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EducaçãoBrasil

"Como vou passar em medicina assim?"

Estela Gomes
13 de maio de 2021

"Tive dificuldades como todo estudante, só não imaginava que meu maior desafio seria a minha família. Eles não se importam, me veem como uma dona de casa", escreve Estela Gomes, que não tem sossego em casa para estudar.

Pilha de livros
"Pensei em desistir diversas vezes pela minha condição financeira e instabilidade familiar, mas estou apenas começando"Foto: Fotolia/svort

Quando iniciei o ensino médio, já sentia que a ideia de fazer um curso superior estava distante. Mesmo assim, mergulhei na ilusão de que, se me dedicasse aos estudos na escola, conseguiria a tão sonhada vaga no curso dos meus sonhos: medicina. Como muitos estudantes, passei por diversas dificuldades, só não imaginava que o meu maior desafio seria lidar com a minha família.

Moro em um terreno com um núcleo familiar grande, recebia visitas constantes de primos e percebia minhas responsabilidades se acumulando. Perdi totalmente a privacidade e o silêncio. Quando tentava explicar a situação aos meus parentes, me diziam que eu tinha problemas psicológicos. Logo percebi que eles não me entendiam e não me respeitavam. Todo o plano de estudos que eu havia construído começou a desmoronar.

Durante o último ano, em meio à pandemia de covid-19, vivi tentando conciliar os estudos do terceiro ano do ensino médio com o trabalho doméstico, os cuidados com meus irmãos e com minha mãe, que tem uma doença crônica rara. Além disso, assumi responsabilidades que foram negligenciadas pelo meu pai. Ele dizia que "sua única função era trabalhar". Sou a mais velha, então tive que assumir sozinha a responsabilidade de cuidar dos meus irmãos. Era eu quem tinha que cobrar as tarefas escolares deles ou os levar a consultas médicas, porque meu pai não se importava com a saúde deles – para ele isso era responsabilidade exclusiva da minha mãe. Neste ambiente turbulento, eu também tinha constantemente a responsabilidade de separar brigas entre os dois.

Eu estudava sempre que tinha horas vagas, mas mesmo essas horas eram difíceis, pois meus pais pensam que estudar é equivalente a fazer nada. No último ano, vivi ouvindo que "eu não faço nada o dia todo". Além de não entender a importância dos meus estudos, a minha família fazia muito barulho durante o dia, atrapalhando a minha concentração.

Com o passar do tempo tentei abdicar de algumas tarefas para lutar lutar pelos meus estudos. Meu pai viu esse comportamento como o ápice da rebeldia, e minha mãe concordou com ele. Logo, ambos começaram a tirar meu acesso à internet. Às vezes ficava dias desconectada e tentava estudar pelos poucos livros que tinha em casa. Me senti triste, não conseguia fazer trabalhos escolares e, muito menos, estudar para o Enem.

Nunca imaginei que o meu próprio lar deixaria de ser um refúgio para se tornar um lugar impossível de permanecer. Durante a tarde nos dias de semana eu ia estudar na casa dos meus avós, que moram no mesmo terreno. Era um ambiente mais calmo, mas como agradecimento pelo grande favor e consideração que eles tinham por mim, ainda fazia a faxina da casa.

Medicina é um curso extremamente concorrido, e eu me sinto uma marionete dos meus pais. Estudando sozinha em casa, sem tempo para me concentrar, com pessoas me atrapalhando constantemente, decepcionada com a minha situação, como vou conseguir uma aprovação assim? A minha família não se importa. Não me veem como alguém que deve correr atrás dos próprios sonhos, mas como uma dona de casa.

Com tantas frustrações, imaginei que 2021 seria um reinício para minha vida de vestibulanda. Sonhei com minha aprovação escolar, mas nada disso aconteceu. A rede em que estudo comunicou que aprovaria os alunos até maio, arrastando o terceiro ano do ensino médio. Foi decepcionante ver o descaso que o Estado teve com os alunos de instituições públicas. Disso tudo, concluí que não posso fugir das minhas dificuldades, tampouco fingir que nada acontece. Faço o que é possível. Atualmente estudo em um cursinho pré-vestibular comunitário e trabalho com faxina. Pensei em desistir diversas vezes pela minha condição financeira e instabilidade familiar, mas estou apenas começando. Vou continuar lutando pelo meu sonho.

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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

A autora desta coluna preferiu assinar sob o pseudônimo Estela Gomes por medo de represálias em casa. Ela tem 18 anos e sonha em cursar medicina em uma universidade pública do Rio de Janeiro.

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A coluna quinzenal é escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade.