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Desenho animado e geopolítica: quando Disney foi ao Brasil

16 de outubro de 2023

Influência da gigante do entretenimento é mundial, mas nem todos mereceram personagem e recepção de chefe de Estado. Com Zé Carioca e visita de Walt Disney ao Brasil, EUA exerceram "soft power" na América Latina.

Cartaz do desenho animado "Alô, Amigos" na versão hispanófona, com Pato Donald e Zé Carioca
"Soft power americano na década de 40: versão hispanófona de 'Alô, Amigos'. À direita, papagaio Zé CariocaFoto: Walt Disney/Everett Collection/IMAGO

Considerada hoje o maior conglomerado de mídia e entretenimento do mundo, a empresa The Walt Disney Company comemora 100 anos em 16 de outubro de 2023. Mas sua influência sobre o Brasil transcende a diversão; sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial e o Estado Novo do presidente Getúlio Vargas (1937-1945), a companhia foi uma arma do soft power americano sobre o Brasil.

Com direito a visita especial do próprio empresário Walt Disney (1901-1966) e a criação de um carismático e estereotipado personagem, o Zé Carioca – papagaio com pinta de malandro que, nos Estados Unidos, acabou conhecido como Joe Carioca.

"Com certeza, trata-se de uma estratégia de soft power", comenta o publicitário Paulo Cunha, coordenador do curso de Comunicação e Propaganda da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e autor de tese de doutorado sobre o assunto. "A Disney, ao usar representações dos valores morais e culturais dos Estados Unidos, influenciando especialmente crianças com o padrão do aceitável socialmente, colaborou muito para a perpetuação de um estilo de vida modelar."

A criação do personagem Zé Carioca, neste sentido, veio num momento especialmente delicado. E foi a consequência de uma visita do próprio Walt Disney ao país. No início dos anos 1940, com a Segunda Guerra Mundial em andamento, havia países como o Brasil que ainda não haviam oficialmente decidido de qual lado ficar naquela contenda.

Contra os nazistas, a "boa vizinhança"

Mas estava em curso a chamada "política da boa vizinhança", um esforço do governo americano, de 1933 a 1945, sob o comando de Franklin Roosevelt, para aproximar-se dos países latino-americanos.

Depois de visitar uma subsidiária petroleira na Venezuela, o influente empresário americano Nelson Rockfeller (1908-1979), sugeriu a Roosevelt que criasse um órgão governamental para zelar pelos interesses dos Estados Unidos.

"Era uma tentativa de inibir a influência dos nazistas e fascistas dentro do continente", explica o jornalista e escritor Maurício Nunes, autor do livro A Árvore dos Sonhos – A vida e obra de Walt Disney. "A ideia era convidar nomes proeminentes de Hollywood a visitarem alguns países da América Latina, para que este intercâmbio os inspirasse a infundir temas latino-americanos em seus próximos filmes."

Foi nesse contexto que Walt Disney esteve no Rio de Janeiro, entre 17 de agosto a 8 de setembro de 1941. Lançou pessoalmente no Pathé Palácio, na Cinelândia, o terceiro longa de seus estúdios, Fantasia, de 1940, encontrou-se com o então presidente Vargas e a primeira-dama, Darcy, conheceu a Escola de Samba Portela, colheu inspirações para o personagem Zé Carioca e, claro, esbaldou-se nas praias.

Segundo as pesquisas de Nunes, o nome de Disney foi lançado pelo governo americano para tentar fazer engrenar o projeto das visitas internacionais em prol da tal "boa vizinhança", "pois seu carisma agradava a todos os envolvidos, incluindo Vargas, evidentemente".

"A princípio, Walt dispensou o convite, pois, apesar de toda a fama no continente em questão, não se considerava um bom embaixador, visto que era um homem de ação e não de política", comenta o jornalista. "Então surgiu a proposta de uma viagem de pesquisa, com o intuito de buscar conteúdos para futuros filmes da Disney."

Encontro de titãs: compositor Heitor Villa-Lobos (esq.) conversa com DisneyFoto: Arquivo Nacional

Brasil, um mercado interessante

Isso, sim, interessou o magnata do entretenimento. Porque naquele contexto de guerra mundial, com a falta do mercado europeu, o estúdio passava por dificuldades, e era importante buscar novas audiências. "Como o governo americano prometeu financiar a viagem, ele, visando a oportunidade de novos filmes fomentados pela pesquisa, topou. Sua comitiva tinha 18 pessoas, sendo formada por Walt, 15 funcionários do estúdio, duas esposas de funcionários, sendo uma delas Lilian, esposa de Walt", relata Nunes.

Disney foi paparicado do começo ao fim, e não somente por autoridades. "O primeiro destino foi a cidade de Belém, no norte do Brasil, ponto utilizado somente para abastecer a aeronave. Walt foi recepcionado por centenas de crianças que estavam ali só para vê-lo", conta o jornalista. "A imensa maioria delas não sabia quem era o presidente do país, mas sabia muito bem quem era o pai de Mickey Mouse."

Logo depois, o empresário desembarcaria no Rio. "Não demorou muito para se adaptar à cultura festiva do carioca e se sentir em casa, rodeado por um povo amistoso e alegre, para quem não cansava de distribuir autógrafos e posar sorridente para fotos."

Foram muitos os encontros com artistas – entre eles, Ary Barroso, que apresentaria a Disney sua Aquarela do Brasil. O empresário americano visitou os pontos turísticos mais importantes, como o Corcovado, o Pão de Açúcar e o Cassino da Urca. Participou de um desfile militar em comemoração à Independência do Brasil e se encantou com a flora e fauna nacionais. "No zoológico, os artistas desenharam flamingos, tamanduás, antas e tatus, animal este que até inspirou um personagem do desenho animado Pluto e o Tatu, de 1943.

Walt Disney (c., de bigode) na Escola de Samba Portela, Rio de Janeiro, 1941Foto: Arquivo Nacional

Zé Carioca, entre brasilidade carinhosa e clichê

Mas o personagem mais emblemático resultante dessa excursão ao Brasil é, sem dúvida, o papagaio Zé Carioca. Nunes conta que "a equipe Disney havia se encantado com um 'pássaro falante', o papagaio brasileiro". "Ao ouvir as piadas que sempre envolviam a tal ave, contadas pelo sambista José do Patrocínio Oliveira, conhecido como Zezinho", diz o jornalista. "Walt teve então a ideia de criar um novo personagem, o amigo brasileiro do Pato Donald, um malandro simpático e boa gente, e assim nasceu o Zé Carioca."

Curiosamente, Oliveira não nascera no Rio, era paulista de Jundiaí. "Walt se encantou com o jeito serelepe de Zezinho e o convidou para ser a voz oficial de Zé Carioca, além de também servir de modelo para que os animadores criassem os movimentos do personagem. Disney brincava com a aparência de Zezinho, dizendo que o músico já tinha até nariz de papagaio."

Os trajes ao estilo malandro carioca e o inseparável guarda-chuva remetem à maneira como Zezinho estava quando chegou ao estúdio improvisado, montado para os animadores conceberem o personagem.

Para o estudioso Cunha, a importância do Zé Carioca "foi ter reconhecido e validado, pela referência cultural [da indústria americana], um modo de ser tipicamente nacional, ainda que estereotipado".

"Da parte da Disney, esse personagem veio colaborar com a política de 'boa vizinhança' estabelecida pelo governo americano, que buscava parceria estratégica com outros países, especialmente no período da Segunda Guerra", complementa o publicitário.

O personagem brasileiro estreou ao público no desenho animado Alô, Amigos, lançado em 1942, envolvendo muitas outras brasilidades, inclusive Aquarela do Brasil como música-tema. "Alô, Amigos foi feito com o material produzido na viagem da equipe Disney à América do Sul, e se tornou praticamente uma declaração de amor ao Brasil, especialmente ao Rio de Janeiro e ao Cassino da Urca, que tanto cativou o pai de Mickey Mouse", comenta o jornalista Nunes.

Dali, o estereótipo se espalharia por todo o globo. "Graças a Walt Disney, o Brasil, pelas cores de Ary, foi apresentado ao mundo como um paraíso sul-americano." O Rio se tornou um dos destinos turísticos mais requisitados. E Aquarela do Brasil ganhou o planeta, como uma das canções brasileiras com mais regravações pelo mundo.

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