Conto de inverno à la Bob Wilson
16 de outubro de 2005A montagem do Conto de inverno de William Shakespeare, por Bob Wilson, divide a crítica teatral alemã. No legendário Berliner Ensemble, fundado em 1949 por Bertolt Brecht, o festejado mago teatral norte-americano encenou essa tragicomédia sobre amor e traição entre tiradas de chanchada e sua usual contenção minimalista. No elenco, Angela Winkler, conhecida do público brasileiro por suas atuações nos filmes A honra perdida de Katharina Blum (1975) e O tambor (1979), ambos de Volker Schlöndorff.
A trama do Conto de inverno
Leontes, rei da Sicília, roga ao amigo de infância Polixenes, rei da Boêmia, que prolongue sua estada nas paragens sicilianas. Somente com a intercessão da rainha Hermione, Polixenes acede. Leontes está obcecado pela idéia de que Hermione, grávida, o trai com o amigo. Ele ordena a um servidor que envenene Polixenes. Contudo, ao invés de seguir as ordens fatais, o criado avisa o rei boêmio, que escapa.
Furioso, Leontes, acusa sua esposa publicamente, pondo em dúvida a paternidade da criança em seu ventre. Após aprisioná-la, espera que o Oráculo de Delfos confirme suas suspeitas. Hermione dá à luz uma menina. Embora reconhecendo no bebê seu próprio rosto, Leontes, alucinado de ciúmes, vê na semelhança apenas mais uma confirmação de suas suspeitas e ordena que a menina, Perdita, seja abandonada num local desolado. Pouco após chega a resposta do oráculo: Hermione é fiel. De coração partido, ela falece.
Inverno profundo cai sobre o Reino da Sicília. Acolhida por um pastor, Perdita sobrevivera, e 16 anos mais tarde ela e Florizel, o filho de Polixenes se apaixonam, sem que um saiba quem o outro é. Após várias vicissitudes, a verdadeira história da jovem é revelada pelo pastor. Uma estátua da rainha morta preside o noivado e o doce reencontro entre pai e filha. Completando o final feliz, a estátua ganha vida: Hermione e a Primavera retornam à Sicília.
Wilson como sempre. Desta vez, com razão
Ulrich Seidler, do Berliner Zeitung, pergunta: "Nas montagens de Wilson, os atores costumam vagar como mortos de nariz frio. Por que encontramos cálidos órgãos sensórios, justamente no Conto de inverno de William Shakespeare?" Ele descreve como "ligeiramente gasto" o método de Wilson, de "primeiro tratar separadamente os canais perceptivos do texto, imagem e música, para então superpô-los". Entretanto, é justamente no contexto do Conto shakespeareano que a técnica se justifica.
De forma análoga aos sentidos de Leontes, confundidos pelos ciúmes, "esse método ilustra o dilema que leva ao desespero os fundamentalistas do ceticismo, ao desmembrarem seu saber sobre a verdade nos dados sensoriais, percebidos subjetivamente".
"A praticamente cada bater de pálpebras de Stefan Kurt [Leontes], as cores do cenário se transformam. A cada olhar, a imagem apenas congelada se precipita em seu oposto, que só vale até que o rei pisque novamente. Da mesma forma pode-se imaginar o que se passa na mente de Leontes, que vê em sua bela consorte uma adúltera. [...] Com inescrupulosa sede de saber, ele combina suas impressões no mais horrendo mosaico, arrastando a todos para esse abismo autofabricado".
Entre o sono e a vigília
Segundo Seidler, Wilson transmite sem esforço ao público esse sentimento de estar escorregando: "É uma experiência interessante, não de todo desagradável, quando o cérebro congela lentamente, pela combinação de inatividade e hipotermia. A música percussiva, executada por Hans-Jörn Brandenburg e banda, faz o espectador oscilar entre o cochilo e a vigília."
Segundo o crítico, seria melhor para o diretor se a peça terminasse no terceiro ato, após a morte aparente de Hermione. O reatamento entre Boêmia e Sicília, o salvamento da princesa e o casamento são "rotineiramente organizados em forma de chanchada". Esse Conto se conclui em aberto, com uma gag da autoria do diretor: após a ressurreição de Hermione, subitamente todos se degolam a mando de Leontes. Fim da discussão.
Bolo de sorvete e vitrine
Para Rüdiger Schaper, do Tagesspiegel, a quebra estilística a partir do quarto ato não é um problema: "Wilson decidiu-se pela comédia". Mesmo admitindo que "do ponto de vista interpretativo, grande parte do que acontece é desinteressante", ele louva esse "Conto de inverno do mundo do vaudeville, com música ao vivo", "uma criação comparativamente econômica, quase teatro mambembe", comparável a um "bolo de sorvete".
"Wilson superpõe camadas de doces sussurros, fantasia de animais, trapalhadas de livro infantil e algaravia bucólica, faz chover ouro como açúcar de confeiteiro, o xarope das palavras escorre." Para Schaper, o final desconcertante tem conseqüência: "Até para Robert Wilson o bolo ficou doce demais. Cortem-se rapidamente as gargantas. Sangue, nenhum. Provavelmente todos já haviam morrido, antes do tempo."
Peter Hans Göpfert, do Berliner Morgenpost, disseca os métodos cênicos do mago minimalista: "Tão logo se encontram na Sicília, todas as personagens lembram estátuas insufladas de vida. Quando não estão postadas de forma delicadamente estatuária, movem-se graciosas e dançantes em figurinos cerimoniais, como numa elegante decoração de vitrine entre colunas. [...] Tudo o que vimos foi redução e condensação do conto num arranjo estético". Porém, quando a ação se transfere para a Boêmia, Wilson desiste de seu "rigoroso maneirismo".
Presença definitiva na Alemanha
A carreira do diretor Robert Wilson, nascido em 1941, em Waco, Texas, está intimamente ligada aos palcos alemães. Em 1979 e 1987, ele desenvolveu na Schaubühne de Berlim as duas primeiras partes de sua trilogia Death Destruction & Detroit. Em 1986, trabalhou pela primeira vez no Thalia Theater de Hamburgo, com uma montagem de Hamlet-máquina, de Heiner Müller.
Para este mesmo teatro, criou uma série de quatro obras musico-teatrais, das quais a primeira foi The Black Rider, uma variação de O franco atirador de Carl Maria von Weber, com texto de William Burroughs e música de Tom Waits. Desde a década de 80, o diretor tem também sido presença constante nos grandes palcos de ópera europeus. Trechos de Einstein on the beach, criação conjunta com o compositor Philip Gass, foram a abertura musical do Ano Einstein, em Berlim.
Antes do atual Conto de inverno, Wilson já encenara outras vezes no Berliner Ensemble. Por exemplo, há dois anos estreou a comédia Leonce e Lena de Georg Büchner. A estética wilsoniana, fortemente gráfica, com atores e cantores estáticos ou mecanizados, trai sua primeira formação, como artista plástico e arquiteto. Assim como suas encenações, os desenhos, quadros e esculturas de Robert Wilson atravessam o mundo em centenas de exposições.