'Teatro música em 3 partes'
8 de maio de 2010Neste sábado (08/05), estreia Amazonas – Teatro música em três partes, na Bienal de Munique. Trata-se de uma coprodução desse festival de teatro-música contemporâneo com o Centro de Arte e Tecnologia de Mídia (ZKM), Instituto Goethe, Sesc de São Paulo, Teatro Nacional de São Carlos (Lisboa), e Hutukara Fundação Yanomami; e com parceria das emissoras Arte e Deutschlandradio. Os ensaios transcorreram entre a Alemanha e Portugal.
O projeto multimeios envolve três compositores: os alemães Klaus Schedl e Ludger Brümmer, e o brasileiro Tato Taborda. Nascido em 1960, em Curitiba, estudou e vive no Rio de Janeiro. Formado como violonista clássico, teve seus horizontes musicais ampliados por dois mestres de exceção: a pianista Esther Scliar e o compositor alemão Hans Joachim Koellreutter. Desde os anos 80 Taborda tem escrito intensamente para o teatro e a sala de concertos, e atua como pedadogo.
O interesse do compositor pelos sons da floresta também é de longa data. Partindo dos chamados de acasalamento dos sapos, ele chegou à fascinante teoria da "orquestração bioacústica". Para atrair o parceiro certo e poder perpetuar seus genes, cada uma das espécies animais noturnas depende inteiramente de ser ouvida no aparente caos acústico da noite. Para tal, escuta com atenção e instintivamente se encaixa na faixa de frequência e de tempo mais audível. Quem não encontra seu nicho no "biocontraponto" global, canta em vão e se leva à extinção.
Taborda é o responsável por A Queda do Céu, segunda parte de Amazonas. A Deutsche Welle conversou com ele no ZKM, em Karlsruhe.
Deutsche Welle: Já do ponto de vista material – aparato, financiamento, porte das instituições envolvidas –, Amazonas é um projeto de superlativos. Que, além de tudo, tem ainda a ambição de transportar grandes ideias: o contraste entre as culturas, a marcha funesta da civilização ocidental, a problemática do índio, o planeta em perigo. Não há o risco de sufocar debaixo de tanto conteúdo?
Tato Taborda: Você tem toda a razão: o que não falta nesse projeto, principalmente na parte em que estou envolvido, são ambições, no sentido de desafios ou opções muito arriscadas. Esse risco vai sendo minimizado na medida da qualidade dos interlocutores que a gente tem, dos assessores, dos consultores, dos "tradutores", que vão dando as broncas necessárias. Porque esse foi o desejo, desde o início, de experimentar essa mudança de perspectiva, e que em nenhum momento pode ser confundido com expressar a visão dos yanomami. Isso é um absurdo. A visão deles é deles, esta é a nossa. Mas nós nos permitimos ser contaminados pela visão deles, por aquilo a que pudemos ter acesso por conta de uma "tradução" virtuosa, da experiência nossa que está lá, dos conceitos que estão impregnados, do contato com eles.
"Tradução" em que sentido?
Tradução cultural do [antropólogo francês] Bruce Albert. Ele foi o nosso elo o tempo inteiro, e fez a ponte da informação para os dois lados, por estar há 35 anos com os yanomami e por ser uma pessoa muito sofisticada. Ele naturalmente fazia o trânsito das coisas. Durante todo o projeto, foi o consultor dessa forma de ver o mundo, de pensar, do que ela significa nas suas raízes mais profundas, conceituais e culturais. Ele foi nutrindo todo o projeto.
No meu caso particular foi fundamental, pois, à medida em que ele foi me aproximando desse universo, e da maneira como ele foi me relatando, a minha fantasia foi se incendiando. Porque é um nível de potência, poesia e delicadeza tal – uma combinação desses elementos com que a gente não está acostumado –, que a meta de fazer modelos a partir dessa informação vai ficando cada vez mais complexa. Porque a meta é muito alta.
O xamã [yanomami] vê e pensa, lê o mundo de uma maneira única. Ele recebe pequenos sinais, a que nós estamos expostos, mas que ele processa de uma maneira única, a ponto de fazer profecias em perfeita sintonia com as previsões dos cientistas ocidentais, com todo o seu arsenal de máquinas e sensores e equipamentos.
Nos preparativos para Amazonas, você passou duas semanas na aldeia Watoriki, em Roraima, em março de 2008 e julho de 2009. Dá para falar de um Tato Taborda "antes e depois" desse contato com os índios yanomami?
Com certeza. Na verdade, algumas coisas já estavam em estado latente, uma parte de mim já estava contaminada antes. Mas a clareza de algumas coisas veio mais forte depois disso. O que não significa demonizar, desautorizar ou dizer que a visão científica ocidental não vale para nada. É simplesmente perceber os limites e as armadilhas. As armadilhas das certezas imediatas; da dedução a partir das fontes disponíveis, mas que não necessariamente são as que poderiam alimentar o seu processo.
E, às vezes, a falta de sintonia com a própria matéria da qual a gente está falando, a falta de ouvir dela o que ela tem a dizer, mais do que simplesmente aplicar sobre ela um conjunto de algoritmos. Isso é muito difícil, pois não estamos acostumados a nos deixar permear pela matéria em estado bruto, natural, e extrair dela o sentido. Dá medo, inclusive, porque você está numa cartografia sem mapa, tem que apenas abrir seus poros e imaginar que, em algum momento, isso vai ter um resultado, vai transformar a sua percepção. Como isso vai ser transformado, você só vai saber quando começar o output nos seus mecanismos racionais.
Na parte dois, A Queda do Céu, você emprega um instrumentário pouco usual: dois trompetes, duas trompas, um trombone, uma tuba e percussão, 12 instrumentos de sopro yanomami – todos tocados por músicos do Teatro de São Carlos –, além de samples eletrônicos. Que tratamento dá às vozes?
Há dois "artistas vocais", Phil Minton e Christian Zehnder. O que sai da garganta desses caras, você não ouve normalmente. De um lado está o Xamã, do outro está o Xawara, que para os yanomami é o espírito das epidemias, associado aos objetos e aos comportamentos tóxicos do branco. Tudo isso gera uma fumaça para eles, é Xawara, que causa epidemias, doenças, destrói florestas. Esses dois personagens no plano mitológico agem sobre três personagens no plano... não vou dizer "real", porque, você vai ver a seguir, isso não é real.
Eles representam os três "vetores brancos" de entrada naquele ambiente, e são apresentados por três cantores líricos: Kátia Guedes (soprano), brasileira, e Nuno Dias (baixo) e João Cipriano Martins (tenor), ambos portugueses. O Cientista, que quer a posse do conhecimento, que corta tudo, que olha para a Amazônia como um armazém para o benefício da espécie. O Político, que quer a terra, o ouro, o que está embaixo da terra, não importa o que tenha que fazer para retirar. E o Missionário, que quer a posse das almas, e sofre se, por acaso, uma delas volta para o xamanismo, porque é uma derrota pessoal para ele.
Mas, na verdade esses personagens não são reais. Porque tudo o que se passa, esse labirinto – por onde o público também transita – é o próprio cérebro do Xamã. O que acontece ali são visões, são antecipações, são fantasmas na mente do Xamã, que percebe, que antecipa a entrada desses vetores e do risco que isso representa. E o cumprimento integral dessas três missões é a garantia de que o céu vai cair.
De seu lado, o Xamã tenta colocar uma série de obstáculos sonoros ao movimento deles, e o Xawara, do outro lado, quer impulsioná-los a seguir.
Então os dois planos – do mito e "real" – têm funções e tratamentos musicais diferentes?
Completamente diferentes. Os três personages empurram pelo labirinto caixas metálicas, que trazem sons característicos de cada um deles, que "explicam" o que eles são. Como tudo se passa na penumbra, tudo tem que ser expresso pelo som. O material são sons concretos, samples, mas também os sons dos instrumentos musicais, gravados: são duas orquestras que se comunicam, em polifonia, como um organismo só. Tudo isso é parte da, digamos, energia do Xawara.
E o Xamã, do outro lado, é sozinho, mas tem uma rede de 24 alto-falantes, a voz dele se multiplica pelo espaço, ele está em todos os lugares. Eu faço a direção de som junto como o Alexandre Fenerich, um compositor de São Paulo, que também processa a voz do Xamã ao vivo.
Você é o compositor brasileiro convidado para participar de um projeto internacional de larga escala. Esse status lhe dá uma responsabilidade especial?
Não por ser compositor brasileiro. A minha responsabilidade é por ter tido acesso a essa preciosidade, a essa informação, o conhecimento sobre os yanomami, o contato com essa diferença. E, uma vez isso tendo entrado, a responsabilidade aumenta muito.
Até no começo a situação foi um pouco desconfortável, porque eram só dois atos, duas partes, uma escrita por um compositor alemão, a outra por mim. E havia expectativa de que fosse uma visão de fora para dentro, e uma de dentro para fora. Mas eu não tenho a menor condição de dar uma visão de dentro, porque eu sou tão "de fora" quanto o compositor alemão. Aí, com a chegada dos yanomami [como codeterminantes do projeto], tudo isso ganhou um outro sentido.
E o terceiro ato veio depois, para resolver outras tensões...
Isso. Até porque acho natural que houvesse esse terceiro ato, acho que o público vai adorar ir para um espetáculo com três visões tão diferentes.
Para mim, o primeiro ato, que é baseado no texto de sir Walter Raleigh sobre a descoberta da Guiana, é o da antecipação da conquista. O segundo é a visão da própria conquista, através do olhar yanomami: como eles veem o missionário, o político, o cientista. Ao final, cai o céu, que é a profecia yanomami mais radical. E a terceira parte seria, uma vez que tudo isso já se acabou, a única experiência que se pode ter do que existia: é virtual. A água é agora uma projeção de "H2O" simulando o movimento aquático. A floresta é gerada eletronicamente a partir de um algoritmo milenar, que de certa maneira contém a "lógica" de como criar a vida.
Então, na minha cabeça foi a maneira como faz sentido as três partes acontecerem uma depois da outra.
Você tem esperanças de, através dessa obra de teatro-música, melhorar de algum modo a situação dos yanomami, da Amazônia, do planeta?
Desde o princípio, a impressão que eu tenho é que eles [os yanomami] é que nos escolheram por parceiro, mais do que o contrário. Eles anteviram que, de alguma maneira, podia ser um pequeno megafone, localizado, para um determinado público, mas que era importante que acontecesse, por ser um público formador de opinião, que no longo prazo pode ter um desdobramento maior, ou mesmo um impacto na política de cada um dos países envolvidos. Porque essas instâncias vão sendo convidadas ao processo, desde o princípio.
O que acontecer é decorrente da profundidade do mergulho, e da qualidade do alimento que a gente recebeu. O que resultar, o que reverberar, vai ser proporcional a esse input.
Entrevista: Augusto Valente
Revisão: Nádia Pontes