Condenados por genocídio têm reabilitação em Ruanda
Alex Ngarambe
17 de junho de 2023
Governo Paul Kagame oferece programa de reintegração a 20 mil que cumprem pena por participarem dos massacres de 1994 contra a etnia tutsi. Iniciativa visaria aliviar superpopulação carcerária e promover reconciliação.
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Joseph Ndagijimana, da Província do Norte de Ruanda, é um dos presidiários esperando serem libertados após cumprir pena por sua participação no genocídio de 1994, quando, em apenas 100 dias, estima-se que foram massacrados no país cerca de 1 milhão, a maioria da etnia tutsi.
Ndagijimana, que participou da chacina de seus vizinhos tutsis, diz saber que reintegração exigirá aceitação e confiança da sociedade: "Em breve vou terminar a minha sentença. Estou pronto para ir para casa e procurar perdão, porque eu mudei."
As marcas do genocídio em Ruanda, 25 anos depois
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Ele pretende confrontar seu passado honestamente: "Vou também revelar para os meus concidadãos a nova direção da minha vida: dar as mãos aos ruandenses para fazer boas ações e evitar os erros passados que me colocaram aqui."
Ao todo, mas de 20 mil participantes do genocídio estão recebendo o treinamento para reabilitação desenvolvido pelo governo do presidente Paul Kagame. Elegíveis para esse programa são os condenados a 20 a 30 anos de prisão. O governo em Quigali planeja libertar até 2.500 presos por ano, também com a finalidade de combater a superlotação das penitenciárias.
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Como encarar as vítimas do passado?
A reabilitação não é uma trajetória fácil. Segundo o funcionário do Serviço Correcional de Ruanda Jean Bosco Kabanda, o currículo a que os ex-presidiários se submetem contém elementos de crescimento pessoal para auxiliá-los a reconstruírem suas vidas e reencontrar um lugar na comunidade.
"As aulas de reabilitação que damos os ajuda nessa nova jornada. Não temos dúvidas de que eles vão se conduzir devidamente quando finalmente se reintegrarem na sociedade."
Ex-presos que já voltaram para casa relatam que a educação e orientação recebidas os ajudaram a reencontrar suas respectivas comunidades, segundo Kabanda. No passado, porém, a soltura de culpados de genocídio desencadeou ira entre os sobreviventes de 1994. Muitos temem que eles voltem a matar por motivos étnicos.
Para presidiários como Thomas Hategikimana, que cumpre pena de 30 anos e conta ser libertado dentro de dois, a preocupação é como encarar as vítimas dos próprios atos: "Eu conto em encontrar gente que talvez esteja sofrendo a dor que eu causei. Nem estou certo se estão vivos."
Alguns de seus vizinhos vivem a apenas poucos metros de distância: "Duvido se vou ter a coragem de pisar naquela aldeia. É duro, é por isso que estou apelando por ajuda. Espero que [os vizinhos] me aceitem."
Recuperando a esperança
Margaret Mahoro, atuante na ONG Inter-Peace, que colabora com o governo para reabilitar e realocar esses condenados, afirma que através da iniciativa governamental muitos recuperaram a esperança.
"Através desses programas, eles ganharam esperança de uma vida fora da prisão. Em vez de pensarem em suicídio depois da pena, eles agora falam sobre como conviver melhor com outros membros da sociedade."
Mahoro está convencida de que grande parte dos reabilitados quer se arrepender e coexistir pacificamente: "Antes, a maioria estava se debatendo com ideias de suicídio, a sensação de rejeição, e simplesmente preferia permanecer no cárcere."
O genocídio de Ruanda
O genocídio de Ruanda, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: Timothy Kisambira
Estopim do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação de rádio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura" incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura esportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. Ele permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste do Congo.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do governo. Os rebeldes assumiram o controle da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o presidente de Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebês, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.