Da Antiguidade aos dias de hoje: bens culturais como butim
25 de maio de 2021A quem pertencem os bens culturais? A partir de quando se trata de arte saqueada, e como no futuro os museus devem lidar com ela? Recentemente, essas questões transpiraram do mundo museológico para a esfera pública, com a devolução à Nigéria dos Bronzes de Benim, ao que a Alemanha se comprometeu até 2022.
O episódio é uma conquista, já que há anos as exigências nesse sentido vinham sendo rechaçadas – e isso apesar de cerca de 90% do patrimônio cultural da África Subsaariana se encontrar em museus do Ocidente. E um duplo lançamento literário recente mostra ser bem mais antiga a discussão sobre a aquisição e propriedade legal de bens culturais.
Com o sumário – porém marcante – título Beute (Butim), a publicação consiste de um atlas ilustrado, mostrando a iconografia da pilhagem das peças, e uma antologia, reunindo textos sobre saque de arte e patrimônio cultural. Fruto de três anos de trabalho de equipe na Universidade Técnica de Berlim (TU Berlin), os dois volumes partem do ano 600 antes de Cristo e vão até 2015.
Para o ambicioso projeto, Isabelle Dolezalek, Merten Lagatz, Bénédicte Savoy, Philippa Sissis e Robert Skwirblie colaboraram com mais de 80 autores internacionais. Entre eles encontravam-se também 25 estudantes, os "futuros funcionários de museus e pesquisadores", como define Sissis.
"Aqui não só se difunde saber, mas ao mesmo tempo um monte de gente cresceu junto." Ou seja, trabalhou-se no sentido de uma mudança de percepção, em que os estudantes "formaram a própria opinião, e agora podem ir para o mundo e dizer: 'É inquestionável que se reflita sobre onde é o lugar das coisas.'"
Também uma questão de linguagem
"O lugar das coisas" é algo sobre que já pensavam autores da Antiguidade, como Cícero ou Políbio. Mais tarde, a reflexão prosseguiu com escritores como Friedrich Schiller, Johann Wolfgang von Goethe, Victor Hugo e Émile Zola. O olhar sobre o passado literário mostra como até mesmo os apelos e as formulações se repetem entre os textos.
"Nós chamamos isso de 'narrativa do resgate', explica Robert Skwirblies. "Quer dizer, existe o argumento: 'X diz que tomamos objetos de Y, senão eles seriam quebrados'." Desse modo, sugeria-se que o ato do saque era altruísta, visando proteger e preservar os objetos. A "narrativa do resgate" ajudava a ocultar que, para tal, muitas vezes se empregava grande violência.
A linguagem, ou melhor, as linguagens e idiomas desempenham um papel importante na pesquisa da equipe. Na França, por exemplo, no debate sobre bens culturais pilhados, fala-se até hoje de conquête artistique (conquista artística); na Itália, em contrapartida, de furto.
"Cada palavra encapsula em si uma perspectiva", explica a historiadora de arte Bénédicte Savoy, uma das principais figuras do estudo da arte saqueada. Ela contribuiu significativamente para dar partida ao atual debate sobre a restituição: em 2018, o presidente francês, Emmanuel Macron, encarregou a ela e ao economista senegalês Felwine Sarr um estudo aprofundado sobre a devolução de patrimônio cultural africano.
A vida secreta dos objetos
A meta de Beute é iluminar a história dos bens culturais, não só no contexto de sua criação ou apresentação, mas também considerando as relações de propriedade cambiantes em que se encontraram e encontram. Para expressar essa complexidade, a equipe da TU cunhou o termo "translocação".
"Com esse conceito, dispomos de um instrumento que nos permite ter todas essas perspectivas", explica Savoy. Por um lado, aqui se argumenta do ponto de vista geográfico, observando o movimento de um lugar a outro, e do outro, em termos de genética humana, a transformação de uma herança, nesse caso não de indivíduos, mas no sentido de um patrimônio cultural.
"Os objetos não permanecem enquanto o tempo passa: também eles mudam", enfatiza Savoy, "e quando hoje se fala de restituição, trata-se da devolução de um 'outro mesmo', por assim dizer."
Muitas vezes as peças também passam por uma transformação bem específica, ao serem subjetivadas: "Temos aqui ilustrações de objetos que choram, ou falam, dizendo 'quero ir para casa', ou 'aqui me sinto mal', ou 'estou mutilado'", prossegue a historiadora.
"Quando se perde um bem cultural, perde-se uma parte da própria identidade, e isso persiste por muito tempo", completa Isabelle Dolezalek. Desse modo, se esvazia a argumentação usual de que, em épocas anteriores, regiam outras leis ou costumes, os quais, por exemplo, legitimavam a retirada de arte do contexto colonial, pois "não é fácil esquecer, quando se começa a arranhar a identidade de uma sociedade, lhe tomando sua cultura".
"Museus não são armazéns mortos"
A hábil encenação das imagens de bens culturais pilhados é outro ponto central a que Beute se dedica: que motivos são empregados, e como são interpretados?
Um motivo recorrente é o triunfo, o sentimento despertado pelo saque da Grécia antiga por Roma, as conquistas napoleônicas ou as campanhas de pilhagem coloniais, a destruição pelos nacional-socialistas, ou pelo retorno de tesouros de arte florentinos do Tirol do Sul.
"Outra coisa importante é que, quando os objetos estão num local, há sempre a possibilidade de processos de fertilização, ou de trabalhar neles", acrescenta o historiador Merten Lagatz. Como exemplo, ele cita La Nature, uma revista de ciência popular da época colonial, em que um cientista se encena estudando objetos que acabam de chegar ao museu.
A atividade de colecionar arte serve para explicitar a própria superioridade, "mas para a sociedade de que as peças se originam, não há tais atestados", frisa Lagatz. "Os objetos simplesmente não estão mais lá. Mostrar essa lacuna nas imagens também é um resultado de nossa pesquisa."
Os autores do atlas e da antologia definem como muito positivo o fato de, nos últimos anos, ter havido movimento dentro da Europa na discussão sobre como lidar com a arte em contextos ilícitos. "Estamos felizes de que os museus não sejam um armazém morto de objetos, ou que sejam entendidos assim", observa Robert Skwirblies.
Com a publicação de Beute, os cinco editores querem mostrar que os debates sobre o lugar verdadeiro de bens culturais sempre existiram, e que é importante continuar travando-os.