmann
Propaganda social na guerra
As crianças também apareciam em diversas brochuras e cartazes de propaganda, como nessa impressão de 1915. Abaixo da imagem lê-se "não vamos morrer de fome". A assistência social utilizava esses cartazes para arrecadar doações para alimentar as crianças. Afinal, não se pode esquecer que elas não conheciam a guerra somente dos livros, mas também viveram e sofreram com o conflito.
Foto: DW/S. Hofmann
Nada restou da euforia inicial
Com os mortos e feridos deixados pelo conflito, as ilustrações nos livros infantis se tornaram mais sombrias. Ao contrário das "engraçadas" histórias nas quais os heróis venciam rapidamente, em 1917 e 1918 algumas publicações passaram a mostrar cenas mais realistas dos horrores desta primeira guerra moderna, que inaugurou a utilização de tanques blindados e de gases venenosos.
Foto: DW/S. Hofmann
A Catedral de Reims
O cansaço da guerra também fez surgir, mesmo em pequena quantidade, uma literatura que pregava a paz. Na publicação francesa "Reims, a catedral" surge o sonho de um mundo sagrado, no qual a catedral bombardeada – símbolo da barbárie alemã na França – ressurge e une os povos.
Foto: DW/S. Hofmann
Paz? Só por um curto período...
Em 11 de novembro de 1918, o Império Alemão finalmente assina o armistício de Compiègne com os franceses e os ingleses. Mas a paz não duraria muito. Muitos dos jovens que leram os livros infantis durante a Primeira Guerra Mundial vestiriam os uniformes de soldado a partir de 1939, na Segunda Guerra Mundial.
Foto: DW/S. Hofmann
Poder das imagens
"Se, na infância, eu sou repetidamente submetido a determinadas imagens, então elas provavelmente vão marcar a imagem que tenho de mim mesmo como soldado ou combatente", comenta o especialista em livros infantis Heller. "O poder das imagens e dos textos não deve ser subestimado."