Em entrevista à DW, vice disse que torturador era um "homem de honra". Em representação ao MPF, deputado Ivan Valente afirma que Mourão "violou seus deveres constitucionais" e praticou "ato lesivo às vítimas" de Ustra.
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O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) apresentou nesta quinta-feira (15/10) uma representação contra Hamilton Mourão por causa dos comentários enaltecedores que o vice-presidente fez em relação ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais notórios torturadores da ditadura militar (1964-1985).
No documento, encaminhando ao Ministério Público Federal de São Paulo, Valente aponta que Mourão praticou "conduta absolutamente inadmissível para um Estado Democrático de Direito" ao afirmar que Ustra era "homem de honra e que respeitava os direitos humanos de seus subordinados".
A declaração foi dada pelo vice-presidente na semana passada, em entrevista ao programa Conflict Zone, da Deutsche Welle (DW). Na avaliação de Valente, Mourão também praticou um "ato ilegal e lesivo às centenas de vítimas e familiares de vítimas" do coronel Ustra.
Em 2008, Ustra se tornou o primeiro oficial do regime a ser condenado por sequestro e tortura. Um levantamento do Projeto Nunca Mais aponta que ele foi responsável por pelo menos 500 casos de tortura quando comandou o Doi-Codi, entre 1970 e 1974, inclusive participando pessoalmente de sessões de tortura.
Já a Comissão Nacional da Verdade relacionou o coronel com pelo menos 45 assassinatos. Ustra morreu em 2015, aos 83 anos, sem nunca ter cumprido um dia na prisão.
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"Heróis matam"
Na entrevista à DW, Mourão afirmou que não está "alinhado com a tortura" e sugeriu que há uma interpretação distorcida do período militar e sobre o papel de Ustra e que seria melhor "esperar que todos esses atores desapareçam para que a história faça sua parte".
"Ustra respeitava os direitos humanos"
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"Ustra (…) foi meu comandante no final dos anos 70 do século passado, e era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados. Então, muitas das coisas que as pessoas falam dele, eu posso te contar, porque eu tinha uma amizade muito próxima com esse homem, isso não é verdade", disse Mourão.
As falas do vice provocaram uma onda de repúdio entre políticos da oposição, ONGs e personalidades públicas.
Não foi a primeira vez que o atual vice-presidente elogiou Ustra. Em 2015, quando ainda era general da ativa, Mourão autorizou que suas tropas homenageassem o coronel. Em 2018, disse que Ustra era um "homem de coragem" e que "heróis matam".
Em 2019, já no cargo de vice-presidente, disse que Ustra foi "um dos maiores líderes que o Exército já teve", durante visita a um quartel no Rio Grande do Sul. Ustra também costuma ser elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro.
"Integrantes do governo tentam distorcer a história"
No documento entregue ao Grupo de Trabalho Justiça de Transição, que reúne procuradores que lidam com casos de abusos cometidos na ditadura, Valente lista a longa trajetória de crimes cometido por Ustra, citando relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
"A Comissão Nacional da Verdade desnudou o sadismo e crueldade do coronel, que hoje membros do alto escalão do governo federal tentam transformar em comportamento honrado e exemplar", diz.
"Infelizmente, o tempo decorrido desde o término da ditadura militar vem animando integrantes do Governo Federal saudosistas da ditadura militar a usarem de seus cargos para tentar distorcer a história, de maneira a esconder a violência, o autoritarismo, o sadismo e os crimes daqueles que estiveram à frente do regime militar", aponta o deputado.
"Não cabe ao agente público negar ou distorcer os fatos apurados pela Comissão da Verdade sobre o que ocorreu durante a ditadura militar, sob pena de infringir a Constituição, a Legislação e as obrigações assumidas pelo país perante as Cortes Internacionais de Direitos Humanos de adotar medidas para que nunca mais se repitam situações como aquelas em que criminosos como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra agiram em nome do Estado para disseminar a dor, o sofrimento e o terror sobre a população impunemente."
Entre esses compromissos, Valente lista que o Estado Brasileiro assumiu oficialmente sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos forçados ocorridos durante o período do regime militar e que reconheceu perante a Comissão Interamericana em 2010 "o sofrimento imposto às famílias das pessoas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia".
Valente, que durante a ditadura viveu na clandestinidade por causa da sua atuação num grupo de esquerda, aponta ainda que Mourão, "ao enaltecer a honra e a carreira de seu antigo comandante, também violou seus deveres constitucionais e causou novo sofrimento às vítimas e familiares das vítimas do criminoso Ustra".
Segundo o deputado, Mourão ainda violou a Lei nº 12.528, de 2011, que estabeleceu a criação da CNV e que reconhece "graves violações de direitos humanos" cometidas durante a ditadura e a "própria Constituição que reconheceu os horrores perpetrados naquele período".
"Ante o exposto, requer-se o recebimento desta representação e a propositura de ação coletiva em face do vice-Presidente da República Antônio Hamilton Martins Mourão para que repare o dano causado às vítimas e familiares de vítimas do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra pelo fato de enaltecer a honra, a carreira e o respeito aos direitos humanos do militar, mesmo diante das vastas comprovações e do relato oficial sobre sua extensa carreira criminosa", conclui a representação encaminhada por Valente.
JPS/ots
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.