Curdos veem esperanças de autonomia sumirem na Síria
Anchal Vohra rk
11 de janeiro de 2019
Destino da cidade de Manbij diante da retirada anunciada por Trump é representativo do futuro dos curdos na Síria. Forçados a abandoná-la, eles veem chances de criarem região autônoma no norte do país diminuírem.
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Abdullah*, um curdo de 26 anos da cidade de Manbij, pai de duas meninas, está confiante de que as Unidades de Proteção Popular (YPG), milícias curdas que combatem sob a égide das Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês), continuarão presentes na cidade que libertaram do "Estado Islâmico" (EI) em 2016, a custo de muito esforço e sangue.
O pai de duas meninas diz que, apesar do tuíte do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dizendo que vai retirar 2 mil tropas americanas da Síria, da ameaça de invasão pela Turquia e da presença do Exército sírio nos arredores, nada mudou na cidade. "Agora, o poder que está no controle é o Conselho Militar de Manbij", disse Abdullah à DW, sobre a entidade governamental local tanto dos árabes quanto dos curdos, mas dominada por estes. "Eles é que estão administrando a cidade, ninguém mais", disse.
Manbij, uma cidade síria a apenas 32 quilômetros da fronteira com a Turquia, tornou-se o novo foco da guerra na Síria depois que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, ameaçou com um ataque se as YPG não deixarem essa área a oeste do rio Eufrates. A Turquia vê as milícias curdas – que são aliadas da coalizão internacional liderada pelos EUA para combater o EI – como um braço do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que considera uma força terrorista e separatista no interior da Turquia.
Apesar de os curdos sempre terem contado com essa possibilidade, ficaram chocados. Na ânsia de proteger Manbij dos turcos, eles recorreram ao inimigo interno, o governo sírio, que se apressou em enviar suas forças para os arredores da cidade, mas com o objetivo próprio de recuperar território perdido.
Os curdos temem que, uma vez que os americanos partam, perderão todo apoio e ficarão não apenas vulneráveis a um ataque pela Turquia, como também fracassarão em atingir todos os seus objetivos políticos – principalmente estabelecer uma região autônoma ao longo do trecho no nordeste da Síria, ao longo da fronteira turca. Os curdos perderam Afrin para rebeldes sírios apoiados pela Turquia em fevereiro, mas havia uma esperança persistente de que eles podiam manter outras áreas, como Manbij, Qamishli (no extremo leste) e Raqqa (centro-norte).
Agora, a questão para os curdos é como salvar a situação, e parece que eles têm apenas duas opções: convencer os Estados Unidos a permanecerem na região ou persuadir o presidente sírio, Bashar al-Assad, a fazer concessões. "O sonho curdo é ter autonomia e que as áreas sejam administradas pelas pessoas que vivem nelas", explica Abdullah.
Ao mesmo tempo, Fawjia Yousif, membro do governo independente curdo no nordeste da Síria, diz que os milicianos curdos já deixaram Manbij. "Eles saíram há algum tempo, e isso foi anunciado oficialmente pelas YPG", afirma.
A agência de notícias síria Sana também divulgou que pelo menos 400 milicianos deixaram a área até agora. Nick Feras, pesquisador em Segurança no Oriente Médio no think tank Center for a New American Security, em Washington, acha que a saída das Unidades de Proteção Popular é irreversível e vai ocorre mais cedo ou mais tarde. "As YPG terão que se retirar de Manbij, pura e simplesmente. Há um consenso geopolítico de que as YPG foram longe demais ao ficarem em Manbij, e agora o grupo precisa retornar até a margem oriental do Eufrates. Até os americanos decidiram que não pode mais haver uma presença das YPG em Manbij", considera Feras.
Se os milicianos curdos realmente se retiraram ou planejam fazê-lo, a Turquia pode não cumprir a ameaça de invasão, mas os curdos ainda continuarão abandonados e se perguntam se são apenas uma espécie de penhor de cálculos geopolíticos maiores.
O EI foi amplamente eliminado em termos territoriais, mas há preocupações de que a sua ideologia permaneça viva e que os membros do grupo – dispersados durante a guerra – possam se reagrupar se os EUA saírem e se houver uma luta de poder entre as partes envolvidas.
Tanto o Secretário de Defesa James Mattis quanto Brett McGurk, enviado americano para a coalizão anti-EI, renunciaram aos seus cargos em resposta ao anúncio de Trump. E, à medida que a pressão aumentou, Trump começou a adiar a anunciada retirada. "Queremos proteger os curdos, mas não quero ficar na Síria para sempre, é areia e é morte", disse recentemente o presidente americano.
O Conselheiro Nacional de Segurança dos Estados Unidos, John Bolton, foi além. Em viagem a Israel e com o objetivo de abrandar as preocupações de Jerusalém de deixar um vácuo de poder em sua vizinhança, Bolton disse que a retirada era condicional.
Os curdos não entendem as decisões dos Estados Unidos e não sabem em que declaração acreditar ou em quem confiar. Agora, eles estão tentando utilizar o adiamento por tempo indeterminado da retirada de tropas para pressionar Assad a chegar a algum tipo de arranjo.
Fawjia Yousif confirmou que os curdos estão negociando com o governo Assad. "Houve conversas recentes com o regime sobre a situação em Manbij", disse. "O que também é preciso que saia dessas conversas é focar no alcance de uma resolução abrangente para a crise síria, incluindo as áreas da administração autônoma no nordeste do país", enumera.
Aaron Stein, diretor do programa para o Oriente Médio no Instituto de Pesquisas de Política Externa na Filadélfia, acha que os curdos se dariam melhor se se alinhassem ao governo sírio. "Os curdos têm uma chance de fazer um acordo, mas precisam esperar até a saída dos EUA e se posicionar junto ao regime sírio para garantir que haja um movimento praticamente simultâneo entre cada lado", explica.
Até agora, o governo sírio se recusou a conceder aos curdos a autonomia que eles procuram. Mas os curdos esperam que, com tempo, consigam concessões.
Abdullah diz que o futuro dos curdos é dentro da Síria e que tudo o que eles querem é serem governados por seu próprio povo. "Isso não implica necessariamente separação ou um Estado independente", afirma.
*Nome alterado pela redação para proteger a identidade do entrevistado
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O que se iniciou com protestos pacíficos em 2011 virou uma guerra civil brutal que já matou centenas de milhares de pessoas e fez milhões de refugiados. Reveja os principais acontecimentos.
Foto: Reuters/Stringer
2011: O início
Em 15 de março de 2011, protestos pacíficos contra a detenção de jovens acusados de fazer pichações antigoverno em sua escola, na cidade de Daraa, são reprimidos por forças de segurança, que abrem fogo contra manifestantes desarmados, matando quatro. Os protestos continuam por vários dias, fazendo 60 mortos e se espalham por todo o país. Segue-se um período de repressão violenta.
Foto: Anwar Amro/AFP/Getty Images
2011/2012: Isolamento internacional
O ex-presidente Barack Obama insta o presidente Bashar al-Assad a renunciar, e os EUA anunciam sanções a Assad em maio e congelam bens do governo sírio nos EUA em agosto de 2011. A União Europeia também anuncia sanções, em setembro. Em novembro, a Liga Árabe suspende a Síria e impõe sanções ao regime. Também a Turquia anuncia uma série de medidas, incluindo sanções, em dezembro.
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2012: Observadores internacionais desistem
Em dezembro de 2011, a Síria permite a entrada de observadores da Liga Árabe para monitorar a retirada de tropas e armas de áreas civis. A missão é suspensa em janeiro de 2012. Em fevereiro, os EUA fecham sua embaixada em Damasco. Em abril de 2012, chegam observadores da ONU, que partem dois meses depois por falta de segurança.
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2013: Ataque com gás
Em março, um ataque com gás mata 26 pessoas, ao menos a metade deles soldados do governo, na cidade de Khan al-Assal. Investigação da ONU conclui que foi usado gás sarin. Em agosto, outro ataque com gás mata centenas em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco controlado pelos rebeldes. A ONU afirma que mísseis com gás sarin foram lançados em áreas civis. Os EUA e outros países culpam regime sírio.
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2013: Destruição de armas químicas
Em agosto, investigadores da ONU chegam à Síria para averiguar o uso de armas químicas, em meio a denúncias de médicos e ativistas. EUA afirmam que 1.429 pessoas morreram num ataque, e Obama pede ao Congresso autorização para ação militar. Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU ameaça usar a força e, em outubro, Damasco inicia a destruição de seu arsenal declarado de armas químicas.
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2014: EUA atacam "Estado Islâmico"
Em setembro, os EUA iniciam ataques aéreos a alvos do "Estado Islâmico" na Síria. Em outubro, o mediador da ONU, Staffan de Mistura, começa a negociar uma trégua ao redor de Aleppo, mas o plano fracassa meses depois.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Ghirda
2015: Rússia entra no conflito
Em setembro, a Rússia, que desde o início fornecera ajuda militar ao governo sírio nos bastidores, entra ativamente no conflito, bombardeando opositores do regime. A ajuda se mostra decisiva, e a guerra civil passa a pender para o lado de Assad, que nos meses seguintes recupera território perdido para os rebeldes.
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2016: Governo controla Aleppo
A ONU e a Opac afirmam que tanto militares sírios quanto o "Estado Islâmico" usaram gás em ataques a opositores. O ano é marcado por várias tentativas de tréguas. Em setembro, a cidade de Aleppo é alvo de 200 ataques aéreos por forças pró-Assad num fim de semana. Em dezembro, as forças governamentais assumem controle de Aleppo, encerrando quatro anos de domínio dos rebeldes.
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2017: Ataque em Idlib
Em fevereiro, Rússia e China vetam resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo sanções ao governo sírio pelo uso de armas químicas. Em abril, ao menos 58 pessoas morrem na província de Idlib, dominada pelos rebeldes, no que aparenta ser um ataque com gás. Testemunhas afirmam que o ataque foi executado por jatos sírios e russos, mas tanto Moscou quanto Damasco negam bombardeio.
Foto: Getty Images/AFP/O. H. Kadour
2017: Resposta dos EUA
Em abril, os EUA lançam dezenas de mísseis sobre a base militar de onde se acredita ter saído o ataque em Idlib. Em maio, o presidente Donald Trump aprova planos para armar combatentes das milícias curdas YPG na luta contra o "Estado Islâmico". A medida enfurece a Turquia, que vê as YPG como um grupo terrorista. Em outubro, o "Estado Islâmico" perde o controle de Raqqa, sua autoproclamada capital.
Em janeiro, aviões turcos bombardeiam a região curda de Afrin, dando início à operação contra as YPG intitulada "Ramo de Oliveira". A Turquia anuncia a morte de centenas de "terroristas", mas entre os mortos estão dezenas de civis, dizem ativistas. Em fevereiro, as milícias YPG chegam a acordo com o regime sírio para o envio de tropas pró-governo para auxiliar no combate aos turcos em Afrin.
Foto: picture alliance/AA/E. Sansar
2018: Ofensiva em Ghouta Oriental
Em 21 de fevereiro, tropas pró-regime executam ofensiva em larga escala contra enclave rebelde localizado ao leste de Damasco. Em torno de 400 mil civis ficam sitiados, com acesso limitado a alimentos e cuidados médicos. Os ataques matam centenas de pessoas. No dia 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU aprova trégua humanitária de 30 dias vigente em todo o território sírio. Ela fracassa.
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2018: O bombardeio ocidental
Após dias de ameaça, em 14 de abril Trump anuncia o lançamento de mais de cem mísseis, em conjunto com França e Reino Unido, na Síria. O ataque é uma retaliação ao ataque químico na cidade de Duma, que matou dezenas de civis e que o Ocidente atribui ao regime de Bashar al-Assad.
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2019: Estados Unidos começam a se retirar da Síria
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos começaram a se retirar da Síria. O presidente americano afirmou que o Estado Islâmico havia sido derrotado e, por isso, a presença dos EUA não seria mais necessária. A decisão foi contestada dentro do próprio governo e também pelas milícias curdas na Síria, aliadas dos EUA, que temiam enfraquecer-se.
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2019: fim do autoproclamado califado do EI
Em março de 2019, as Forças Democráticas Sírias (FDS), aliança liderada por curdos, anunciaram que o autoproclamado califado do Estado Islâmico foi totalmente eliminado, após combates em Baghouz, considerado o último reduto jihadista na Síria. Militantes curdos e árabes das FDS, apoiados pela coalizão internacional liderada pelos EUA, combatiam há várias semanas os jihadistas.