Flip
5 de julho de 2009Ao longo de oito anos, Nicole Witt trabalhou lado a lado com a agente literária Ray-Güde Mertin, conhecida como uma das maiores responsáveis pela difusão da literatura em língua portuguesa na Alemanha.
Ray-Güde morreu em janeiro de 2007, deixando órfã uma legião de escritores de quem era amiga pessoal, mas não sem deixar uma sucessora na agência literária que fundara em 1982: foi com ela que Nicole aprendeu o passo a passo do trabalho ao qual dá continuidade, representando quase cem escritores de língua portuguesa e espanhola não apenas na Alemanha, mas no mundo todo.
José Saramago, João Ubaldo Ribeiro, Mia Couto e José Eduardo Agualusa são alguns dos escritores representados pela Agência Literária Mertin, especializada em literatura do Brasil, Portugal, da África lusófona e de países hispânicos.
Para manter contatos antigos e fazer outros novos, Nicole Witt foi para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acaba neste domingo (05/07) na cidade histórica do estado do Rio de Janeiro.
Witt volta para Frankfurt com uma mala cheia de novos livros para ler, novos contatos na agenda e a certeza de que a Flip se firmou como um evento literário essencial no âmbito internacional.
Antes de voltar para o Rio para uma última reunião e embarcar para a Alemanha, ela falou à Deutsche Welle sobre as dificuldades de levar escritores de língua portuguesa para outros países, a falta que faz uma política brasileira para fomentar a tradução da literatura nacional em outros países, os desafios após a morte de Ray-Güde Mertin e os novos autores que passou a representar recentemente, e com quem mais uma vez, “com paixão e paciência”, vai tentar furar o bloqueio do mercado alemão, americano, italiano...
Deutsche Welle: Essa é a segunda vez que você vem à Flip. Como você vê a festa e o que leva para casa?
Nicole Witt: Uma mala cheia de livros, impressões, conversas... Para nós é muito importante estar aqui, porque todos estão aqui, e é muito fácil se encontrar com as pessoas. Você faz contatos, conhece gente, troca ideias, descobre coisas sobre as quais nem pensaria em perguntar num e-mail. E fica sabendo das novidades, ouve, por exemplo, que uma pequena editora está sendo criada e que ainda pode vir a ser muito interessante. Ou seja, você está no pulso de tudo. E isso enquanto ainda aproveita a cidade, a boa comida, vai para uma festa e toma uma capirinha. É maravilhoso.
Também gosto do fato de que a Flip faz questão de variar os autores. Há muitos escritores importantes que não estão aqui. Alguns deles já estiveram em edições passadas, outros vão ser convidados no ano que vem. Acho importante ter o foco nessa variedade para manter o evento sempre interessante.
Você também sai daqui com novos projetos ou planos em mente?
Sim, certamente. Eu e a Lúcia Riff [agente literária brasileira] aproveitamos para conversar, por exemplo, sobre quais autores queremos apresentar com mais ênfase na Feira de Frankfurt deste ano. Por exemplo, aqui na Flip está o Arthur Dapieve, que acabamos de apresentar na Feira de Londres, e agora queremos apresentá-lo de novo em Frankfurt de qualquer jeito.
Também aproveitei para passar uns dias no Rio e em São Paulo e encontrar escritores que não estão aqui, como o Luis Fernando Verissimo e o Ferréz. É importante que a gente se veja pelo menos uma vez por ano para trocar ideias, ver o que há de novidades. As novas tecnologias certamente ajudam na comunicação à distância, mas nada substitui a conversa pessoal.
E foi uma boa oportunidade para conhecer jovens autores?
Sim, agora estou cheia de livros na mala para levar para casa, que já quero começar a ler no avião. Na agência trocamos impressões de leitura e avaliamos se queremos, e se podemos, representar mais alguém. Nossa lista de autores já é extensa, então temos que ser cuidadosos ao representar novos nomes, porque nossas capacidades são limitadas.
Representar um autor requer muito tempo e trabalho, envolve preparar textos, traduzir trechos de sua obra, fazer um perfil do escritor, estar sempre em contato com ele, com as editoras, com a imprensa. No dia-a-dia, acabo ficando no escritório das 9 às 22hs, só cuidando da comunicação entre editoras, escritores... É uma troca contínua e incessante.
Você pode citar alguns exemplos de escritores brasileiros que vocês começaram a representar nos últimos anos?
A Adriana Lisboa, que de lá para cá já é conhecida no exterior e tem diversas traduções, o João Paulo Cuenca e o Santiago Nazarian. Os três foram incluídos na lista do Hay Festival, parceria com o Bogotá Capital Mundial do Livro, que selecionou 39 importantes autores latino-americanos de até 39 anos.
Eles já foram publicados na Alemanha?
A Alemanha atualmente é um mercado extremamente difícil. As editoras são muito reservadas no que se refere a traduzir ficção estrangeira e literatura de qualidade. Aproximadamente 60% é traduzido do inglês, e todas as outras línguas ficam com o resto.
Nos últimos anos, países da Europa Oriental ganharam maior importância na Europa, e descobriu-se mais interesse por esse nicho. Neste ano, a Feira de Frankfurt vai ser dedicada à China, e isso desperta, naturalmente, muito interesse.
Mas já temos traduções de Adriana Lisboa na França, na Itália e em outros países, com críticas muito boas. No início do ano que vem, ela vai ser publicada nos Estados Unidos, que, ao lado da Inglaterra, é tido como o país mais difícil de entrar. Eles não traduzem quase nada.
A Ray-Güde Mertin deu uma entrevista para a Deutsche Welle em 2006, na qual falou sobre o grande desafio que é levar autores de língua portuguesa ou espanhola para a Alemanha e para outros países. Alguma coisa mudou desde então?
Tudo continua exatamente igual, permanece igualmente difícil. Às vezes me perguntam se somos muito afetados pela crise e digo que sim, sentimos a crise, algumas coisas ficaram mais difíceis. Mas, com autores em português e espanhol, somos "exóticos" no mercado literário internacional.
O mais comum é ver agentes trabalharem com literatura em inglês e no pacote terem um italiano, ou um francês. Para nós sempre foi mais difícil alcançar resultados. Já conhecemos essa situação, a agência já está em seu 27° ano, e com paixão e paciência seguimos adiante. Temos relações amadurecidas com as editoras, conhecemos os perfis de cada uma e sabemos quem é mais receptivo em relação a essa literatura.
Naturalmente, em muitas editoras grandes, quem toma a última decisão não estudou literatura, mas sim administração. Essas pessoas não querem correr riscos. Isso dificulta nossa situação. Muitas vezes acontece de falarmos com editores e eles dizerem que adorariam publicar o livro, mas que não conseguem sinal verde.
Isso é muito frustrante, ainda mais quando estamos muito dedicados a um título. Às vezes leva muito tempo até as coisas começarem a andar. Na Argentina, por exemplo, passamos muito tempo investindo numa autora que agora vai ser publicada nos Estados Unidos. Mas isso só acontece com muita paciência – se tivéssemos desistido depois de meio ano, teríamos perdido muitas chances. O importante é continuar e ter um fôlego longo.
O Brasil está mais forte economicamente e tem ganhado mais importância no contexto global. Isso gera mais atenção para a produção cultural brasileira?
Infelizmente não. O país esteve no centro das atenções na época da Copa do Mundo da Alemanha, em 2006, que foi quando teve aquele boom do Brasil, o que tinha a ver com os bons jogadores de futebol brasileiros, muito admirados na Alemanha. Os alemães gostam muito do Brasil, gostam do futebol, da música, de sair para tomar uma caipirinha. Mas infelizmente a literatura não lucra muito com isso.
Os clichês continuam falando mais alto?
Sim. Em 2008, houve uma mesa redonda em Berlim com representantes do mercado literário do Brasil e da Alemanha e todos lamentamos juntos que tão pouco seja traduzido, que haja tão pouca atenção para as obras.
Não estamos num boom, e há sempre a concorrência. Por exemplo, ano que vem, o país convidado da Feira de Frankfurt é a Argentina. Isso para nós é ótimo, porque representamos muitos autores argentinos, e porque o governo argentino tem uma política de fomentar traduções.
Isso é algo de que sentimos muita falta: não há um incentivo a traduções bem organizado no Brasil, o que ajudaria a literatura brasileira no exterior. Às vezes a Biblioteca Nacional apoia projetos específicos, mas são sempre procedimentos complicados, só poucos casos são contemplados e é muito difícil conseguir.
Já o México, assim como Portugal, têm institutos que concedem esse financiamento. Os detalhes são definidos caso a caso, mas nós já sabemos que podemos chegar para a editora e afirmar, ‘querida editora, se isso te interessa, há 98% de chance que você vá receber apoio na tradução'. Infelizmente não podemos afirmar isso em relação à literatura brasileira, é uma pena.
Você representa autores de de língua portuguesa do Brasil, Portugal, Angola, Moçambique... Como é o intercâmbio literário entre os países lusófonos?
O que acontece, e isso é simplesmente fato, é que os mercados são separados: de um lado, o brasileiro, de outro, o português e o africano. Negociamos os direitos separadamente, apesar de a língua ser a mesma e não precisar traduzir. Por exemplo, um autor português publica sua obra em Portugal e nós temos o direito de negociação para encontrar uma outra editora no Brasil.
Isso não é um fenômeno exclusivo da língua portuguesa, o mesmo acontece com o espanhol. Nesse caso, o mercado se divide até em três partes: há a Europa/ Espanha; a Argentina/ cone sul; e o México. Quando um escritor faz muito sucesso na Argentina, isso está muito longe de querer dizer que os espanhóis o conhecem, ou os mexicanos.
A Ray-Güde Mertin era considerada uma espécie de embaixadora da literatura de língua portuguesa no exterior. Quando ela morreu, os escritores que ela representava se sentiram um pouco órfãos. Como é passar por isso dentro da agência e herdar tamanha responsabilidade?
A Ray já tinha planos de passar a agência adiante, e eu, que antes trabalhava com os escritores de língua espanhola, já tinha começado a aprender português. Iríamos viajar juntas para o Brasil e Portugal, quando ela inesperadamente morreu.
Além da dor que sentimos pela perda, tivemos que imediatamente transmitir a notícia para todos e sinalizar que iríamos seguir adiante, e continuar sendo responsáveis pelos autores. Eles também sentiram muito, mas depois da tristeza a segunda reação é perguntar o que vai acontecer com a minha obra, quem vai me representar.
Eu tinha trabalhado oito anos com a Ray de forma muito próxima. Com ela aprendi tudo sobre a agência. E tínhamos uma sintonia muito boa nas formas de ver o trabalho, na ética ao lidar com os autores. Até hoje sou muito grata pela solidariedade que nos foi demonstrada depois que ela morreu, quando os autores falaram que continuariam conosco.
Isso foi um crédito de confiança muito grande, e a nossa resposta foi continuar fazendo um bom trabalho. Sei que alguns escritores receberam propostas muito concretas de outros agentes e ficamos muito felizes que quase nenhum tenha nos deixado. Temos muito orgulho da nossa lista.
Autora: Júlia Dias Carneiro
Revisão: Soraia Vilela