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PolíticaArgentina

Continuidade ou ruptura: Argentina escolhe novo presidente

19 de novembro de 2023

Em campanha polarizada e marcada por crise, peronista Sergio Massa e ultradireitista Javier Milei chegam ao final do segundo turno com projetos opostos sobre o futuro do país. Pesquisas indicam resultado apertado.

Dois homens caminham em frente a um muro com cartazes de candidatos
Com pesquisas apontando um cenário apertado, eleitores dos candidatos que não passaram para o 2° turno vão fazer a diferençaFoto: Cristobal Basaure Araya/SOPA/Zuma/picture alliance

Os eleitores da Argentina voltam às urnas neste domingo (19/11) para o segundo turno das eleições presidenciais com dois candidatos que representam modelos profundamente distintos: a continuidade do governista peronista Sergio Massa e a ruptura radical defendida pelo ultraliberal populista Javier Milei.

A disputa está sendo considerada a mais acirrada e polarizada desde 1983, quando o país retornou ao regime democrático, e ainda tem como pano de fundo mais uma severa crise econômica. A inflação acumulada no país nos últimos 12 meses até outubro chegou a 142,7%. O déficit também permanece nas alturas, e as reservas monetárias registram os níveis mais baixos em décadas.

Também é uma eleição que vem sendo caracterizada por tensão, rejeição, temor e reviravoltas, e que foi marcada pela ausência de nomes de peso como os ex-presidentes Mauricio Macri e Cristina Kirchner, que decidiram não se candidatar. Até mesmo o atual presidente, Alberto Fernández, desistiu de concorrer à reeleição, diante da alta impopularidade do seu governo.

Mesmo os candidatos que estão na disputa registram índices de rejeição superiores a 50%. Dessa forma, o segundo turno das eleições deve ser definido em grande parte pelo "voto contra", e não necessariamente por entusiasmo em relação a qualquer um dos postulantes.

Nesse cenário, o ultraliberal Milei, da coalização A Liberdade Avança, um economista com pouca experiência política e que foi eleito deputado pela primeira vez em 2021, acabou se tornando o principal beneficiário da insatisfação da população com o governo do peronista Fernández, aliado de Massa, desbancando os conservadores tradicionais do país, que nesta eleição ficaram de fora do segundo turno.

Com uma mensagem "antisssistema" que incluiu ataques contra a classe política tradicional do país e a defesa de um plano de redução drástica do Estado e de dolarização total da economia, Milei conquistou no primeiro turno, em outubro, o segundo lugar, com 30% dos votos. A maioria das pesquisas mais recentes indicam que ele conseguiu formar uma pequena vantagem sobre Massa na reta final da segunda rodada.

Mas Milei também desperta temor em outras fatias do eleitorado, que não apenas rejeitam suas propostas para a economia, mas também questionam seu comprometimento com a democracia. Em sua campanha à Casa Rosada, o ultraliberal se associou a apologistas da última ditadura militar (1976-1983) — sua vice, Victoria Villarruel, já defendeu o fechamento de um museu que relembra as matanças do regime e nesta semana afirmou que a Argentina só sairá da crise com "uma tirania". Milei também vem emulando o americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro, lançando, sem provas, acusações de "fraude" contra o sistema eleitoral.

O temor em relação a Milei ajudou a dar um empurrão no desgastado peronismo, que nesta eleição vem sendo liderado por Sergio Massa, atual ministro da Economia do governo Fernández e candidato da coligação Juntos pela Pátria. O fato de um ministro da Economia de um país castigado por mais de 142% de inflação anual ter se revelado um candidato competitivo não deixou de causar espanto na imprensa internacional.

A estratégia de Massa para contornar o fardo da má situação econômica e da associação com o impopular Fernández foi liderar uma campanha focada em alertar sobre eventuais riscos que uma vitória do ultraliberal Milei representaria, especialmente sobre a ampla rede de subsídios sociais em prática no país, onde 40% da população é afetada pela pobreza.

Sua campanha também lançou mão de questionamentos sobre o comprometimento de Milei com a democracia. No último debate, Massa chegou até a lançar dúvidas sobre a saúde mental do ultraliberal, que carrega o apelido de "El Loco" (o louco).

Identificado mais com o centro do peronismo, e não com a esquerda do kirchnerismo, Massa conseguiu reagir na reta final do primeiro turno, terminando na primeira posição, com 36,8%, contrariando a maioria das pesquisas. No segundo turno, no entanto, sua posição é mais delicada. Apesar de ter mostrado que o peronismo ainda conserva força, o ministro não conseguiu manter a vantagem sobre Milei, e aparece levemente atrás do ultraliberal na maioria dos levantamentos.

Milei e Massa: um deles vai passar a presidir a Argentina em 10 de dezembroFoto: Natacha Pisarenko/picture alliance;Daniel Bustos/ZUMA Wire/IMAGO

Com pesquisas que apontam um cenário apertado, os eleitores dos candidatos que não passaram para o segundo turno deverão ser fundamentais.

Nesta segunda fase da campanha, Milei conseguiu o apoio da terceira colocada, a conservadora Patricia Bullrich, da coligação Juntos pela Mudança (JxC), e do ex-presidente Mauricio Macri. Bullrich, que obteve 23,8% dos votos, decidiu apoiar Milei mesmo após os pesados ataques pessoais desferidos pelo ultraliberal contra ela no primeiro turno. Milei chegou a acusar Bullrich de "terrorismo" e de colocar "bombas em jardim de infância" nos anos 1970.

Mas, no final, pesou na decisão de Bullrich a rejeição ao peronismo. "Quando a pátria está em perigo, tudo é permitido", disse ela ao anunciar apoio.

No entanto, o apoio de Bullrich e de Macri acabou rachando a Juntos pela Mudança, com alguns setores repudiando a iniciativa da candidata derrotada e levantando dúvidas se parte considerável do seu eleitorado vai mesmo optar por Milei.

Pesquisas indicam votação apertada

Depois de um primeiro turno repleto de surpresas, as últimas pesquisas disponíveis da segunda rodada apontam um desfecho bastante acirrado e incerto. Antes do primeiro turno, em 22 de outubro, a maioria dos institutos argentinos indicou que Milei caminhava para terminar em primeiro lugar, mas o oposto ocorreu, com Massa obtendo o topo, com quase sete pontos de vantagem sobre seu principal adversário

Na Argentina, a lesgislação eleitoral barra a divulgação de pesquisas na semana que antecede o dia de votação. Por isso, tendências de última hora não costumam ser captadas poucos dias antes do pleito.

A maioria dos últimos levantamentos divulgados na semana passada mostraram uma pequena vantagem para o ultraliberal Javier Milei. Uma média das 15 pesquisas realizadas na semana passada aponta Milei com 51,1% das intenções de voto, contra 48,8% de Massa, uma diferença praticamente dentro de impate técnico.

O instituto brasileiro Atlasintel, que no primeiro turno conseguiu captar o crescimento de Massa, apontou em pesquisa divulgada em 10 de novembro que o ultraliberal tinha 52,1% das intenções de voto contra 47,9% de Massa — com margem de erro de um ponto percentual.

Segundo turno das eleições deve ser definido em grande parte pelo "voto contra"Foto: Natacha Pisarenko/AP Photo/picture alliance

Algumas pesquisas, por sua vez, apontam Massa à frente. Uma delas, realizada pelo Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica, apontou o ministro com 46,7% das intenções de voto, contra 45,3% de Milei.

Com cenários tão apertados, os últimos eleitores que permaneciam indecisos na semana passada, que somaram apenas 2,3% no levantamento da Atlasintel, por exemplo, devem ser cruciais no resultado final.

Milei segue roteiro de "fraude" de Bolsonaro e Trump

Diante do quadro que aponta uma votação apertada, Milei tem repetido um roteiro já executado pelo americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro: lançar, sem provas, acusações e suspeitas de "fraude eleitoral", no que parece uma preparação de terreno para mobilizar sua base e contestar um eventual resultado desfavorável nas urnas.

Milei já afirmou, sempre sem apresentar provas, que cédulas roubadas e danificadas teriam lhe custado mais de 1 milhão de votos nas eleições primárias realizadas em agosto. Depois, disse que fraudes semelhantes também teriam prejudicado sua votação no primeiro turno. Nesta semana, na reta final da campanha, foi a vez de a irmã de Milei, que comanda a campanha do ultraliberal, apresentar uma queixa a um juiz federal com a alegação de "fraude colossal" e acusando a Gendarmeria Nacional, principal força de segurança do país, de adulterar "o conteúdo das urnas" para beneficiar Massa.

Nos EUA, em 6 janeiro de 2021, e no Brasil, em 8 de janeiro de 2023, discursos enganosos semelhantes feitos por Trump e Bolsonaro levaram apoiadores dos dois políticos de extrema direita a tentarem reverter violentamente o resultado eleitoral.

Em um texto no jornal argentino Clarín no qual avaliou a falta de lastro das acusações de Milei, o secretário de redação da publicação, Ignacio Miri, apontou que "fraude eleitoral é um dos poucos problemas que a Argentina não tem".

Congresso fragmentado deve ser desafio para o próximo presidente

Além do cenário de degradação econômica, o próximo presidente do país terá que lidar com um Congresso fragmentado. Além de votarem no primeiro turno do pleito presidencial, os argentinos elegeram em 22 de outubro 130 dos 257 membros da Câmara dos Deputados e 24 dos 72 membros do Senado.

O resultado final mostrou que o próximo presidente do país terá que negociar com o Congresso para aprovar medidas, já que nem a coligação de Massa nem a de Milei conseguiu garantir maioria nas duas Casas.

A coligação partidária de Massa, a União Pela Pátria, até conseguiu eleger o maior número de deputados na Câmara, passando a contar com 108 deputados – dez a menos do que a atual bancada governista. No entanto, para garantir maioria simples na Casa, são necessários ao menos 129 deputados. No Senado, a situação do grupo de Massa se mostrou um pouco mais confortável. Assim como na Câmara, a coligação vai contar com a maior bancada: 34 senadores – dois a mais do que na atual legislatura. São necessários 37 senadores para formar maioria na Casa.

Candidato mais votado no primeiro turno, Massa, da coalizão União pela Pátria (UP), é o principal nome do peronismo neste pleitoFoto: Natacha Pisarenko/AP Photo/picture alliance

Mas mesmo os votos da União Pela Pátria não são de todo garantidos para um hipotético governo Massa, já que vários congressistas eleitos são peronistas kirchneristas, grupo com o qual o atual ministro já travou disputas no passado.

Já o ultraliberal Milei teria um cenário ainda mais difícil pela frente com o Congresso. Sua coligação, chamada A Liberdade Avança, conseguiu se transformar na terceira força política do Congresso do país, mas ainda assim se manteve muito abaixo de uma maioria de 129 deputados, passando a contar com apenas 38 – incluindo o próprio Milei. A coligação ainda passou a contar com oito senadores.

Esse cenário do Congresso deve representar um desafio para Milei aprovar suas propostas disruptivas na economia no caso de uma vitória neste domingo. No melhor cenário, Milei pode tentar contar com apoio de congressistas da coligação Juntos pela Mudança –que formou a segunda maior bancada na Câmara, com 93 deputados. Mas esse cenário parece improvável. Apesar do apoio de membros da JxC como Macri e Bullrich, a bancada da coligação está longe de ser um bloco homogêneo, e alguns partidos e movimentos do bloco, como União Cívica Radical, já declaram repúdio a Milei.

Os candidatos

Sergio Massa: o ambicioso camaleão peronista 

Candidato mais votado no primeiro turno, Massa, da coalizão União pela Pátria (UP), é o principal nome do peronismo neste pleito, sendo uma figura mais de centro do movimento. 

Ex-prefeito de Tigre, na grande Buenos Aires, Massa, chegou a ocupar o posto de chefe de gabinete da ex-presidente Cristina Kirchner. No entanto, posteriormente rompeu com a política no início dos anos 2010, formando um grupo político rival. Em 2019, selou uma reconciliação com o kirchnerismo.

Em 2022, com a economia indo para o abismo novamente, foi convocado pelo atual presidente Alberto Fernández para assumir a pasta da Economia. Contra sua campanha pesa o fardo da economia em frangalhos. Massa tem argumentado que o momento é de transição, e que medidas recentemente adotadas ainda vão render frutos. No primeiro turno, ele conseguiu quase 37% dos votos.

Javier Milei: o "Bolsonaro argentino" como sintoma

Fenômeno dessas eleições, Milei, da coalizão partidária personalista A Liberdade Avança, ganhou protagonismo a partir de 2016, como comentarista de televisão, fazendo uso de um discurso antissistema. No primeiro turno, conseguiu cerca de 30% dos votos. Ideologicamente, ele se define como "libertário" e "anarcocapitalista".

Com 53 anos, ele foi regularmente comparado durante a campanha a Donald Trump e a Jair Bolsonaro. Em 2021, foi eleito pela primeira vez como deputado. Foi pouco atuante na Câmara, usando mais o cargo como plataforma para se lançar à presidência. Suas aparições de campanha foram marcadas por gestos teatrais, como empunhar uma motosserra e puxar coros de xingamentos contra adversários.

"Ele [Milei] não é um líder, é um sintoma", analisou o ex-ministro da Economia Domingo Cavallo. Contra sua campanha pesam a pouca experiência política, temor entre parte do eleitorado em relação aos seus planos disruptivos e até mesmo questionamentos sobre seu estado emocional e mental.

Leia mais sobre os dois candidatos

Uma economia em frangalhos

Em crise perpétua há décadas, a Argentina, a terceira maior economia da América Latina, chega ao pleito deste domingo em um cenário econômico degradado, que já levou o atual presidente Alberto Fernández a desistir de concorrer à reeleição.

O dólar disparou nas últimas semanas, reforçando a agonia do peso argentino. Já a inflação anual na Argentina subiu para 142% em outubro – um recorde em mais de 30 anos. Hoje, na América do Sul, a inflação argentina só é superada pela da Venezuela, que vive uma crise humanitária. Para piorar, a vitória de Milei nas primárias, em agosto, fez o valor do dólar paralelo disparar em 11%, diante do temor de um cenário de instabilidade política.

"Ele [Milei] não é um líder, é um sintoma", analisou o ex-ministro da Economia Domingo CavalloFoto: Natacha Pisarenko/AP Photo/picture alliance

Os argentinos também estão lutando para sobreviver, com cerca de 40% da população vivendo na pobreza. A taxa de desemprego é de 6,2%, praticamente a mesma de uma década atrás.

Analistas apontam que o próximo presidente, que tomará posse em dezembro, terá dificuldades para encontrar uma solução rápida para os atuais problemas, que têm raízes em décadas de má administração governamental.

Nas últimas oito décadas, o país experimentou apenas quinze anos de inflação abaixo de dois dígitos. A dívida e o déficit fiscal também têm sido a norma na Argentina. Entre 1961 e 2022, houve apenas seis anos com superávit fiscal nas contas do país.

Repercussão no Brasil

A Argentina é o maior parceiro econômico do Brasil na América do Sul e é um dos principais destinos de exportações de produtos industrializados brasileiros. Os dois países também são os principais membros do Mercosul, bloco comercial sul-americano.

Durante a campanha do primeiro turno, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, evitou comentar explicitamente as eleições no país vizinho, em contraste com seu antecessor, Jair Bolsonaro, que foi explícito em seu apoio ao liberal Macri em 2019 e sua oposição a Fernández, o que gerou mal-estar diplomático.

Nesta semana, Lula se limitou a afirmar que a Argentina precisa eleger um presidente que goste do Mercosul e de democracia, no que foi encarado como uma posição contra Milei, que se aliou com apologistas da antiga ditadura militar argentina e que já defendeu retirar o país do bloco comercial sul-americano.

"O Brasil precisa da Argentina e a Argentina precisa do Brasil. Dos empregos que o Brasil gera na Argentina e dos empregos que a Argentina gera no Brasil, do fluxo comercial entre os dois países e de quanto nós podemos crescer juntos. Para isso, é preciso ter um presidente que goste de democracia, que respeita as instituições, que goste do Mercosul, que goste da América do Sul e que pensa na criação de um bloco importante", disse Lula.

Numa entrevista a um jornalista peruano durante a campanha do segundo turno, Milei afirmou que, se eleito, não pretendia se reunir com Lula por considerá-lo "corrupto" e "comunista".

Já os bolsonaristas são explícitos no apoio ao populista Milei. Antes da votação do primeiro turno, Jair Bolsonaro enviou uma mensagem em vídeo de apoio ao argentino.

"Não podemos continuar com a esquerda. É um apelo que eu faço a todos os argentinos: vamos mudar, e mudar para valer, com Milei. Compromisso meu, hein?! Vou para a tua posse", disse Bolsonaro na mensagem. O deputado brasileiro Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, também já realizou várias lives com o argentino. "Não só adoramos deixar os esquerdistas loucos, mas também nos une a liberdade", afirmou sobre esses encontros.

Quem quebrou a Argentina?

08:28

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