Verbas bilionárias
3 de maio de 2011O combate às mudanças climáticas enfrenta um risco grave: a corrupção. O alerta foi dado pela organização Transparência Internacional (TI), num documento de 360 páginas publicado no último sábado (30/04), em Bangladesh. O Relatório global de corrupção: Mudanças climáticas contou com a contribuição de 50 autores de todo o mundo.
Estima-se que, até 2020, mais de 700 bilhões de dólares serão investidos no combate aos problemas climáticos. Após esse período, somente os países em desenvolvimento deverão necessitar pelo menos 100 bilhões de dólares por ano para enfrentar as questões relacionadas ao clima.
A Transparência Internacional avisa que, já agora, são necessárias medidas maciças anticorrupção para evitar que o dinheiro seja desperdiçado. "Os 20 países mais afetados pelas mudanças climáticas têm menos de 3,6 pontos no índice de percepção da corrupção da TI, indicando que a corrupção é endêmica nessas nações", diz Lisa Elges, diretora do programa de governança climática da organização.
Segundo o índice criado pela TI, zero é o pior nível de corrupção numa escala que vai até dez. No entanto, a organização é cuidadosa ao alertar que o risco de desvio de dinheiro não está limitado aos países em desenvolvimento. "A corrupção é um problema para todas as nações. Precisamos garantir mais responsabilidade, transparência e práticas íntegras em todos os países", argumenta Elges.
Dinheiro atraente
Na Europa industrializada, não é preciso ir muito longe para se encontrar armadilhas potenciais. "O Sistema de Comércio de Emissões da União Europeia (ETS) mostrou que os mercados de carbono são suscetíveis à influência exagerada de grupos de interesse que, no caso do ETS, pode ter contribuído para o excesso de alocação de permissões de emissões de carbono. O resultado foi um lucro inesperado de 6 a 8 bilhões de euros para os quatro maiores produtores de energia europeus", diz o relatório.
O ETS (European Union Emissions Trading Scheme) é a principal ferramenta do bloco para cumprir as metas do Protocolo de Kyoto. Cada país-membro segue um plano nacional de alocações, que determina a quantidade de licenças de emissão de gases do efeito-estufa para suas indústrias e usinas de energia. As indústrias e usinas podem vender ou comprar licenças, dependendo se o nível de emissões ficou acima ou abaixo da cota permitida.
Insegurança digital
O desrespeito às regras para atender interesses de lobbies é apenas um problema. Um outro é a vulnerabilidade do sistema, que facilita o roubo propriamente dito: milhões de dólares foram desviados em ataques de hackers contra o ETS europeu. "Foi deprimentemente fácil", comenta Henry Derwent, chefe da Associação Internacional de Comércio de Emissões (IETA, em inglês).
"O padrão da segurança digital era simplesmente insuficiente, em particular um número de postos de registro realmente não faziam qualquer sindicância sobre os candidatos a contas. Há mais de um ano vimos alertando a Comissão Europeia sobre isso", acrescenta Derwent.
Em janeiro último, ciberpiratas invadiram os banco de dados com registros na República Tcheca, Áustria, Estônia, Grécia e Polônia e escaparam com 28 milhões de euros em certificados. Derwent é otimista e acredita que reformas no ETS o deixarão "mais fácil de ser supervisionado" no futuro. No entanto, problemas do tipo podem comprometer os esforços de combate às mudanças climáticas.
Burlando as regras
O relatório da Transparência Internacional chama a atenção para o fato de que o comércio de certificados de emissões – centro da ação apoiada pelas Nações Unidas para combater as mudanças do clima – é particularmente suscetível a conflitos de interesse.
Não há espaço para "qualquer supervisão independente das tomadas de decisão" no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo da ONU (CDM), lamenta o documento. A TI sugere que grupos específicos podem se aproveitar do sistema que permite às nações ricas compensar suas emissões, financiando ações em países pobres.
Um exemplo envolve o gás industrial HFC-23, subproduto da fabricação de fluídos de refrigeração, que é um gás estufa 11.700 vezes mais potente do que o dióxido de carbono. "A destruição de uma tonelada de HFC-23 garante 11.700 créditos de carbono. Isso o transforma num negócio muito lucrativo, já que cada crédito de carbono vale cerca de 10 euros", diz Eva Filzmoser, da organização CDM Watch.
Até pouco tempo, fábricas na China eram suspeitas de terem transformado esse processo num modelo de negócio: elas produziam níveis excessivos do poluente com o objetivo de exigir crédito – e dinheiro – para destruí-lo.
"O incentivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo tem um impacto direto nos padrões de produção daquelas unidades. Poderíamos, na verdade, propor um corte de 90%: acreditamos que bastam apenas 10% de créditos de carbono para prover incentivo suficiente para a destruição do gás continue", diz Filzmoser.
Apesar de executivos da União Europeia já terem proposto o fim do comércio de permissões de HFC-23 após 2013, críticos como a CDM Watch dizem que o sistema da ONU continua não sendo suficientemente transparente.
Corrupção alimenta desmatamento
O comércio ilegal de madeiras é outra área em destaque para a TI. Segundo os organizadores do relatório, chegam anualmente ao mercado até 23 bilhões de dólares em madeira originária de plantações irregulares.
Segundo a organização, muitas das maiores companhias do setor madeireiro estão prontas a conspirar com governos corruptos para extrair madeiras raras e valiosas, apesar de campanhas de marketing tentarem despertar a consciência ambiental dos consumidores.
"Em muitos casos, essas tentativas parecem ser um mecanismo cínico para maximizar lucros à custa dos contribuintes, já que as práticas reais dessas empresas contradizem seu compromisso com as metas de desenvolvimento, assumido publicamente", diz o relatório.
Outras organizações não-governamentais concordam. "A corrupção é uma das maiores razões pela qual continuamos a ter índices tão altos de desmatamento", diz o especialista Philipp Göltenboth, da WWF.
"As florestas, principalmente nos trópicos, são normalmente de difícil acesso e estão localizadas em países com alto índice de corrupção. A madeira pode ser transformada rapidamente em dinheiro", comenta Gavin Hayman, da Global Witness. A organização, que monitora a exploração de recursos, cita o Camboja como um espantoso exemplo de anos de corrupção no setor florestal.
"Conseguimos mostrar como o primeiro-ministro e membros da elite dominante tinham interesse direto na corrupção do setor florestal e em distribuir concessões às madeireiras, que então devastavam as florestas do Camboja", acusa Hayman.
Primeiro a credibilidade, depois os bilhões
Os capítulos do relatório dedicados à engenharia florestal dão um alerta importante sobre um dos poucos sucessos alcançados na última Conferência do Clima, em Cancún. O sistema conhecido como REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação) visa coibir a extração excessiva de madeira, estimulando as nações ricas a investir nas florestas de países pobres.
O mecanismo poderia gerar até 28 bilhões de dólares por ano, quando estiver plenamente operacional, mas a TI alerta que ele pode fracassar, caso não seja bem supervisionado. "A maioria dos países participantes no REDD está pouco preparada para medir e verificar mudanças em emissões e estoques de carbono nas florestas", comenta Hayman. Jogar bilhões de dólares nessa situação é uma receita para o desastre, adverte o Relatório global de Corrupção: Mudanças climáticas.
"Nos países onde os mecanismos de responsabilização não funcionam plenamente, ou que sejam politicamente comprometidos, os pagamentos podem oferecer incentivos à corrupção e fraude por parte das autoridades governamentais e de financiadores de projetos ávidos de 'jogar com o sistema'."
A menos que as regras sejam endurecidas em breve, bilhões de dólares – sem falar na confiança pública – podem estar sendo jogados pela janela.
Autor: Sarah Steffen / Nádia Pontes
Revisão: Augusto Valente