Mais de 452 milhões de menores de idade convivem diariamente com a guerra. Os danos físicos e psicológicos que sofrem e suas mortes raramente são investigados – e quase nunca punidos. Mas a Ucrânia abre uma "chance".
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Lisa, de quatro anos, estava a caminho do fonoaudiólogo com a mãe, em Vinnytsia, na Ucrânia, quando mísseis russos atingiram a cidade, em julho. Um vídeo divulgado online mais tarde mostra o carrinho de bebê em que ela se encontrava, na ocasião. A menina e seu ursinho de brinquedo estão caídos ao lado: ela estava morta, uma entre as 23 vítimas do ataque, das quais três crianças, como ela.
"A guerra na Ucrânia é um trágico lembrete de que as crianças são repetidamente as mais afetadas, e muitas vezes esquecidas, vítimas da guerra", constata Aurélie Lamazière, representante da Save the Children, a maior organização independente pelos direitos infantis, num debate promovido pela Fundação Bertelsmann na sexta-feira (16/09), em Berlim.
Segundo dados das Nações Unidas, 5.827 civis morreram desde o início da invasão da Ucrânia pelas tropas de Moscou, em 24 de fevereiro, inclusive 375 menores de idade. O país invadido e seus aliados ocidentais prometeram responsabilizar a Rússia por todo crime cometido por suas tropas.
No entanto, tudo indica que será um processo longo e difícil, com resultado incerto. Sobretudo para as crianças, que do ponto de vista legal, costumam ficar esquecidas, frisa Lamazière: é raro crimes de guerra contra elas serem devidamente documentados, investigados e punidos.
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Alemanha reúne provas de crimes de guerra russos
Durante o debate na capital alemã, a advogada Natalie von Wistinghausen confirmou que muitas vezes os menores de idade constituem uma zona cinzenta nos processos legais. Porém "há leis para que as crianças sejam escutadas em tribunal, elas só precisam ser aplicadas".
Ela se referia, por exemplo, ao princípio da jurisdição universal, segundo o qual os respectivos direitos nacionais são aplicáveis a "crimes não ocorridos no território de um Estado, e sem que a vítima nem o perpetrador sejam naturais dele", como define o Centro Europeu para Direitos Constitucionais e Humanos.
Assim, criminosos de guerra também não alemães podem ser processados na Alemanha, e o Departamento Federal de Investigações (BKA) do país está reunindo provas de possíveis crimes de guerra russos na Ucrânia. Mais de 300 indícios já foram coletados, revelou recentemente o presidente da agência, Holger Münch, ao periódico Welt am Sonntag.
Lamazière, da Save the Children, diz esperar que dessa vez as vítimas jovens recebam justiça. As crianças da Ucrânia estão entre os 452 milhões vivendo na guerra em cerca de 30 países ou territórios, estimam ONGs – cifra que dobrou no prazo de 20 anos. Destas, 27 milhões não podem ir à escola e 250 mil são forçadas a lutar ou a servir os combatentes, também como objetos sexuais.
Guerra na Ucrânia como "chance"?
Em 2021, um tribunal alemão fez manchetes internacionais ao condenar à prisão perpétua um ex-membro do assim chamado "Estado Islâmico" (EI), pelo assassinato de uma menina de cinco anos pertencente à minoria yazidi do Iraque.
Juntamente com a mãe, Reda havia sido vendida como escrava e sofria regularmente abusos. Um cidadão iraquiano e sua esposa alemã de 30 anos foram também sentenciados por seu envolvimento. "Na época, a Alemanha mostrou que a justiça pode prevalecer", comenta Lamazière. "O país é um paladino."
Segundo Luise Amtsberg, comissária do governo alemão para os direitos humanos, Berlim está se empenhando para reforçar os direitos e proteções das crianças, inclusive provendo melhores cuidados físicos e psicológicos para os traumas de guerra. Para tal, "precisamos de mais dinheiro e cooperação mais estreita com as ONGs", acrescenta.
Talvez soe um tanto absurdo, admite Aurélie Lamazière, mas a guerra iniciada pela Rússia pode acabar tendo um efeito positivo, por ter trazido a questão à atenção global. Assim, "a Ucrânia pode ser uma chance de mais justiça nos crimes de guerra contra crianças".
Ataques da Rússia a alvos civis na Ucrânia
Vladimir Putin nega que o exército russo esteja atacando alvos civis na guerra na Ucrânia. Mas os fatos o contradizem, como mostra esta galeria de fotos, que nem de longe abrange todos os ataques russos.
Foto: Maksim Levin/REUTERS
Mais de 5.500 civis mortos
O presidente russo, Vladimir Putin, declarou no fim de junho: "O exército russo não está atacando alvos civis". Observadores independentes discordam: de acordo com dados da ONU, mais de 5.500 civis morreram na Ucrânia desde o início da guerra e mais de 7.800 ficaram feridos como resultado de ataques russos. Na foto, um centro comercial destruído em Kremenchuk, 27/06/2022.
Foto: Efrem Lukatsky/AP Photo/picture alliance
Chaplyne: 25 mortos em bombardeio
Uma enorme cratera em Chaplyne. A pequena cidade no leste da Ucrânia, com cerca de 3.800 habitantes, foi alvo de um ataque russo em 24 de agosto, como admitiu mais tarde o Ministério da Defesa em Moscou. O alvo foi um trem de transporte de armas, mas o ataque também atingiu civis. Segundo a companhia ferroviária ucraniana, 25 foram mortos, incluindo duas crianças.
Foto: Dmytro Smolienko/Ukrinform/IMAGO
Vinnytsia: 28 vítimas em ataque com foguete
Em 14 de julho, o exército russo atingiu com um míssil a Casa dos Oficiais de Vinnytsia, onde teria ocorrido "uma reunião da liderança militar das Forças Armadas ucranianas e fornecedores estrangeiros de armas". Entre os 28 mortos, estavam três crianças e três oficiais, além de mais de 100 feridos. Vinnytsia se localiza a sudoeste de Kiev.
Foto: State Emergency Service of Ukraine/REUTERS
Chasiv Yar: 48 mortos em bombardeio
Na noite de 9 de julho, a pequena cidade de Chasiv Yar, no leste da Ucrânia, foi bombardeada. Segundo a mídia, os lançadores de foguetes múltiplos Uragan foram disparados em áreas residenciais. Um edifício residencial de cinco andares foi duramente atingido, e 48 corpos foram resgatados de seus escombros.
Foto: Nariman El-Mofty/AP/dpa/picture alliance
Serhiyivka: 21 mortos em ataque com mísseis de cruzeiro
Um ataque a Serhiyivka em 1º de julho custou pelo menos 21 vidas. O porto perto de Odessa aparentemente foi atingido por mísseis de cruzeiro durante a noite, como a Anistia Internacional informou após investigações no local. Pelo menos 35 ficaram feridos nos ataques. Por ser um resort de saúde, Serhiyivka é particularmente popular entre os turistas russos.
Foto: Maxim Penko/AP/picture alliance
Kramatorsk: 61 mortos na estação de trem
Imagens terríveis de Kramatorsk deram a volta ao mundo em 8 de abril: vários mísseis submarinos russos 9K79-1 Tochka atingiram a estação ferroviária da cidade no leste da Ucrânia, enquanto passageiros esperavam pelo trem. 61 foram mortos, incluindo sete crianças. Cientistas de balística determinaram que os mísseis haviam sido disparados da área da Ucrânia controlada pelos russos.
Foto: Ukrainian President Volodymyr Zelenskyy's Telegram channel/dpa/picture alliance
Bucha: encontrados 1.316 corpos
Bucha tornou-se sinônimo das ações brutais do Exército russo: depois que as tropas inimigas partiram, em 30 de março, vários corpos jaziam na rua Jablunska. No total, foram encontrados 1.316 corpos em Bucha e arredores. Embora a Rússia tenha negado quaisquer massacres, verificadores de fatos internacionais e equipes de investigação confirmaram execuções de civis por soldados russos.
Foto: Zohra Bensemra/Reuters
Mykolaiv: 36 mortos em ataque à administração regional
Em 29 de março, um ataque aéreo atingiu o prédio da administração regional de Mykolaiv. A parte central do edifício foi completamente destruída, do primeiro ao nono andar, restando apenas um esqueleto do prédio. A explosão também danificou vários edifícios residenciais e administrativos próximos, causando a morte de 36 cidadãos.
Em 16 de março, uma bomba destruiu o teatro no centro de Mariupol. De acordo com a Human Rights Watch, mais de 500 civis estavam se abrigando dos ataques no prédio na época. A palavra "Crianças" escrita em enormes letras brancas na frente e atrás do prédio não serviu como escudo. Segundo a prefeitura, 300 morreram.
Foto: Pavel Klimov/REUTERS
Mariupol: quatro mortos em ataque a clínica
Um ataque aéreo russo em 9 de março destruiu o hospital infantil e a maternidade de Mariupol. Houve menos quatro mortes, incluindo uma grávida e seu bebê, 17 ficaram feridos. Enquanto o Ministério da Defesa russo falou de uma "provocação encenada", o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, chamou o atentado de "crime de guerra".
Foto: Evgeniy Maloletka/AP/picture alliance
Charkiv: foguete mata 24 pessoas
Um vídeo de vigilância divulgado pelo Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia mostrou um foguete atingindo o prédio da Administração Estatal Regional de Kharkiv em 1º de março, causando 24 mortes, inclusive de transeuntes.
Foto: Pavel Dorogoy/AP/picture alliance
Inquérito do Tribunal Penal Internacional
As autoridades ucranianas relatam mais de 29 mil crimes de guerra, do início do conflito, em 24 de fevereiro de 2022, até 26 de agosto. Investigações independentes prosseguem. O Tribunal Penal Internacional enviou equipes para coletar informações. De acordo com as Convenções de Genebra, ataques deliberados a civis são crimes de guerra. No entanto, a Rússia não reconhece a corte sediada em Haia.