Argentina, que se opunha ao livre-comércio, agora tem um presidente que quer reaproximar o país da comunidade internacional. Com isso, o freio do bloco sul-americano passa a ser o Brasil, afirmam especialistas.
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Livre comércio entre individualistas? Soa difícil – e o é. Há 24 anos, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai fundaram o Mercado Comum do Sul (Mercosul), na capital paraguaia, Assunção. A ideia era reduzir tarifas e subsídios, assim como eliminar – ou pelo menos equiparar – cotas e outras barreiras comerciais.
Porém o balanço atual é ambivalente. Num tratado que parece ter mais exceções do que regras, poucas barreiras comerciais no interior do bloco foram de fato abolidas. E a assinatura de acordos de livre comércio com países de fora é exceção absoluta, já que nenhum membro do Mercosul pode fazê-lo sem a aprovação dos demais.
Ressurreição na cidade natal?
Nesta segunda-feira (21/12), os presidentes dos quatro países fundadores voltam a se reunir na capital do Paraguai. O encontro cria uma tênue esperança de que o Mercosul possa, finalmente, se comprometer seriamente com os objetivos que formulou.
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro – para quem o capitalismo, em si, é obra do diabo – não confirmou sua participação na reunião. O país se juntou ao bloco em 2006, sem jamais ter ratificado nenhum acordo comercial.
Paraguai e Uruguai, por sua vez, há tempos fazem pressão pela abertura do Mercosul em direção ao mundo industrializado – por exemplo, para a União Europeia. E a Argentina, que até o momento vinha bloqueando qualquer liberalização pelos parceiros, tem agora um novo presidente.
Mauricio Macri quer reaproximar a Argentina da comunidade internacional – da qual os três governos kirchneristas isolaram o país, desde 2003 –, e um Mercosul fortalecido contribuiria para tal. Não se trata apenas da relação dentro do bloco, mas também do comércio exterior com outras zonas econômicas: sob Cristina Kirchner, a Argentina retardou repetidamente as negociações com a UE.
"Todos os olhos estão sobre Macri. Desde já ele tem demonstrado enorme vontade de realizar reformas", diz Juan Carlos Hidalgo, especialista em América Latina do Instituto Cato, em Washington. Menos de uma semana após a posse, Macri anunciou o fim da vinculação da cotação do peso argentino ao dólar americano, em vigor no país desde 2011; além de anunciar planos concretos para reduzir as taxas de exportação sobre produtos agrários e industriais.
Antes mesmo de assumir o cargo, o presidente argentino viajou a Brasília para conversar com Dilma Rousseff sobre um fortalecimento das relações comerciais. "Se o Brasil vai bem, a Argentina vai bem", afirmou Macri durante a vista, no início de dezembro.
Gigante instável
Logicamente o Brasil é, apesar de todo o protecionismo, o maior parceiro comercial da Argentina. O problema é que a economia brasileira, a maior da América Latina, não vai bem. Calcula-se que em 2015 ela minguou em mais de 3,5%.
As reformas econômicas anunciadas por Dilma não foram apoiadas por seu próprio PT, de tendência intervencionista. E esse apoio que se faz mais necessário que nunca, uma vez que a presidente enfrenta um processo na Câmara que pede seu impeachment.
Por isso, Hidalgo, do Instituto Cato, supões que no momento Dilma esteja mais preocupada em buscar o apoio em seu partido do que em se empenhar por um acordo comercial com a UE, como anunciou em junho, em Bruxelas. Prova disso seriam as relações estremecidas com o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, cuja saída do cargo vem sendo especulada há meses.
Dúvidas sobre o avanço do Mercosul
Martin Häusling, do partido alemão Aliança 90/Os Verdes e membro da Comissão para a América Latina do Parlamento Europeu, não acredita num avanço rápido das negociações entre o Mercosul e a União Europeia.
Além da fraqueza de Dilma na política interna, existe um outro argumento contrário: "Nem na Europa, nem nos países do Mercosul há um consenso social para tal." Enquanto as sociedades da América Latina estão muito polarizadas quanto ao tema, os europeus mostram-se, antes, céticos em relação a tratados de livre comércio, aponta o político verde.
Ele próprio, no entanto, é a favor da manutenção das atuais comerciais, temendo que, do contrário, a soja transgênica do Mercosul inunde os mercados da UE. Além disso "um tratado desses favoreceria, em primeira linha, as grandes estruturas agrárias e industriais", sendo questionáveis os benefícios para a população, frisa Häusling.
O especialista Juan Carlos Hidalgo, em contrapartida, cita os pontos positivos de uma redução dos custos de exportação e importação entre os blocos: "Maior intercâmbio de bens e serviços, produtos importados mais baratos, maior segurança jurídica para os investidores e, por fim, crescimento econômico de ambos os lados do Atlântico".
O fim da era Cristina Kirchner
Após 12 anos de kirchnerismo, a Argentina elege um novo presidente. Relembre a trajetória de Cristina Fernández de Kirchner, que deixa tanto problemas econômicos quanto avanços sociais como herança de seu governo.
Foto: Getty Images/AFP/F. Monteforte
Cristina Fernández, "relato" e dramaturgia
Em oito anos de governo, Cristina se destacou por seu estilo e a tendência ao drama – foi acusada, inclusive, de criar um "relato" próprio da realidade da Argentina. Neste ano, ela deixa a Casa Rosada, e a era Kirchner chega ao fim. Com uma maioria kirchnerista no Congresso, porém, Cristina promete seguir influenciando a vida política do país.
Foto: Getty Images/A.Pagni
A sucessora de Néstor Kirchner
Cristina começou sua carreira política em 1989, como deputada pela província de Santa Cruz. Conheceu Néstor Kirchner durante a militância peronista, em 1974, e os dois se casaram no ano seguinte. Ele foi presidente da Argentina de 2003 a 2007, ano em que a mulher ganhou as eleições para sucedê-lo. A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, foi um duro golpe para Cristina e seus dois filhos.
Foto: D. Garcia/AFP/Getty Images
Laços estreitos com o Mercosul
Na foto, Cristina e o presidente da Bolívia, Evo Morales, vestem trajes típicos bolivianos durante uma cerimônia na Casa Rosada, sede da presidência em Buenos Aires. Ela sempre defendeu laços estreitos com os países vizinhos. Em 2013, anunciou que aceleraria "a reconstituição do Mercosul" e, no mesmo ano, disse que a espionagem dos EUA sobre o Brasil afetava a "dignidade" de toda a América do Sul.
Foto: Reuters/M. Brindicci
A reeleição
Em 2011, Cristina foi reeleita presidente da Argentina com 54,11% dos votos. Na foto, ela posa entre os dois filhos, Máximo e Florencia, em frente ao Congresso Nacional, em Buenos Aires, após tomar posse. Atualmente candidato a deputado, Máximo está sendo investigado sob suspeita de manter contas secretas nos Estados Unidos e Irã. Ele nega as acusações.
Foto: picture-alliance/dpa/C. de Luca
Um vice em apuros
Amado Boudou, então ministro da Economia, foi nomeado vice-presidente no segundo mandato de Cristina. A escolha foi mais tarde criticada, principalmente pelas polêmicas acusações que emergiram contra ele. O escândalo político conhecido como Ciccone, por exemplo, ligou Boudou à compra de uma falida empresa monopolista a fim de operar com o Estado na impressão de notas e documentos fiscais.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Goya
A luta contra o "Clarín"
O debate sobre a concentração da mídia segue aberto na Argentina. Cristina Kirchner travou uma longa batalha contra o grupo argentino "Clarín", acusando-o de monopólio midiático. Ao mesmo tempo, foi criticada por estimular a criação de um grupo de "veículos viciados no governo", segundo apontou, em entrevista à DW, a jornalista Laura di Marco, autora de uma biografia não autorizada da presidente.
Foto: picture alliance/dpa Fotografia
Direitos humanos
Cristina deu continuidade às políticas de direitos humanos de Néstor: aprovou leis acerca do casamento gay e da transexualidade e apoiou a busca por crianças desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Na foto, ela conversa com Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Seu neto, Guido, recuperou a verdadeira identidade ao ser encontrado em 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
Discurso em rede nacional
A presidente está acostumada a falar em rede nacional – algo aplaudido por seus seguidores e criticado pela oposição. Ao se dirigir ao público, Cristina mantém um estilo sempre muito pessoal e, para muitos, carismático. "O kirchnerismo trouxe independência à Argentina", disse ela em um de seus discursos, em julho de 2015.
Foto: picture-alliance/dpa/L. La Valle
Falta de transparência
Em junho de 2015, Cristina enviou ao Congresso um projeto de lei para que alguns programas sociais sejam ajustados de tempos em tempos. Entre eles está o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol), equivalente ao Bolsa Família. Esses avanços na área social, porém, acabam sendo ofuscados pela falta de transparência com os índices de pobreza, a alta inflação e o déficit fiscal.
Foto: Reuters/E. Marcarian
Argentina versus "fundos abutres"
A batalha contra os chamados "fundos abutres" segue no país. Em setembro de 2015, a ONU aprovou uma resolução, recomendada pela Argentina, que propõe a criação de um marco legal para a reestruturação da dívida soberana. O ministro da Economia, Axel Kicillof (dir.), comemorou a decisão como "um passo fundamental".
Foto: Leo La Valle/AFP/Getty Images
Cristina, papa e "Estado Islâmico"
Em setembro de 2014, o papa Francisco recebeu Cristina, sua compatriota, no Vaticano. Após um encontro privado com o pontífice, a presidente revelou ter sofrido ameaças do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI) por conta de sua posição diplomática diante dos conflitos no Oriente Médio – ela é favorável à existência de dois Estados: o da Palestina e o de Israel.
Foto: picture-alliance/dpa
Incentivo à cultura
Em nível nacional, o governo Cristina Kirchner deu um impulso importante à realização de eventos culturais e artísticos, mas com um estilo claramente personalista. Na foto, a presidente argentina participa da inauguração do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, em maio de 2015. Na ocasião, ela classificou o local como o "mais importante centro cultural da América Latina".
Foto: Reuters/Argentine Presidency
Duas cirurgias
Em seu segundo mandato como presidente da Argentina, Cristina foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos sérios: um para remover um tumor na tireoide, em janeiro de 2012, e outro para drenar um hematoma cerebral, em outubro de 2013. Ela teve boa recuperação em ambos os casos, mas precisou ficar afastada do trabalho por um curto período de tempo.
Foto: picture-alliance/dpa
Negócios com a Rússia
Cristina se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, em abril de 2015, e do encontro pode ter saído muito mais que os acordos energéticos e econômicos firmados. Em ano eleitoral na Argentina, o gesto chegou a ser interpretado como um esforço da presidente para afastar o país de seu tradicional alinhamento com os Estados Unidos e a União Europeia e estimular uma aproximação com os Brics.
Foto: Reuters/A. Nemenov
Caso Nisman choca o país
A morte do promotor Alberto Nisman abalou a sociedade argentina e continua sem esclarecimento perante a Justiça. Ele foi encontrado morto em casa em 18 de janeiro de 2015, dias antes de divulgar um relatório polêmico contra a presidente. Nisman acusaria Cristina de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país: o atentado a bomba à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Pisarenko
Sucessor da era Kirchner?
Daniel Scioli, da coligação Frente para a Vitória, é o candidato à presidência argentina capaz de dar continuidade ao programa político do kirchnerismo. Segundo especialistas, o governo deixa como herança para o próximo presidente graves problemas econômicos e estruturais, mas também avanços sociais e um aumento no nível de consumo da população.
Foto: Reuters/A.Marcarian
Adeus à figura que polariza
Com seu estilo autoritário e maternal, Cristina Kirchner polarizou a sociedade argentina. Esteve cercada de acusações de corrupção, e a insegurança jurídica cresceu durante seu governo. Por outro lado, deu impulso à cultura e aos direitos civis. Ao dizer adeus, Cristina deixa um legado complexo à próxima administração, e é improvável que se afaste totalmente da agenda política do país.