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Da desimportância do futebol em tempos de crise

7 de abril de 2020

A Alemanha enfrenta seu maior desafio desde a Segunda Guerra, e tem gente preocupada com estádios vazios. Em tempos de pandemia, há coisas mais importantes do que a realização de jogos para cumprir calendário.

Partida entre Borussia Mönchengladbach - 1. FC Köln com estádio vazio
Partida entre Borussia Mönchengladbach - 1. FC Köln com estádio vazioFoto: imago images/U. Kraft

"O futebol é a coisa mais importante das coisas sem importância", disse certa vez o italiano Arrigo Sacchi, lendário treinador do Milan e da "Azzurra". É uma frase lapidar que cai como uma luva nesta época de pandemia.

Jürgen Klopp, técnico do Liverpool, fez eco às palavras de Sacchi quando se referiu ao atual momento. Em mensagem aos torcedores dos "Reds", publicada na homepage do clube, justificou a suspensão da temporada da Premier League. Ele pediu a compreensão dos fãs, repetiu literalmente a frase do seu colega italiano e acrescentou: "Eu já disse uma vez e vou dizer de novo: atualmente, o futebol, com seus jogos, não tem nenhuma importância. Evidentemente não queremos jogar em estádios vazios e também não queremos que partidas ou temporadas inteiras sejam suspensas, mas se as atuais restrições contribuírem para que uma única vida seja salva, então qualquer questionamento a respeito deve cessar."

Enquanto apenas atividades consideradas essenciais continuam funcionando, ainda que de forma reduzida, enquanto amplos segmentos da indústria do entretenimento estão completamente paralisados, enquanto o cotidiano dos cidadãos sofreu abrangentes limitações, o futebol profissional alemão quer a todo custo continuar com o show.

Nesta segunda-feira (06/04), os times voltaram aos treinos. Enquanto isso, Christian Seifert, o chefão da Bundesliga, está em contato permanente com o Ministério da Saúde para achar um jeito que permita o reinício do campeonato em maio, nem que seja com "jogos-fantasma". A mensagem do dirigente aos quatro cantos do país é clara: "Mais diversão e distração, mesmo que seja em frente à TV."

Em comunicado oficial, Seifert comparou o futebol à indústria automobilística e por isso não pode parar. Presunção e água benta, cada qual toma a que quer, já dizia o ditado. Haja autoestima! O balanço oficial da Bundesliga em 2019 aponta um faturamento total de 3,8 bilhões de euros, o equivalente a 0,11% do Produto Interno Bruto da Alemanha, enquanto a indústria automobilística contribui com aproximadamente 4% do PIB.

É legítimo que a Liga defenda os seus interesses econômico-financeiros ao insistir na realização de "jogos-fantasma” que trariam aos cofres dos clubes uma boa grana – quase 400 milhões de euros ao todo – mas faça-o claramente sem usar o subterfúgio da função social de distrair as massas para abstraí-las das agruras da pandemia.

O que definitivamente não se pode fazer é colocar nos pratos da balança vidas humanas de um lado, dinheiro do outro e depois fazer as contas. É uma falsa e cruel simetria inadmissível num país civilizado.

Havendo jogos com portões fechados, antes de mais nada e acima de tudo, garantias terão que ser dadas para preservar a saúde dos jogadores e demais participantes do evento. Convenhamos, dependendo das exigências do Ministério da Saúde, tais garantias dificilmente poderão ser dadas em sã consciência.

Caso não seja possível a realização dos "jogos-fantasma" por contingências sanitárias, configura-se o pior cenário para a Liga: o encerramento abrupto da atual temporada. E daí? Qual é o problema? Em tempos de pandemia, há coisas mais importantes do que a realização de jogos de futebol para cumprir calendário.

Às vezes tenho a impressão de que a importância do futebol profissional em geral é supervalorizada. A Alemanha enfrenta seu maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial, o qual, se não for administrado corretamente, pode causar danos ao país jamais vistos nos últimos 70 anos, e tem gente preocupada com jogos de futebol e estádios vazios. Em momentos como esse, todos os esforços e meios materiais devem ser direcionados para garantir o pleno funcionamento do sistema de saúde e salvar o maior número possível de vidas. Todo resto é desimportante agora, inclusive o futebol profissional.

É bom lembrar que o futebol profissional engloba apenas 36 clubes, e todos, em maior ou menor grau, usufruíram da bonança econômica e financeira das duas últimas décadas. Alguns se tornaram clubes-empresa e têm ações negociadas na Bolsa. Outros são subvencionados por grandes conglomerados ou investidores. Alguns dispõem de fundos de reservas estratégicas justamente para sobreviver em tempos de crise.

De outro lado, há também clubes, especialmente na segunda divisão, que deverão passar por dificuldades financeiras e poderão depender de aportes de capital para fugir da insolvência. A Liga, através dos seus cartolas, adora falar em responsabilidade social e solidariedade. Agora é uma boa hora para transformar palavras em atos e ajudar os pequenos a sobreviver.

E por falar em responsabilidade social e solidariedade, tem um futebol longe das câmeras de TV e da grande mídia, onde esses valores são praticados. É no futebol amador das ligas locais e regionais em centenas de pequenas cidades Alemanha afora onde, através do esporte, é feito um trabalho importante de integração e de ajuda mútua nas dificuldades. Nesse segmento das assim chamadas divisões inferiores, ninguém clama por um breve retorno aos gramados.

Por lá, atualmente estão preocupados em fazer a sua parte ajudando no que for possível para superar a crise. Para eles, o futebol pode esperar, não é importante agora.         

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Desde 2002, atua nos canais ESPN como especialista em futebol alemão. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit sai às terças. Siga-o no TwitterFacebook e no site Bundesliga.com.br

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