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"Desenho é a minha religião"

Marina Estarque, de São Paulo1 de fevereiro de 2016

Diretor de "O menino e o mundo", animação indicada ao Oscar, Alê Abreu descreve sua relação com a arte e conta por que tantas pessoas se identificam com a criança de traços simples e olhos expressivos de seu filme.

O diretor Alê Abreu em seu estúdio: "O filme foi feito de um jeito completamente diferente, sem roteiro, sem diálogos"Foto: DW/M. Estarque

O diretor Alê Abreu decidiu expor seus "buracos espirituais" em O menino e o mundo, primeira animação latino-americana a concorrer ao Oscar. Citando o cineasta Andrei Tarkovsky, é assim que o animador explica por que tantas pessoas, de diferentes países, se identificam com o menino de traços simples e olhos expressivos de seu filme.

Com uma visão mística da arte, Abreu, de 44 anos, descreve em entrevista exclusiva à DW Brasil seu processo "quase psicanalítico" de criação, que envolve incorporar espíritos da infância e de ídolos como Joan Miró, Wassily Kandinsky e Paul Klee.

"Receber verdadeiramente o trabalho de outro artista é se apaixonar violentamente por eles. É achar que o cara está do seu lado, lhe guiando. É pegar o que ele lhe oferece com amor. Porque esses artistas deixaram mais do que apenas a sua obra, eles deixaram amor", conta.

Além de uma conexão com grandes mestres da arte, o desenho é para Abreu uma forma de se religar à mãe, de quem ficou órfão aos cinco anos de idade. "O desenho é uma linha que eu não soltei, que me leva de volta a um espaço que para mim é sagrado. Nesse sentido, o desenho é a minha religião."

Boneco do personagem principal do filme. Para o diretor, a saga do menino de traços simples simboliza um sonhoFoto: DW/M. Estarque

O menino e o mundo foi inspirado em músicas de protesto latino-americanas e trata de desemprego, guerra, desigualdade. Você o considera um filme politizado?

Eu não sinto que mando muito nos filmes, eu sinto que obedeço. Não sou um Deus soberano, estou mais para uma antena, porque os filmes refletem coisas que estão já acontecendo. Quando eu vejo, aquele monte de coisa que desenhei a esmo me conta uma narrativa. É um jogo meio psicanalítico. Você junta um desenho com o outro, a tese e a antítese, e daí sai a síntese. Com O menino e o mundo foi assim: só quando terminei é que entendi quantas coisas estavam presentes ali.

Falando desse processo de criação meio psicanalítico, você ficou órfão de mãe aos cinco anos. Acha que a tentativa do menino de reunir a família, como na infância, pode ter algo de autobiográfico?

Sempre tem. A gente só não sabe dizer em que nível. Quando o artista se lança em um trabalho, tem coisas que ele coloca ali sem se dar conta, mas que são profundas e sinceras. Você deixa algo se revelar através de você, deixa uma graça surgir. O Tarkovsky [cineasta, Andrei Tarkovsky] falava que, se o artista encontrar seus buracos espirituais quando fizer seu trabalho, então ele não precisa se preocupar com o público, porque as pessoas vão se identificar.

Você disse uma vez que a própria construção do filme era a sua mensagem: de que outro caminho é possível...

Quando eu falo de outro caminho é o fato de a gente não se render ao que o sistema nos impõe. O filme foi feito de um jeito completamente diferente, sem roteiro, sem diálogos. Isso prova que eu sou livre para ouvir o filme e não ceder às cobranças de padronização da indústria.

Você consideraria o filme triste?

Acho que sim... De maneira geral, o que eu tenho visto é que as pessoas choram com o filme, não sei se é de tristeza. Mas eu não gosto de dar a minha opinião. Cada um se relaciona de um jeito com o filme. Fazer O menino me deu a certeza de que há coisas que não se traduzem pela razão e não cabem em palavras, mas se manifestam através do nosso trabalho. O Matisse [Henri Matisse, pintor] dizia que o artista não explica o seu trabalho, porque a obra é maior do que ele. Então eu prefiro ficar na minha pequenez.

"O desenho é uma linha que eu não soltei, que me leva de volta a um espaço que para mim é sagrado"Foto: DW/M. Estarque

Você acha que O menino e o mundo tem uma mensagem de esperança no final?

Ah, eu acho... O filme é uma montanha-russa, é muito circular. Ele te põe para cima e para baixo. Mas acho que termina para cima, com a esperança utópica da criança, que nunca morre. No final do filme, o campo está reflorescendo, o pássaro colorido da fênix está renascendo.

E no caso do menino? Ele tinha outro caminho possível?

Acho que todos os personagens do filme carregam um sonho, e o menino simboliza isso. Mas, assim como ele, essas pessoas foram levadas como objetos por esse sistema, em que praticamente não somos donos das nossas vidas. Isso é muito triste, é o mais pesado.

Você disse que desenha desde pequeno e não se lembra quando começou. Qual a diferença entre desenhar agora e quando criança?

Eu faço um esforço tremendo para tentar lembrar como era, é um pensamento recorrente. Principalmente quando estou quase dormindo, ficam vindo essas coisas... inomináveis. E quando tento trazer para a razão, decodificar, elas se perdem. Tem algo ali, um espírito presente. Eu tento pegar, como se fosse um bichinho [gesticula no ar], e ele escapa! Então eu fico nesse exercício, de não tentar agarrar, só estar presente, recebendo esse olhar infantil. Claro, se for pensar do ponto de vista psicanalítico, tem uma ligação com a minha mãe, com as minhas perdas [uma das suas memórias infantis é da mãe lhe ensinando a misturar cores]. O desenho é uma linha que eu não soltei, que me leva de volta a um espaço que para mim é sagrado. Nesse sentido, o desenho é a minha religião.

Como foi a experiência de estagiar com o Mauricio de Sousa aos 11 anos de idade? Quanto tempo isso durou?

Durou pouco, uns quatro meses. Eu era metido, quer dizer, eu queria muito desenhar, então ia atrás das pessoas, metia a cara mesmo. Um dia eu fui em um jornal, nunca me esqueço disso... Tinha um ilustrador, que era diretor de arte. Eu marquei com ele para mostrar meus desenhos e cheguei pontualmente. Sabe quanto tempo eu esperei? Quatro horas. Se teve um momento em que eu pensei: 'Acho que vou desistir de ser desenhista', foi ali. Eu tinha 15 anos.

Ele te recebeu, afinal?

Sim, como se nada tivesse acontecido. Olhou meus quadrinhos em dez minutos. E eu ali, segurando as lágrimas. Não porque tinha esperado horas, mas porque eu achei que não ia dar pé... Aquela foi a minha primeira vitória, porque eu não desisti.

E com o Mauricio de Sousa?

Já com o Mauricio eu conheci alguém, que conhecia alguém, que conhecia a secretária dele. Um dia, eu consegui marcar com ela, mostrei meus desenhos, e o Mauricio me chamou para estagiar lá. Eu ia uma vez por semana. Mas aquilo foi muito chato, de novo aquela coisa da padronização. Eu não queria ser um desenhista do Mauricio, eu queria fazer as minhas próprias coisas.

E essa história de jurar que nunca usaria terno...

É coisa de criança... Eu sempre fui meio do contra, meio contestador. Meus pais tiveram um pouco de trabalho comigo com isso: 'Ah, tem que ir todo mundo?' 'Então não vou'. 'Ah, tem que usar gravata? Então não vou usar.' Fiquei com esse estigma de ser do contra, e resolvi levar isso adiante [risos]. Porque é divertido, né? Mas agora no Oscar eu vou vestir um smoking, pela primeira vez na vida!

E é verdade que você não usa celular? Por quê?

Porque todo mundo usa! [risos]. Um dia eu estava estressado com a produção de um filme e não aguentava mais, não dava para trabalhar com tanta gente ligando. Joguei o celular no lixo. É que eu não gosto de estar disponível. Porque parece que me deixa indisponível para o resto. O Manuel de Barros dizia que toda a obra dele foi construída enquanto ficava à disposição da poesia. Sabe o que é isso? Você acordar de manhã, sem celular, internet, sem nada na cabeça. Eu não vou conseguir ser como ele, mas eu tento.

Você se inspirou em Joan Miró, Wassily Kandinsky e Paul Klee. Como foi a descoberta desses artistas?

Receber verdadeiramente o trabalho de outro artista é se apaixonar violentamente por eles. É achar que o cara está do seu lado, lhe guiando. É um desafio porque você tem que superá-lo. Não no sentido de ser melhor, mas de pegar o que ele lhe oferece com amor... Porque esses artistas deixaram mais do que apenas a sua obra, eles deixaram amor. Você tem que receber essa graça, colocar no liquidificador interno, bater tudo, e fazer algo diferente.

Mesa de desenho de Alê Abreu. "Quando o artista se lança em um trabalho, tem coisas que ele coloca ali sem notar"Foto: DW/M. Estarque

Você se preocupa com o efeito da padronização da indústria na vida das pessoas. Em O menino e o mundo, um jovem trabalha em uma fábrica de tecidos, mas, no tempo livre, faz arte. Você acha que todo ser humano tem essa necessidade?

Acho que todos têm vontade de se encontrar. Quando eu vejo aquele jovem, que teve um dia difícil na fábrica, mas chega ao seu barraquinho e faz as coisas dele... Isso para mim simboliza a esperança, a resistência.

E como é essa dicotomia entre indústria e a arte na sua vida?

É terrível, terrível... Em O menino e o mundo, como tínhamos um baixo orçamento, eu tinha uma preocupação diária com gastos. É a coisa que mais me machuca. Se eu tivesse alguém para me bancar, ficaria no meu canto, só brincando e criando meus filmes. Mas é uma utopia. Eu preciso lidar com os dois lados e não deixar que um engula o outro.

O filme tem uma mistura de técnicas, de giz de cera, pastel, lápis de cor. De repente, aparecem colagens de publicidade e até vídeos de desmatamento. Por que essas mudanças?

Quando eu comecei o filme, imaginava a tela do cinema como uma folha branca, onde a criança ia desenhar. Tudo surgia desse branco metafísico, fundamental, que nos ampara. Mas, ao longo da vida, vamos nos esquecendo dele. Então, na medida em que o menino se aproxima do mundo, imagens vão surgindo e povoando o branco. Vai cobrindo tudo até não sobrar nada desse espaço sagrado. Quando o menino chega a esse ponto de sufoco, o filme rompe com a própria animação. Literalmente queimamos o papel e inserimos os vídeos, para mostrar da maneira mais crua possível a nossa realidade. E, no final, retornamos ao branco.

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