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Da Constituição para a sala de aula

Nádia Pontes de São Paulo
23 de março de 2018

Projeto criado por jovem advogado transmite conceitos da Constituição brasileira a alunos de escolas públicas de São Paulo. Premiada por programa de Obama, iniciativa estimula debate sobre direitos e deveres.

Projeto Constituição nas Escolas
Projeto deve atender cem escolas em São Paulo em 2018 e tem expansão programada para Salvador e BrasíliaFoto: DW/N. Pontes

Reunidas na sala de vídeo, três turmas do último ano do ensino médio da escola estadual Emiliano Di Cavalcanti, em São Paulo, esperavam a aula começar. No papel de professor na manhã da última sexta-feira (16/03), o advogado Felipe Neves, 28 anos, começou com perguntas que intrigaram os estudantes – e aos poucos foram soando mais interessantes que o smartphone que muitos ainda tinham nas mãos.

Quando ouviram uma das respostas que ninguém sabia dar, a surpresa foi geral. "A Constituição brasileira é formada por 250 artigos", disse Felipe. "Mas não se preocupem, nenhum advogado sabe todos de cabeça", emendou em tom informal, quebrando o gelo de vez.

Leia também: Ele quer mudar a educação pública no Brasil

Na sequência, vieram duas horas de debates e dúvidas sobre direitos e deveres. Os alunos, a maioria com 16 anos de idade, pareceram se interessar pela lei – embora muitos tenham repetido que "poucas pessoas acreditam nela". Professores também participaram do debate.

A aula é parte do projeto Constituição nas Escolas, criado por Neves em 2014. Ele começou sozinho, com ajuda de um professor da universidade. "Queria levar o conhecimento sobre a Constituição para os estudantes. Nas nossas aulas, a gente percebe que a maioria não sabe o que diz a lei e quais direitos ela garante", conta.

A iniciativa cresceu, ganhou prêmios, visibilidade, apoio e mais voluntários. As aulas na Emiliano Di Cavalcanti agora serão tocadas por Marcos Mitidieri, que acompanhou Neves na aula de sexta-feira.

"É a vontade de contribuir com o ensino público, com o espirito público, com a ideia de termos um país melhor", explica Mitidieri sua motivação para participar da iniciativa.

A iniciativa cresceu, ganhou prêmios, visibilidade, apoio e atualmente conta com 70 voluntáriosFoto: DW/N. Pontes

Reconhecimento dentro e fora do país

Em 2014, prestes a concluir a faculdade de Direito, Neves teve a ideia a partir dos relatos sobre falta de professores na rede pública que ouvia de sua diarista. Para a primeira aula, vestiu um terno e levou a Constituição Federal para a sala – aquele também era o seu primeiro contato direto com uma escola pública.  

Dois anos mais tarde, foi um dos 250 escolhidos para participar de um programa lançado naquele ano pelo então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. O Young Leaders of the Americas Initiative (YLAI) reconhece jovens líderes criadores de ideias de impacto social e oferece quatro meses de estadia nos EUA.

Ao retornar ao Brasil, o patrocínio oferecido pelo escritório onde Neves atuava garantiu a expansão do projeto e um incentivo para aumentar a adesão dos alunos. Com dinheiro para comprar computadores e custear uma bolsa de estudos num cursinho, Neves organizou a primeira Olimpíada Constitucional de São Paulo, em 2017.

"Foi uma emoção tremenda quando a gente soube da Olimpíada. A gente tinha uma chance de saber mais e aplicar o que aprendeu na aula", conta Grasieli Regina, uma das quatro ganhadoras.

Atualmente, ela passa as tardes estudando no pré-vestibular para ser aprovada no curso de Medicina. "O pessoal do projeto sempre me escreve pra saber como estou nos estudos. Não foi só ganhar o prêmio e ficar por isso mesmo. Eles têm todo um cuidado que faz a diferença", diz a adolescente.

"Todos tinham que saber o que a Constituição diz"

Os estudantes da Emiliano Di Cavalcanti querem participar da competição em 2018. Em grupos de quatro alunos, eles devem escrever uma redação sobre o tema escolhido: "Deve-se exigir escolaridade mínima de candidatos à presidência?" Os argumentos precisam ter base na Constituição.

Renan, 16 anos, vai se inscrever. Antes ele queria estudar Direito depois do ensino médio, mas agora está pensando em História. Durante a aula do projeto, ele foi um dos que mais participaram: disse ser contra a censura, defender os Direitos Humanos e ser contra a pena de morte.

"Todos tinham que saber o que a Constituição diz. Nosso povo é muito reprimido, a violência é grande, e a Constituição é a nossa garantia", disse ao fim do debate.

Letícia, 18 anos, se surpreendeu quando soube da proteção aos domicílios descrita na legislação federal. "Eu não sabia que a Constituição diz que é proibido entrar na casa das pessoas. Que a polícia precisa sempre de uma autorização pra fazer isso", disse.

"A Constituição é formada por 250 artigos. Vocês sabiam?": alunos largam smartphone para aprender sobre a legislação Foto: DW/N. Pontes

Direitos, deveres e conflitos

Em 2018, o projeto deve atender cem escolas em São Paulo, com expansão programada para Salvador e Brasília. O Constituição nas Escolas já conta com 70 voluntários.

"Nós mantemos uma postura neutra. Nas aulas, fazemos perguntas, provocamos o debate com base na Constituição, mas não nos posicionamos", explica Neves. Isso traz um desafio também: conseguir voluntários com esse perfil.

Vinícius Andreatta, vice-diretor da Emiliano Di Cavalcanti, está contente com os resultados. "A escola tem que ter comprometimento, fazer com que alunos e professores se comprometam", diz ele, justificando o sucesso do projeto.

A coordenadora pedagógica, Sonya Soares, também tenta usar a oportunidade para resolver conflitos que a escola vive, como desrespeito ao professor e problemas com estilo de roupa. "O projeto nos ajuda muito a comunicar aos alunos que, como cidadãos, eles têm direitos garantidos. Mas também têm deveres", explica.

Ao fim da aula especial, uma parte dos alunos tinha novamente os celulares nas mãos. Eles anotavam as principais lições do dia e pediam mais um encontro antes das Olimpíadas.

"Quero saber mais sobre o tema da redação. Sei que tem a ver com escolaridade do presidente. Mas acho que não adianta nada ter mestrado e doutorado e não conhecer os nossos problemas, a realidade de quem vem de baixo", conclui Renan.

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