Coreia do Sul encobriu abusos e assassinatos em larga escala
20 de abril de 2016
Nos anos 70 e 80, crianças, mendigos e deficientes eram retirados das ruas e forçados ao trabalho escravo em instalações correcionais, segundo a agência de notícias AP. Eles foram vítimas de tortura e abusos.
Foto: Reuters
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Três décadas atrás, um policial torturou Choi Seung-woo por causa de um pedaço de pão que foi encontrado na mochila do menino. Depois de ser despido e ter um isqueiro repetidamente aceso perto de seus órgãos genitais, Choi, então um garoto de 14 anos, "confessou" o roubo do pão.
Dois homens então o arrastaram para a chamada Brothers Home, uma instituição onde ocorreram algumas das piores atrocidades na história moderna da Coreia do Sul ocorreram. Assim como milhares de outras pessoas, a maioria crianças e deficientes, Choi foi forçado a residir numa dessas instalações criadas para abrigar os chamados "vagabundos" nos anos 1970 e 1980.
Em reportagem investigativa, a agência de notícias AP revelou, com base em centenas de documentos governamentais exclusivos e dezenas de entrevistas com funcionários e ex-detentos, que os casos de agressão na Brothers Home, pouco conhecidos, foram muito mais cruéis e comuns do que se imaginava. Somente na Brothers Home, que originalmente era um orfanato, havia 4 mil internos.
Entre agressões diárias, detenções injustificadas e trabalho escravo, centenas de pessoas foram espancadas até a morte. A contagem de mortos, somente na Brothers Home, chega a 513 pessoas entre 1975 e 1986 – o número real é certamente superior. Documentos do governo comprovam que a maioria dos novos internos chegava com saúde mental boa. No entanto, ao menos 15 morreram no primeiro mês de estada, em 1985, e 22, em 1986.
Em seu auge, o local abrigava mais de 20 fábricas por trás de seus muros bem guardados na cidade portuária de Busan. Elas usavam trabalho escravo para fabricar produtos que eram vendidos na Europa, no Japão e provavelmente em outros locais.
Policiais, ajudados por donos de lojas, capturavam crianças, mendigos, comerciantes de rua, deficientes e dissidentes. Essas pessoas acabavam como prisioneiros em 36 instalações em todo o país. Segundo os documentos obtidos pela AP, o número chegou a 16 mil detidos em 1986.
Cerca de 90% dos detidos nem mesmo deveriam estar nessas instalações porque não atendiam a definição do governo de "vagabundo", afirmou o ex-procurador Kim Yong-won, com base nos registros da Brothers Home e em entrevistas feitas em 1987, quando o governo encerrou as investigações feitas por ele.
As capturas começaram quando os militares no governo queriam preparar o país para a candidatura aos Jogos Olímpicos de 1988 e ordenaram a polícia a "limpar" as ruas. A Coreia do Sul queria se apresentar como um país moderno.
Além do excesso de violência, tratava-se de uma operação de enriquecimento baseada em parte em trabalho escravo. Documentos mostram que instalações que deveriam treinar jovens para futuros empregos davam lucro. Somente a Brothers Home deveria ter pagado o equivalente a 1,7 milhão de dólares para mais de mil detentos pelo trabalho deles.
Mesmo muitos anos depois, Choi ainda chora ao falar sobre o que aconteceu na Brothers Home. Ele relata que foi estuprado por um guarda na sua primeira noite, em 1982, de novo na noite seguinte e assim por diante. Assim começaram cinco anos infernais de trabalho escravo e agressões quase diárias. Foram anos em que Choi viu homens e mulheres serem espancados até a morte e seus corpos serem despejados como lixo.
Outro ex-interno da Brothers Home, Lee Chae-sik, diz que, às vezes, chegavam a morrer cinco pessoas num único dia em consequência de agressões numa espécie de "quarto de correções". Até hoje, nenhum dos responsáveis foi condenado pelas atrocidades.
Os poucos ex-prisioneiros que falam sobre o caso querem uma nova investigação. O governo, porém, tenta travar uma iniciativa da oposição, argumentando que as evidências são muito antigas. Ahn Jeong-tae, funcionária do Ministério do Interior, afirmou que as vítimas da Brothers Home deveriam ter apresentado suas queixas há anos para uma comissão de inquérito. "Não podemos fazer leis específicas para cada caso", justificou.
O silêncio oficial significa que, mesmo com a Coreia do Sul se preparando para receber novos Jogos Olímpicos, os de Inverno em 2018, milhares de ex-detentos traumatizados ainda não receberam nenhuma indenização nem qualquer reconhecimento público ou um pedido de desculpas.
"Como podemos esquecer a dor das surras, os mortos, o trabalho árduo, o medo, todas as más recordações?", questiona Lee, que agora administra um motel à beira de um lago. "Isso vai nos assombrar até a morte."
PV/ap
Os principais pontos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Proclamada em 1948, carta é válida para todos os Estados-membros das Nações Unidas. Mas ainda há um longo caminho até que o documento seja implementado para todos, em todo o mundo.
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Direitos iguais para todos (Artigo 1°)
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos." Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou em Paris a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O ideal é claro, mas continua muito distante de encontrar aplicação concreta.
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Ter e viver seus direitos (Artigo 2°)
Todos os direitos e liberdades da Declaração se aplicam a todos, que podem invocá-los independente de "raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra condição". No nível internacional, contudo, é quase impossível reivindicar esses direitos.
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Direito à vida e à liberdade (Artigos 3°, 4°,5°)
"Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal." (3°) "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão." (4°) "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento cruel, desumano ou degradante" (5°).
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Igualdade perante a lei (Artigo 6° a 12)
Toda pessoa tem direito a um julgamento justo e à proteção da lei (6°, 8°, 10, 12). Todos são considerados inocentes até que a sua culpabilidade seja comprovada (11). "Todos são iguais perante a lei" (7°) e "Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado" (9°).
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Ninguém é ilegal (Artigos 13, 14, 15)
"Todo indivíduo tem o direito de livremente circular e escolher o seu domicílio dentro de um Estado". "Todos têm o direito de deixar qualquer país" (13). "Toda pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar asilo em outros países" (14). "Todo indivíduo tem o direito a ter uma nacionalidade" (15).
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Contra os casamentos forçados (Artigo 16)
Homens e mulheres têm direitos iguais antes, durante e depois do casamento. Um casamento "será válido somente com o livre e pleno consentimento dos futuros esposos". A família tem direito à proteção da sociedade e do Estado. Mais de 700 milhões de mulheres em todo o mundo vivem em um casamento forçado, afirma o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
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Direito à propriedade (Artigo 17)
"Toda pessoa tem direito, individual ou coletivamente, à propriedade. Ninguém pode ser privado arbitrariamente de sua propriedade." Ainda assim, seres humanos são expulsos de suas terras em todo o mundo, por não terem documentos válidos – a fim de abrir caminho para o desenvolvimento urbano, a extração de matérias primas, a agricultura, ou para uma barragem de hidrelétrica, como no Brasil.
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Liberdade de opinião (Artigos 18, 19, 20)
"Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião" (18). "Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão" (19). "Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas" (20).
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Direito à participação (Artigos 21, 22)
"Todo indivíduo tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos" (21). Há um "direito à segurança social" e garantia de direitos econômicos, sociais e culturais, "que são indispensáveis à dignidade" (22).
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Direito ao trabalho (Artigos 23 e 24)
"Toda pessoa tem direito ao trabalho". "Toda pessoa tem direito a igual remuneração por igual trabalho". "Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória" e pode participar de um sindicato (23). "Toda pessoa tem direito ao lazer" (24).
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Uma vida digna (Artigo 25)
"Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais necessários". "A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais." No mundo inteiro, mais de 2 bilhões estão subnutridos, mais de 800 milhões passam fome.
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Direito à educação (Artigo 26)
"Toda pessoa tem direito à educação". O ensino fundamental deve ser obrigatório e gratuito para todos. "A educação deve ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do respeito aos direitos humanos." Na prática, 750 milhões de pessoas no mundo são analfabetas, das quais 63% são mulheres e 14% são jovens entre 15 e 24 anos, afirma o relatório sobre educação da Unesco.
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Arte e ciência (Artigo 27)
"Toda pessoa tem direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico". Todos os "autores de obras de ciência, literatura ou arte" estão protegidos legalmente. Hoje, a distribuição digital de muitas obras é algo controverso. Muitos autores veem seus direitos autorais violados pela distribuição na internet.
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Direitos indivisíveis (Artigos 28, 29, 30)
"Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades possam ser plenamente realizados" (28). "Toda pessoa tem deveres para com a comunidade" (29). Nenhum Estado, grupo ou pessoa pode limitar os direitos humanos universais (30). Todos os Estados-membros da ONU assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos.