Comissão da Verdade pode levar a punições, afirmam especialistas
16 de maio de 2012Tomaram posse nesta quarta-feira (16/05) os sete integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que investigará casos de violação de direitos humanos no Brasil entre os anos de 1946 a 1988. A expectativa, porém, é de que os integrantes da comissão, escolhidos pessoalmente pela presidente Dilma Rousseff, concentrem os trabalhos no período após o golpe militar de 1964.
Ao final de dois anos, o grupo montado por Dilma deverá apresentar um relatório conclusivo feito a partir da análise de documentos, muitos deles sigilosos, e depoimentos. No entanto, ainda que identifique envolvidos em torturas, assassinatos ou desaparecimento de militantes, uma possível punição dos responsáveis poderá esbarrar nos limites estabelecidos pela Lei da Anistia, de 1979.
Em 2010, a lei foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que rejeitou um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo a revisão do texto. Os ministros da suprema corte argumentaram que a anistia a guerrilheiros e agentes do Estado fora fundamental para garantir uma transição mais rápida e pacífica da ditadura para o regime democrático. A decisão, no entanto, é polêmica.
Questão de interpretação
"Essa interpretação do STF é política e absolutamente errada. E pior, afronta compromissos internacionais que o Brasil assumiu, como o Pacto de São José da Costa Rica [Convenção Interamericana de Direitos Humanos]", afirma o advogado criminalista Técio Lins e Silva, que defendeu dezenas de guerrilheiros em tribunais militares durante a ditadura. Hoje ele integra a comissão de reforma do Código Penal.
Para Silva, o equívoco estaria na interpretação do parágrafo 2º do artigo 1º da Lei da Anistia, o qual exclui dos benefícios da anistia "os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal".
"Se os 'subversivos' foram excluídos da anistia, como incluir os que praticaram esses crimes em nome do Estado?", questiona. "Essa inclusão dos agentes de Estado como beneficiados é uma mera interpretação da Lei de Anistia em nome da pacificação. É uma postura meramente política e não jurídica, de quem não quer confusão, não quer revelar a verdade", afirma Silva.
Pressão popular ao fim dos trabalhos
No entanto, para a juíza Renata Gil, vice-presidente de direitos humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma efetiva punição dos torturadores necessitaria uma alteração na legislação brasileira, já que a decisão do STF dificilmente será revista – ao menos por agora. Ela concorda que há uma grande expectativa com relação ao resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade.
"Embora se diga que o que se quer é levantar a história do país, a pressão popular e política será mais forte quando esses trabalhos indicarem possíveis executores e responsáveis por mortes e torturas", argumenta a juíza. Ela aposta em dois caminhos: a revogação da Lei da Anistia ou uma mudança de posicionamento do Judiciário.
Gil ressalta que já existe uma movimentação no meio jurídico para tentar contornar as barreiras impostas pela interpretação do STF. O Ministério Público Federal de São Paulo tem entrado com ações em varas federais pedindo a abertura da investigação de crimes de desaparecimentos nos tempos da ditadura.
Segundo Gil, a interpretação dos promotores é a de que não poderia haver um marco temporal nesses casos, pois não tendo sido encontrado o corpo, este seria um crime permanente, ou seja, ainda em vigor e, assim, fora do período estabelecido na Lei da Anistia.
Há ainda um pedido de embargo de declaração da OAB junto ao STF pedindo que os votos vencidos no julgamento de 2010 que manteve a validade da Lei da Anistia sejam rediscutidos.
Uma das questões que poderiam sensibilizar os ministros seria o fato de que, poucos meses após a sentença do STF, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro por não ter investigado crimes cometidos nas ações ordenadas pelo governo militar para reprimir a Guerrilha do Araguaia.
Técio Lins da Silva afirma que, caso o Brasil não aja de acordo com os tratados internacionais dos quais é signatário, e nos quais se compromete a investigar e punir autores de crimes contra os direitos humanos, será desmoralizado diante da comunidade internacional. "Deixa de ser um país respeitável para se incluir entre as republiqueta que praticam desrespeitos à cidadania e aos direitos humanos", diz Silva.
Críticas de todos os lados
A criação da Comissão da Verdade, no final do ano passado, ocorreu após intensos debates no Congresso Nacional e foi criticada por setores militares, os quais acreditam que os trabalhos do grupo podem "reabrir feridas". Por outro lado, vários integrantes de organismos que defendem a apuração dos fatos e a revelação do paradeiro dos cerca de 180 militantes ainda desaparecidos têm se mostrado céticos diante do caráter "não punitivo" da comissão.
Para Elizabeth Silveira, diretora do grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, a nova comissão é apenas uma resposta do governo à sentença da OEA e à comunidade internacional, que têm cobrado do Brasil avanços no esclarecimento de crimes contra os direitos humanos ocorridos durante a ditadura.
"O Brasil ainda nem sabe quem são esses violadores de direitos humanos. Esperávamos que um governo dito de esquerda enfrentasse essa situação", reclama, numa crítica aos oito anos da gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Já para Ivan Seixas, integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e do Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo, a comissão brasileira veio tarde, mas as expectativas são grandes. Segundo ele, o perfil "predominantemente jurídico" do grupo indicado por Dilma dá a esperança de que eles deem um bom embasamento legal aos trabalhos.
Seixas tinha apenas 16 anos quando foi preso e torturado com o pai, Joaquim Seixas, em 1971. Líder de um movimento revolucionário, Joaquim Seixas não resistiu à tortura e morreu. Ivan ficou nas mãos dos militares de São Paulo por oito meses e chegou a ser considerado desaparecido.
O ativista afirma que até hoje existe um "pacto de silêncio" envolvendo empresários de várias áreas – da construção civil às comunicações – que financiaram ações de repressão durante a ditadura. Segundo ele, essa seria uma das maiores dificuldades para investigar o regime militar. "A Comissão da Verdade abre espaço para quebrar esse pacto de silêncio."
Autora: Mariana Santos
Revisão: Alexandre Schossler