Para cientista político Paulo Henrique Cassimiro, julgamento da trama golpista é "exemplar", mas não garante que o país estará livre de novos arroubos antidemocráticos no futuro
Bolsonaristas em Brasília em 8 de janeiro de 2023, durante ato que culminou na depredação das sedes dos Três PoderesFoto: Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance
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O julgamento que selou a condenação de Jair Bolsonaro e de aliados, inclusive militares, pela tentativa de golpe do Estado após as eleições de 2022 é "histórico" e projeta o Brasil como um exemplo de defesa à democracia para o resto do mundo.
No entanto, a consolidação do processo jurídico contra a cúpula golpista não quer dizer que o país estará, no futuro próximo, livre de sofrer novos ataques às suas instituições.
Segundo o cientista político Paulo Henrique Cassimiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e um dos autores do livro O Populismo Reacionário (2022), a condenação abala o bolsonarismo, mas não o tira do jogo político.
"Para a extrema direita golpista, foi uma derrota substantiva", diz Cassimiro, em entrevista à DW.
"Mas isso não significa que esse grupo não possa se organizar para as próximas eleições em torno de uma liderança que vai ser menos vocal, do ponto de vista do seu radicalismo, mas ainda assim vai ser tão radical quanto o Bolsonaro, na prática – o que torna essa liderança ainda mais perigosa”, complementa o pesquisador.
Vitrine para o mundo
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou Bolsonaro e ex-membros do seu governo – os militares Paulo Sérgio Nogueira, Augusto Heleno, Braga Netto, Almir Garnier, Mauro Cid; e os ex-ministros civis Anderson Torres e Alexandre Ramagem – de utilizar métodos golpistas para tentar impedir Lula de assumir a Presidência após vencer as eleições de 2022.
"É um julgamento histórico. Não é só a primeira vez que um presidente da República no Brasil é julgado por tentativa de golpe de Estado, como é também a primeira vez que militares envolvidos em tentativa de golpe estão no banco dos réus", afirma o pesquisador da UERJ.
Além disso, o país, diz Cassimiro, dá um exemplo internacional num momento em que o mundo assiste a Donald Trump avançar o projeto de extrema direita no seu segundo mandato à frente dos Estados Unidos. O republicano não foi punido pela invasão do Capitólio por seus apoiadores, em 2021.
"O Brasil é um caso que está sendo visto internacionalmente como exemplar, de tentativa de manutenção das instituições democráticas diante do assédio de lideranças autoritárias", diz Cassimiro, citando também países como Hungria e Polônia, que estão há anos tendo que lidar com governos antidemocráticos.
O problema, no entanto, é que a própria sobrevivência política de Trump e da extrema direita internacional pode reverter o processo brasileiro de impedir novos golpes.
"Isso pode beneficiar eventualmente um novo presidente autoritário [no Brasil] que tenha ambição de suprimir as instituições, de usá-las para impedir a competição política, por dentro, e que tenha apoio político, que é o que faltou ao Bolsonaro. O Bolsonaro não conseguiu um consenso entre as elites políticas. Mas isso pode acontecer no futuro", acrescenta Cassimiro.
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Bolsonaro e anistia
Antes da condenação pelo STF, Bolsonaro já tinha sido considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e colocado em prisão domiciliar pelo ministro Alexandre de Moraes, que preside o inquérito das fake news no Supremo.
De acordo com Paulo Henrique Cassimiro, o ex-presidente está enfraquecido, mas não impedido de influenciar os rumos da extrema direita brasileira.
"O Bolsonaro tem capital eleitoral, mobiliza voto. Então ele vai estar no poder de alguma forma. Claro que não com a mesma capacidade de influência, mas ele pode, por exemplo, forçar a indicação de um vice na chapa do Tarcísio [de Freitas]", diz o cientista político, que vê o atual governador de São Paulo como o principal substituto de Bolsonaro na briga pela Presidência em 2026.
Há ainda a possibilidade de o Congresso votar uma anistia aos condenados pela tentativa de golpe e, dessa forma, reverter o processo jurídico de forma política, lembra.
"O apoio do Bolsonaro a um candidato de extrema direita com uma coalizão de partidos do centrão, que é algo que está se desenhando para 2026, vai ter esse custo. Qualquer candidato que sair com apoio do Bolsonaro, vai precisar assumir esse compromisso da anistia", afirma.
Caso isso aconteça, continua o pesquisador da UERJ, poderá haver um acirramento ainda maior dos conflitos entre Legislativo e Judiciário, principalmente se o STF considerar um indulto aos crimes do 8 de janeiro como inconstitucional.
"Aumentaria muito a tensão entre Congresso e Supremo e a chance de os partidos do Centrão, que eventualmente votarão pela anistia caso ela seja aprovada – porque não dá para aprovar nenhum grande projeto no Congresso brasileiro sem o Centrão – se reunirem em torno de uma candidatura única e com um discurso antagonizando com o Supremo", observa. "Isso pode levar a um risco ainda maior da nossa democracia."
Já para Lula (PT), tendo em vista o embate do ano que vem nas urnas, a estratégia é tentar melhorar a imagem do governo e seguir com o atual presidente como candidato, já que o petista tem liderado as pesquisas.
"A direita tem chance de ganhar eleição, mas o Lula, pelos números, ainda é favorito, o que não significa que a eleição não será competitiva", pontua.
Militares
Segundo Cassimiro, diferentemente de 1964, quando os militares derrubaram o presidente João Goulart para instaurar uma ditadura, a tentativa de golpe do núcleo bolsonarista não teve o apoio institucional das Forças Armadas.
"Bolsonaro e os outros golpistas só puderam ser condenados, entre outras coisas, porque há testemunhos dos próprios comandantes das Forças Armadas que disseram que realmente houve um pedido do presidente da República que eles interviessem", diz ele.
"Mas eles não assumiram esse custo. Então não dá pra dizer que o período entre o final de 2022 e 2023 foi uma articulação de golpe que envolveu os militares na sua integridade ou pelo menos a cúpula deles", complementa o cientista político.
Ele sublinha, no entanto, que esse movimento não elimina a cultura institucional antidemocrática existente nas Forças Armadas, a qual alimenta a ideia de que cabe aos militares arbitrar "conflitos políticos".
Para Cassimiro, o país perdeu a oportunidade, nos governos Fernando Henrique (PSDB) e nos dois primeiros mandatos de Lula (PT), de aumentar o controle civil sobre os militares.
Isso inclui a Polícia Militar (PM) que, segundo o pesquisador, é uma "caixa-preta da violência política brasileira".
"O problema é que para enfrentá-las, é preciso um consenso político muito grande para promover mudanças constitucionais na legislação. Isso não vai ser construído no horizonte brasileiro dos próximos anos", diz Cassimiro.
"[FHC e Lula] talvez tivessem tido essa oportunidade por terem construído um governo popular e com grande consenso no Congresso. E eles não enfrentaram não porque não as julgassem importantes, mas porque as julgavam resolvidas. Foi um erro estratégico dos dois. Elas não estão resolvidas. Estão vivas e candentes e continuarão ameaçando a democracia brasileira", prevê.
Ex-presidentes latino-americanos que já foram presos
A prisão domiciliar de Bolsonaro não é um caso isolado na América Latina. Mais de uma dúzia de líderes de outros países da região, como Argentina, Honduras, Peru e Panamá também enfrentaram problemas com a Justiça.
Foto: Alan Santos/Brazilian Presidency/REUTERS
Jair Bolsonaro (Brasil)
Acusado de liderar uma trama golpista após a eleição de 2022 e réu em diferentes ações na Justiça, o ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) teve decretada prisão domiciliar em agosto de 2025 após ser acusado de violar medidas cautelares impostas pelo Supremo, como a proibição de usar redes sociais.
Foto: Evaristo Sa/AFP
Michel Temer (Brasil)
Presidente entre maio de 2016 até o fim de 2018, Michel Temer foi preso em março de 2019, poucos meses depois de deixar o cargo, no âmbito de um desdobramento da Lava Jato. Foi solto quatro dias depois, mas voltou a ser preso por mais seis dias em maio de 2019. O caso foi posteriormente anulado pela Justiça.
Foto: Imago Images/Agencia EFE/F. Bizerra Jr
Fernando Collor (Brasil)
Presidente entre 1990 e 1992, Collor foi condenado por corrupção pelo Supremo em maio de 2023, em um processo que teve origem na Operação Lava Jato. Em abril de 2025, foi levado a um presídio em Maceió, no estado de Alagoas, para cumprir pena de 8 anos e 10 meses de prisão. Seis dias depois, passou a cumprir pena em casa.
Foto: EVARISTO SA/AFP
Lula (Brasil)
Lula, que governou o Brasil entre 2003 e 2010, passou 580 dias na prisão entre abril de 2018 e novembro de 2019, após ser condenado por corrupção. Em março de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou as duas sentenças por irregularidades processuais cometidas pelo Ministério Público e pelo juiz do caso. Assim, conseguiu disputar a eleição de 2022, na qual derrotou Jair Bolsonaro.
Foto: Reuters/R. Buhrer
Cristina Kirchner (Argentina)
Ex-presidente da Argentina (2007-2015) e ex-vice (2019-2023), Cristina Kirchner teve em junho de 2025 uma pena de seis anos de prisão por corrupção confirmada pela Suprema Corte. No mesmo mês, começou a cumprir prisão domiciliar - a a lei argentina que prevê essa possibilidade para pessoas com mais de 70 anos.
O presidente argentino Carlos Menem (1989-1999) enfrentou diversos processos. Em seu primeiro julgamento, em 2008, foi acusado de tráfico de armas para o Equador e a Croácia entre 1991 e 1995. Passou seis meses em prisão domiciliar preventiva em 2001, e foi solto depois que a Justiça anulou as acusações. A partir de 2005, teve imunidade como senador, cargo que ocupou até sua morte em 2021
Foto: Ricardo Ceppi/Getty Images
Jeanine Áñez (Bolívia)
Jeanine Áñez assumiu a presidência interina da Bolívia em 12 de novembro de 2019 como segunda vice-presidente do Senado, dois dias após a renúncia de Evo Morales. Ela foi detida em 13 de março de 2021, e numa decisão polêmica, um tribunal a condenou a 10 anos de prisão pelos crimes de violação de deveres e resoluções contrárias à Constituição. Em agosto de 2025, ele continuava presa
Foto: Juan Karita/AP Photo/picture alliance
Ricardo Martinelli (Panamá)
Ricardo Martinelli, que governou o Panamá de 2009 a 2014, foi preso em junho de 2017 na Flórida. No ano seguinte, foi extraditado para ser julgado em seu país num caso sobre escutas ilegais, do qual foi posteriormente absolvido. Em 2019, foi solto. Em 2024, no entanto, voltou a ser condenado em outro caso e no mesmo ano se abrigou numa embaixada. Em agosto de 2025, vivia como asilado na Colômbia.
Foto: picture-alliance/AP Images/A. Franco
Juan Orlando Hernández (Honduras)
O ex-presidente hondurenho Juan Orlando Hernández (2014-2022) foi extraditado para os Estados Unidos em abril de 2022, onde foi acusado de conspiração para importar cocaína, posse de metralhadoras e armas pesadas e conspiração para possuir tais armas. Em 2024, foi condenado a 45 anos de prisão. Em agosto de 2025, ele seguia detido em uma penitenciária dos EUA
Foto: Andy Buchanan/AFP
Antonio Saca (El Salvador)
Presidente de El Salvador entre 200e e 2009, Antonio "Tony" Saca foi condenado a 10 anos de prisão em 2018 após se declarar culpado por desviar mais de US$ 300 milhões em fundos públicos durante seu mandato. Em agosto de 2025, ele estava cumprindo pena na prisão La Esperanza, em El Salvador.
Foto: Rodrigo Sura/Agencia EFE/IMAGO
Otto Pérez Molina (Guatemala)
General aposentado que governou a Guatemala de 2012 a 2015, Otto Pérez Molina foi preso um dia depois de renunciar ao cargo. Ele foi condenado a 16 anos de prisão por liderar uma rede milionária de fraudes alfandegárias. Ele deixou a prisão em 2024 após pagar fiança.
Foto: Luis Vargas/AA/picture alliance
Álvaro Uribe (Colômbia)
Acusado de fraude processual e suborno, o ex-líder colombiano Álvaro Uribe (2002-2010) ficou 67 dias na prisão em 2020 "devido a possíveis riscos de obstrução da Justiça". Em julho de 2025, foi condenado a 12 anos de detenção, a serem cumpridos em prisão domiciliar.
Foto: Long Visual Press/LongVisual/ZUMA Press/picture alliance
Alberto Fujimori (Peru)
Alberto Fuijimori, que governou o Peru entre 1990 e 2000, deu um autogolpe em 1992. Seu governo foi marcado por vários casos de corrupção. Em 2005, foi preso no Chile e depois extraditadi. Posteriormente, foi condenado a 25 anos de prisão por homicídio qualificado, usurpação de funções, corrupção e espionagem, além de desvio de fundos. Em 2023, foi solto. Fujimori morreu no ano seguinte.
Foto: Martin Mejia/AP/picture alliance
Pedro Castillo (Peru)
Pedro Castillo, destituído da presidência do Peru após ter ordenado a dissolução do Parlamento em dezembro de 2022, foi detido e levado ao presídio de Barbadillo. Às acusações de corrupção que já enfrentava, o Ministério Público acrescentou a do alegado crime de rebelião "por violação da ordem constitucional". Em agosto de 2025, o ex-presidente seguia detido.
Foto: Renato Pajuelo/AP/picture alliance
Pedro Pablo Kuczynski (Peru)
Presidente do Peru de 2016 até sua renúncia em 2018 na esteira de um processo de impeachment, Pedro Pablo Kuczynski foi alvo de prisão preventiva em 2019 no âmbito do escândalo Odebrecht. Alegando problemas de saúde, passou a cumprir a medida em casa. Em agosto de 2025, ainda cumpria várias medidas cautelares, como proibição de deixar o país.
Foto: picture-alliance/AP Photo/M. Mejia
Ollanta Humala (Peru)
Ollanta Humala (2011-2016) completou seu mandato presidencial no Peru, mas, um ano depois, foi colocado em prisão preventiva. Ele e a esposa foram investigados pelo suposto recebimento ilegal de dinheiro da Odebrecht. Em abril de 2018, o Tribunal Constitucional do Peru revogou a prisão. Em 2021, se candidatou novamente à Presidência, mas recebeu apenas 1,5% dos votos. Em 2025, voltou a ser preso.
Foto: El Comercio/GDA/ZUMA Press/picture alliance
Alejandro Toledo (Peru)
Presidente do Peru entre 2001 e 2006, Alejandro Toledo foi condenado em outubro de 2024 a 20 anos e seis meses de prisão por corrupção. Detido nos EUA em 2023 e extraditado no mesmo ano, ele cumpria pena no Peru em agosto de 2025.
Foto: Guadalupe Pardo/AP/picture alliance
Martín Vizcarra (Peru)
Martín Vizcarra foi o sexto ex-presidente do Peru a se somar à lista de presos. Ele governou o Peru entre 2018 até 2020, quando foi afastado em meio a um processo de impeachment. Sua prisão preventiva em agosto de 2025 envolveu suspeita de risco de fuga em meio a um processo de crime de suborno.