Se resolver falar, ex-deputado pode atingir pessoas ligadas ao presidente da República e o próprio Michel Temer. "Cunha é a delação das delações, ele pode derrubar o governo", afirma deputado oposicionista.
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A Operação Lava Jato, que há meses vinha se aproximando da cúpula do PMDB e provocando arranhões no governo, colocou nesta quarta-feira (19/10) um membro do alto escalão do partido na prisão: o ex-deputado e ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Pouco depois da detenção, a pergunta que mais se ouvia no meio político era: Cunha vai seguir o exemplo de outros presos e delatar para aliviar a pena?
O ex-deputado foi o articulador original do processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff e usou sua influência para convencer os colegas a votar contra a petista. Agora, sua capacidade de "influência" está em contar o que sabe. Motivos para isso ele tem.
"O Ministério Público já parece ter reunido elementos suficientes para garantir uma primeira condenação. A única possibilidade que ele tem de abrandar a pena é falar", afirma o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio. "Isso é mais um sinal que a instabilidade não deve dar trégua para Michel Temer. Existe uma inquietação em Brasília."
A prisão ocorreu num momento delicado para o governo do presidente Michel Temer, que se esforça para aprovar seu pacote de reformas. Oposicionistas declararam rapidamente que enxergam Cunha como uma potencial bomba a ser lançada contra Temer. "Cunha é a delação das delações, ele sem dúvida pode derrubar o governo Temer", disse o deputado oposicionista Ivan Valente (PSol-SP). "Ele sabe tudo sobre o PMDB."
"O Michel é Eduardo Cunha"
Antes mesmo da prisão, Cunha já vinha emitindo sinais sobre seu potencial para enfraquecer o governo. Dias após a sua cassação, fez insinuações contra o secretário do Programa de Parcerias e Investimentos, Moreira Franco, um dos homens fortes de Temer e considerado o cérebro do seu programa de reformas.
O ex-deputado disse que Moreira estava envolvido em irregularidades no Fundo de Investimento do FGTS, que financia obras de infraestrutura no país. "Na hora em que as investigações avançarem, vai ficar muito difícil a permanência do Moreira", disse Cunha, que cultiva uma mágoa por Franco, a quem responsabiliza em parte pela sua cassação.
Mas Cunha parece não ter munição só contra pessoas do círculo do presidente. Ao longo de uma década, ele assumiu o papel de arrecadador informal de doações para o PMDB, ajudando também a angariar verbas para a campanha de Temer à vice-Presidência da República em 2014. Já Temer, na sua condição de presidente do PMDB desde 2001, também dividiu responsabilidades com a tesouraria do partido, dando seu aval para as doações.
Caso uma eventual delação de Cunha revele que elas tiveram origem ilícita, Temer pode ser diretamente envolvido. O vice ainda enfrenta uma ação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que investiga irregularidades nas contas da sua chapa com Dilma em 2014. Aliados de Temer tentam separar as contas de Dilma e do presidente, com o objetivo de poupar o peemedebista. O plano pode ir por água abaixo se forem lançadas novas suspeitas.
Temer mantém oficialmente distância em relação ao ex-deputado, mas cultivava uma relação amistosa antes do início da crise política. Em uma gravação, o ex-ministro Romero Jucá, um aliado de Temer, explicitou a proximidade. "O Michel é Eduardo Cunha", disse. Além do presidente, Cunha é próximo de dezenas de deputados, a quem ajudava a arrecadar doações. Se resolver denunciar seu ex-colegas, pode renovar mais uma vez a instabilidade da base governista, que assolou o governo Dilma.
Cunha nega delação, mas costuma mudar de ideia
Logo após a prisão, o advogado de Cunha afirmou que a "delação não está no nosso radar”. O próprio Cunha afirmou repetidamente que não pretende seguir esse caminho. "Só faz delação quem é criminoso. Eu não sou criminoso", disse em setembro. Só que o histórico demonstra que ele costuma mudar de ideia quando confrontado. Em abril de 2015, afirmou que era contra o impeachment. Meses depois, quando deputados petistas resolveram apoiar sua cassação, resolveu aceitar o pedido. Em junho deste ano, negou diversas vezes que renunciaria à Presidência da Câmara. Duas semanas depois, renunciou.
Antes de Cunha, outros políticos presos optaram pela delação. O mais conhecido é o ex-senador Delcídio do Amaral (ex-PT, hoje sem partido). Preso em novembro de 2015, seu acordo foi homologado menos de quatro meses depois. A divulgação deu impulso para o avanço do processo de impeachment de Dilma.
Não há previsão de que uma eventual delação de Cunha caminhe tão rapidamente. Nos bastidores, procuradores da Lava Jato consideram que, por causa de seu papel de liderança em esquemas de corrupção, Cunha terá entregar um grande volume de informações novas e provas consistentes – e também não deve escapar de cumprir pena.
A Lava Jato já travou outras negociações duras com atores tão centrais como o ex-deputado. A delação dos executivos da Odebrecht, por exemplo, arrasta-se desde o ano passado. Para Cristiano Maronna, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, os procuradores contam com um fator a mais para pressionar Cunha. "A mulher e filha também estão sofrendo problemas com a Justiça. Isso pode ser um incentivo para que ele fale", afirmou.
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
Foto: imago/Fotoarena
As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
Foto: Reuters/P. Whitaker
Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana
As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/H. Alves
As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.