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Conflitos por água aumentam no Brasil, aponta estudo

10 de novembro de 2023

Levantamento traz quase 3 mil ocorrências em 20 anos, com um aumento de 481% entre 2005 e 2021.

Mãos embaixo de água jorrando
Há conflitos envolvendo interesses de energia e transporte; ou irrigação e abastecimento; lazer e indústria; entre outros casosFoto: Uwe Zucchi/picture alliance/dpa

Diminuição do acesso, destruição, poluição e não cumprimento de legislação ambiental motivam um número crescente de conflitos pela água em todas as regiões do país. Esta é a principal conclusão de um estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicado nesta sexta-feira (10/11) no periódico Desenvolvimento e Meio Ambiente.

Dentre os quase 3 mil casos registrados desde 2003 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização cujos dados foram utilizados pelos pesquisadores, há desentendimentos que resultaram até em mortes em praticamente todos os anos da última década. "A CPT registrou 16 assassinatos acarretados por conflitos pela água no Brasil entre 2012 e 2020", pontua Gesmar Rosa dos Santos, vinculado ao Ipea e um dos autores do estudo. "Apenas em 2014, 2015 e 2021 não foram registrados homicídios. O pior ano foi 2020, com seis casos."

À DW, a CPT informou que em toda a série histórica já ocorreram 34 assassinatos em decorrência de conflitos pela água. "Destacamos o crime do Rio Abacaxis no Amazonas. A sucessão de acontecimentos que levou à execução de seis pessoas e deixou duas desaparecidas nas comunidades que vivem ao longo do rio Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, distante 135 quilômetros de Manaus, em agosto de 2020, deixa clara a violação de direitos humanos cometida por agentes a serviço do Estado", pontua a organização.

O ano com o maior número de conflitos foi 2019, quando foram registradas 506 desavenças  envolvendo 317 mil pessoas, conforme análise realizada pelo estudo, que esmiuçou as planilhas do CPT. Na média, ocorriam 63 casos nos primeiros anos da série histórica — e agora são 365 registros por ano. Por isso, os pesquisadores afirmam que houve um salto de 481% nas ocorrências.

Não é por acaso que o ano recorde coincide com uma grande tragédia ambiental brasileira, o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais. Santos explica que muitos conflitos foram decorrentes das consequências do acidente, por conta do impacto "nos estilos de vidas de populações tradicionais da região afetada, como quilombolas, indígenas, pescadores e pequenos proprietários rurais que tiveram sua vida modificada" e da "não solução definitiva e ressarcimentos".

Ele afirma que o número grande de registros se explica pela metodologia do CPT, que contabiliza pontualmente cada conflito em cada comunidade, em vez de considerar o evento macro como um todo. Isto faz com que as ocorrências sejam "diferentes do rompimento em si" da barragem, porque "os eventos modificaram os sistemas de produção e de vida dos habitantes".

Conflitos pela água

Para compreender melhor o cenário é preciso ter em mente o que são conflitos pela água. Segundo Santos, são as manifestações "de posições discordantes que geram atritos em torno do acesso, posse ou domínio sobre ela, afetando não apenas os usos humanos como também os regimes hídricos e ecossistemas".

"Por ser de vários tipos e distintas motivações, como econômicas, socioculturais ou ambientais, os conflitos podem variar", contextualiza o pesquisador. Há querelas envolvendo interesses de energia de um lado e transporte do outro; ou irrigação e abastecimento; lazer e indústria; entre outros casos. Também ocorrem brigas por conta de impedimento de acesso, pesca predatória, poluição que afeta povos ribeirinhos ou mesmo ameaças de danos.

"Os casos podem ser tácitos ou explícitos, desde obras públicas, apropriação particular, restrição de acesso até os atritos violentos como motins", detalha ele.

No período analisado pelos pesquisadores, o maior causador de conflito foram disputas entre grupos econômicos ou fazendeiros de um lado e povos tradicionais de outro — em 19% dos casos, ribeirinhos; em 17%, povos indígenas; quilombolas respondem por 15%.

"Na série histórica, posseiros e assentados são outros principais afetados", comenta Santos. "Os mais marcantes casos ocorreram em vilarejos, não exatamente no campo. É o caso de conflitos antes e após as mortes causadas pela mineração em Mariana [cuja barragem rompeu em 2015] e Brumadinho [em 2019], pelo grande número de mortes. No campo, foco de nosso trabalho, destacamos os conflitos atuais na Amazônia, pela contaminação por mercúrio, destruição de ecossistemas, peixes e toda a fauna, atingindo indígenas e seu modo de vida, principalmente."

"Os conflitos demonstram a violência sofrida pelos povos, os impactos ambientais e a resistência dos povos", enfatiza a CPT. "Nos últimos anos citamos a construção das Usinas Belo Monte, Jirau e Santo Antonio no Rio Madeira e a os crimes de Mariana e Brumadinho, com a mineração. Na resistência é importante o levante ocorrido em Correntina, na Bahia, no ano de 2017". Na ocasião, comunidades locais fizeram manifestações contra o uso intensivo da água do rio Arrojado para o manejo de monoculturas de fazendas dificultando ou impedindo que as populações do entorno utilizassem a água.

"O conceito precisa ser aperfeiçoado"

Os dados mais recentes da CPT, de 2022, não foram incorporados ao escopo da análise — cujo recorte considerou apenas até 2021. No ano passado foram registradas 225 ocorrências em todo o país, o maior número delas, 92, na região Norte, evidenciando o problema na área amazônica.

Em nota distribuída recentemente à imprensa, a CPT conta que desde 2019 passou a contabilizar também os casos de contaminação por agrotóxico, "pois além de atentar diretamente contra a saúde dos povos e comunidades do campo, ocasiona também a contaminação das águas e dos alimentos saudáveis que abastecem as mesas da sociedade brasileira".

No estudo, os pesquisadores afirmam que seria importante que o Estado tivesse um "registro e monitoramento dos conflitos". "Defendemos que o governo federal, devidamente assessorado pela academia e pela sociedade, crie uma plataforma nacional de registros de conflitos pela água", diz Santos. "O conceito de conflito deve ser aperfeiçoado. " Ele argumenta que casos como "destruição de nascentes e pequenos mananciais da Amazônia por garimpeiros e outros grupos econômicos ilegais" não são de conhecimento pleno porque não estão devidamente registrados.

Fundador do Instituto Rios e Ruas, o arquiteto e urbanista José Bueno entende, por exemplo, que a resistência de ativistas e parte da população ao projeto de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), defendido pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) se enquadraria como um conflito pela água. "Vemos com olhar muito crítico deixar nossa água e nosso saneamento nas mãos de empresas que não têm nenhum interesse além do lucro", critica.

Mudanças climáticas

Santos prevê um aumento em disputas pela água com o agravamento das mudanças climáticas, já que eventos como alagamentos e deslizamentos devem se tornar mais comuns, além de períodos de seca, que causariam "aumento das disputas por água para a produção, abastecimento, energia, lazer e transportes".

"No campo e na cidade, os desabrigados tendem a aumentar, demandando ajuda do Estado se todos não agirem preventivamente em ações corretivas e socorro a afetados por enchentes, deslizamentos e inundações", acrescenta. "Os efeitos da estiagem estão sendo vistos atualmente na Amazônia, com rios muito baixos, vida de ribeirinhos ameaçada e falta de água. "

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