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"Decameron" em Berlim: amor em tempos de quarentena

Dmitry Vachedin | Augusto Valente
14 de março de 2020

O clássico literário italiano do século 14, sobre um grupo que se isola para fugir da peste, chega aos palcos alemães em versão do russo Kirill Serebrennikov, num momento em que o mundo se confronta com uma pandemia.

Cena da peça "Decameron", do Deutsches Theater de Berlim
O amor é um jogo estranho na montagem de SerebrennikovFoto: Ira Polyarnaya

Um grupo de mulheres e homens deixa sua cidade, acometida por uma epidemia, se instala numa vila e distrai-se mutuamente contando histórias de amor: essa é a descrição sumária da trama do Decameron de Giovanni Boccaccio (1313-1375).

Na versão encenada pelo russo Kirill Serebrennikov, no Deutsches Theater de Berlim, contudo, essa obra-prima literária do século 14 lembra antes uma série de TV contemporânea. Mais ainda: evoca um possível cenário futuro, diante do noticiário atual sobre o novo coronavírus.

Enquanto, na vida real, papel higiênico e álcool em gel desaparecem das prateleiras dos supermercados, numerosos voos são cortados, jogos de futebol e concertos, cancelados, no palco berlinense encenam-se histórias de amor em tempos de quarentena.

Kirill Serebrennikov, celebrado na Rússia, retorna aos palcos internacionais após um ano de prisão domiciliarFoto: picture-alliance/dpa/V. Sharifulin

O celebrado Serebrennikov – liberado em abril de 2019, após um ano de prisão domiciliar sob acusação de fraude com subsídios estatais, mas ainda proibido de deixar a Rússia – combina atores alemães e russos nesta versão teatral do Decameron, ensaiada entre Moscou e – por Skype – Berlim.

Como se não bastasse, o diretor procurou, através de um anúncio de jornal, cinco alemãs idosas, sem experiência teatral, que passam horas sem fazer nada no palco, para ao fim da peça recitar grandiosos monólogos. A longamente esperada e por diversas vezes adiada estreia na capital alemã foi em 8 de março de 2020, e a produção segue para o Gogol Center de Moscou em 24 de junho.

Inútil luta contra os instintos

Dos 100 contos narrados por Boccaccio, Serebrennikov escolheu dez, e precisa de quase quatro horas para contá-las nos idiomas russo e alemão. Seu tratamento do original literário é extremamente livre: a maior parte das histórias é transposta para o presente, algumas são narradas sem qualquer referência de tempo ou espaço.

Entre as narrativas selecionadas, está a do garoto de estábulo que se apaixona por uma rainha e passa a noite com ela personificando seu marido, o rei. Ou a do pai ciumento que manda matar o amante da filha de forma cruel: são histórias de amor e paixão não correspondidos, que devoram por dentro os protagonistas.

Filipp Avdeev e Aleksandra Revenko integram o elenco teuto-russoFoto: Ira Polyarnaya

"Devorar por dentro" não é exagero poético, mas uma citação de um dos clímaces da peça, o poderoso monólogo de Georgette Dee, uma das estrelas da produção, do ponto de vista de uma esposa infiel. Depois de cada adultério, o marido tem um sonho: um lobo ataca sua mulher e lhe arranca o rosto. Passam-se os anos, a mulher envelhece, o lobo também: uma situação sem saída, e a constatação de que é impossível domar os instintos.

A escolha de um enorme ginásio esportivo como palco para a ação cênica só surpreende à primeira vista. Serebrennikov usa o esporte como metáfora para a cansativa luta de cada um consigo mesmo, com os próprios instintos e sentimentos. Segundo o homem de teatro, amor nunca é recíproco, há uma falha nessa construção: só com um truque sujo se consegue despertar amor em outro ser humano.

O principal elemento visual em sua montagem são gigantescas bolas de ginástica, símbolo da solidão dos protagonistas. Os atores e atrizes as deslocam constantemente diante de si, de um canto para outro, como escaravelhos empurrando bolas de excrementos. Assim, prossegue Serebrennikov, cada um de nós empurra, pela vida afora, um monte de dor, medo e experiências negativas: ninguém pode assumir essa carga por nós.

Quem quiser saber algo sobre as felicidades do amor, portanto, nem precisa comprar ingresso para o Decameron berlinense.

Problemas de comunicação

Diante de toda a problemática da solidão, não é de espantar que o maior problema da montagem seja a comunicação entre diretor e executantes: os atores russos e os alemães não formam uma trupe coesa.

Ginásio esportivo ilustra a exaustiva luta consigo mesmoFoto: Ira Polyarnaya

Em seu teatro em Moscou, Serebrennikov está acostumado a contar com uma maioria de atores e atrizes jovens, esportivos e belos, o que faz muitas de suas encenações parecerem shows de moda. Então nem sempre sabe o que fazer com os representantes mais idosos da escola de teatro alemã.

Assim, enquanto alguém como Jeremy Mockridge, de 26 anos, se encaixa harmoniosamente no "sistema Serebrennikov", a adaptação é visivelmente mais difícil para uma Regine Zimmermann, prima-dona do Deutsches Theater, de 49 anos. Embora, no programa, o próprio diretor fale de uma "linguagem universal do teatro" e de seus esforços para "construir pontes", o resultado não convence inteiramente.

Enfim, desta vez Kirill Serebrennikov não criou uma obra-prima. Ainda assim, seu Decameron é um testemunho respeitável do talento de um diretor teatral que assim celebra o retorno aos palcos internacionais. Acima de tudo, ele provou ser capaz de abandonar sua zona de conforto e se envolver com uma trupe teatral desconhecida – não sem problemas, mas pelo menos de forma relativamente aberta.

O Decameron de Berlim provavelmente não entrará para a história do teatro, mas é a encenação de uma obra interessante e infinitamente triste de um grande mestre. No entanto, após duas apresentações, todas as demais datas foram suspensas, até segunda ordem. Também na capital alemã, a vida cultural foi drasticamente restringida, por medo do alastramento do coronavírus.

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