Compositores eruditos negros: vidas que também importam
6 de julho de 2020A especulação de que Ludwig van Beethoven talvez fosse negro, que circula há mais de um século, voltou a emergir nas redes sociais nas últimas semanas. Por exemplo, no Twitter sob o hashtag #BeethovenWasBlack?.
É certo que o gênio alemão do Classicismo musical tinha pele morena e cabelos negros e encaracolados, sendo por vezes chamado "o Espanhol". Seus antepassados vinham da Bélgica Flamenga, antes ocupadas por tropas espanholas que incluíam soldados mouros.
Além disso, Beethoven adorava síncopes e ritmos atravessados, como se encontram também nas tradições da África. Então teoricamente ele poderia ter algum sangue africano nas veias. Porém estudiosos sérios têm repetidamente desbancado tal teoria.
Há muito a política racial infiltra não só a história das artes: ativistas negros já reivindicaram Jesus Cristo e Sócrates para sua etnia. No campo da música, contudo, isso é antes um desserviço à amplitude e profundidade dos gêneros de inspiração africana, dos spirituals ao blues e o jazz, rock e hip-hop. A música com raízes nas tradições negras tem um alcance global, ultrapassando de longe o setor muito mais limitado da arte "clássica", "erudita", "de concerto" ou "séria".
Linguagem negra, artista branco – e vice-versa
Isso não impede que, contrariando todas as circunstâncias, alguns compositores negros tenham tentado estabelecer uma própria voz também no campo erudito. O fato de, até hoje, suas obras serem raramente executadas nas salas de concerto evidencia os obstáculos e preconceitos que enfrentaram. E mostra quanto terreno os promotores de música clássica ainda têm para cobrir.
O padrão se repete por todo o mundo ocidental, e as exceções só confirmam a regra. O primeiro compositor de ascendência africana de que se tem notícia na Europa foi Joseph Bologne, Chevalier de Saint-Georges (1745-1799), natural da colônia francesa Guadalupe. Filho de um fazendeiro branco e uma escrava de 16 anos, ele foi levado para a França ainda jovem.
Além de campeão de esgrima e coronel do Exército republicano durante a Revolução Francesa, Saint-Georges se tornou um virtuoso do violino, tendo dado aulas à rainha Maria Antonieta, e regeu o Concert des Amateurs, considerada a orquestra mais prestigiada da época.
Sua obra inclui diversas óperas e balés, 15 concertos altamente virtuosísticos para violino e orquestra, sinfonias e obras de câmara. Apelidado "Mozart Negro", consta que até mesmo Wofgang Amadeus invejava suas realizações musicais. Porém é inútil procurar qualquer elemento "negro" na arte do Chevalier: trata-se de música europeia para nobres europeus.
No Brasil, embora a herança sonora africana tenha sido extensamente explorada pela escola nacionalista, por nomes que vão de Oscar Lorenzo Fernández e Heitor Villa-Lobos a Francisco Mignone, Radamés Gnattali ou Mozart Camargo Guarnieri, são poucos os compositores identificados como afrodescendentes nos livros de história da música.
Entre as exceções mais notáveis estão o Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que deixou diversas peças sacras e camerísticas; o pianista e maestro Aurélio Cavalcanti (1874-1916); e Francisco Braga (1868-1945), autor do Hino à Bandeira, cuja vasta obra inclui poemas sinfônicos e três óperas.
O século 21 trouxe perspectivas para uma nova geração de compositores afro-brasileiros, inclusive com projeção no cenário internacional, abrindo um capítulo da música erudita brasileira que ainda está sendo escrito.
Aclamação e esquecimento
Nos Estados Unidos, a aspiração negra às salas de concerto e casas de ópera é bem documentada. O primeiro afro-americano citado como "compositor sério" é Scott Joplin (1868-1917), cognominado "Rei do Ragtime" – estilo muito apreciado na virada do século, caracterizado por ritmos sincopados, ou "rasgados" (ragged).
Não contente em elevar esse gênero popular a um alto grau de refinamento (muitos comparam suas peças para piano às valsas de Frédéric Chopin), e ter, por exemplo, seu Maple Leaf Rag tocado em praticamente todo salão de música americano, na época, o filho de um ex-escravo aspirava ao reconhecimento como músico de concerto.
Tendo se defrontado com obstáculos intransponíveis durante a vida, é somente em 1973, através do uso na trilha sonora do filme Golpe de mestre, com Paul Newman e Robert Redford, que as peças de dança de Joplin passam a ser reconsideradas e a receber a devida apreciação musicológica.
Depois desse primeiro empurrão, alguns anos mais tarde sua única ópera, Treemonisha, de 1911, é finalmente estreada. E sua sepultura anônima no bairro nova-iorquino de East Elmhurst recebe uma placa de homenagem. Hoje, Joplin é cultuado como um dos pais do jazz – embora suas obras sejam muito clássicas na forma, conteúdo e harmonia.
Outros músicos de cor, como o britânico Samuel Coleridge-Taylor (1875-1912), apelidado "o Mahler Africano", e os americanos William Grant Still (1895-1978) e William L. Dawson (1899-1990), igualmente procuraram dar identidade étnica a suas obras, integrando nelas elementos de spiritual e gospel.
Contudo, apesar de elogiadas, nenhuma dessas composições se firmou no repertório. A Negro Folk Symphony de Dawson, por exemplo, composta em 1934 (um ano antes de Porgy and Bess, de George Gershwin, a mais famosa "ópera negra"), foi aclamada por um crítico como "a mais distintiva e promissora proclamação sinfônica americana realizada até então". No entanto, após algumas apresentações, desapareceu dos programas de concerto.
Liberdade e igualdade – mas nem tanto assim
"Para começar, tenho duas desvantagens – do sexo e da raça. Sou uma mulher, e tenho algum sangue negro em minhas veias", escrevia em 1943 a compositora Florence B. Price (1887-1953) ao regente Serge Koussevitzky. Mas determinação não lhe faltava: criança-prodígio, publicou sua primeira composição aos 11 anos, e se formou adolescente no Conservatório de New England.
Divorciada e mãe solteira, se mantinha como professora de música e organista de cinemas mudos, além de compor para a publicidade no rádio. Apesar de todas as barreiras, conseguiu chegar até as salas de concerto, também com obras sinfônicas. Um crítico do Chicago Daily News louvou sua Songs to a Dark Virgin como "um dos maiores sucessos imediatos jamais obtidos por uma canção americana".
Mas é sintomático o fato de a "Pátria da Liberdade" ter esperado até 1996 para conceder ao primeiro compositor negro seu mais conceituado prêmio na área cultural, o Pulitzer.
George Walker (1922-2018) foi laureado por Lilacs, para voz e orquestra, sobre um poema de Walt Whitman lembrando a morte de Abraham Lincoln. Aluno do compositor americano Samuel Barber, suas cerca de 100 composições cobrem uma ampla gama de estilos e linguagens, de Claude Debussy e Igor Stravinsky à música atonal e serial.
Em 2020, o Pulitzer de música voltou a ser entregue a um afro-americano, Anthony Davis (*1951), por The Central Park Five, sobre a prisão e condenação injusta de quatro adolescentes negros e um latino em 1989. Os promotores do prêmio a definem como "uma corajosa obra operística, marcada por poderosa escrita vocal e orquestração sensível".
Portanto nem a cor da pele, nem a temática de política racial de sua obra – que inclui títulos como X, The life and times of Malcolm X, Amistad e Wakonda's Dream – parece estar sendo obstáculo para o reconhecimento artístico do também pianista e professor da Universidade de San Diego.
Então, os tempos mudaram para os compositores negros no tão branco mundo da música clássica? Talvez ainda seja cedo para afirmar que sim.