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Catástrofe

Desespero e medo marcam um mês da tragédia em São Sebastião

20 de março de 2023

Na Vila Sahy, local mais destruído, muitos desabrigados que deixam pousadas não têm para onde ir. Moradores e fontes ouvidas pela DW criticam falta de coordenação.

Ruínas de casas em alto de morro em São Sebastião
Ruínas de casas em São Sebastião um mês após chuvas recordes e deslizamentos que deixaram 65 mortosFoto: Nádia Pontes/DW

Sobre um monte de escombros na Vila Sahy, em São Sebastião, Eliane Oliveira e o marido observam o vão aberto entre as casas que antes ocupavam o espaço. As construções foram levadas pela enxurrada na madrugada de 19 de fevereiro depois de chuvas recordes no litoral paulista, que deixaram 65 mortos e mais de mil desabrigados na cidade.

No bairro mais destruído pela tempestade, a antiga viela que o casal percorria morro acima, onde morava com os quatro filhos, já não existe mais. No trajeto de ruínas, rombos em paredes expõem objetos guardados dentro de quartos de pessoas que morreram na tragédia.

"É muito triste a gente ver este cenário, essa situação, e a Defesa Civil achar que a gente está seguro aí em cima. Eu não vou voltar", diz Oliveira à DW.

Na noite anterior ao encontro com a reportagem, o casal havia recebido a informação de agentes da Defesa Civil estadual de que poderiam retornar. A casa alugada por R$ 1.300 no alto do morro, de dois quartos, recebera uma nova classificação indicando que não apresentava risco iminente.

"O fundo da casa é um buraco. Lá não tem água. Meus filhos estão traumatizados, começaram a chorar quando disseram que a gente podia voltar", relata Oliveira.

Na madrugada da tragédia, elas desceram o morro junto com a enxurrada com a caçula de dois anos no colo. O filho de 14 anos sofreu um corte na perna e levou 12 pontos.

Abrigados provisoriamente numa pousada custeada pela prefeitura, a família não sabe até quando poderá permanecer ali. "Nós não temos para onde ir", diz Oliveira.

Numa outra pousada, Jaqueline Carvalho, gestante, ouviu dos mesmos representantes da Defesa Civil que tem que deixar o local até esta segunda-feira (20/03). A situação da casa onde morava com os dois filhos na vila, que já tinha rachaduras, se agravou depois das chuvas e ela não tem segurança para retornar.

"Acho que eles querem que eu volte para lá pra que aconteça alguma tragédia. Estou desesperada", declara Carvalho à DW.

Críticas sobre reclassificação de riscos

Segundo a prefeitura de São Sebastião, o prazo inicial para as famílias ficarem nas pousadas era de 30 dias. Na Vila Sahy, 270 moradias estão sendo monitoradas. "Entretanto, conforme laudo da Defesa Civil, os moradores já podem retornar", respondeu a prefeitura a questionamento da DW, por e-mail.

O risco de deslizamento aos quais as construções estão expostas é classificado por cores, explicou à DW Roberto Farina, tenente e diretor de comunicação da Defesa Civil do estado de São Paulo. As casas que receberam um selo vermelho estão condenadas e serão demolidas. As de laranja seguem em zona de risco e as famílias ainda não podem retornar. Aquelas com selo amarelo estão sob monitoramento e os moradores estão autorizados a voltar.

"Sabemos sobre a questão do trauma, que as pessoas quase morreram, que viram a morte de vizinhos, mas temos um critério técnico que está sendo trabalhado", respondeu Farina, por telefone, aos questionamentos da reportagem.

Em Vila Sahy, bairro mais afetado pela tragédia, casas foram classificadas por risco. "É muito triste a gente ver essa situação e a Defesa Civil achar que a gente está seguro aí em cima. Eu não vou voltar", diz Elaine OliveiraFoto: Nádia Pontes/DW

Por outro lado, uma fonte interna ouvida pela DW na condição de anonimato diz que falta coordenação entre Defesa Civil municipal e outros órgãos, e que alguns critérios adotados carecem de embasamento técnico.

"Ali na vila todas as casas estão em risco. Está havendo falha de interpretação dos relatórios técnicos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Além da falta de trato com a população", critica a fonte.

Durante a visita da DW à Vila Sahy, a reportagem presenciou abordagens truculentas a moradores que se recusaram a abandonar suas moradias.

Esperança de ficar

O sobrado que Constancio Soares começou a construir em 2016 foi interditado. Desde a tragédia, a esposa e o filho de quatro anos de Soares, além de uma irmã e um irmão dele, estão na casa de amigos num bairro próximo.

"Eu venho aqui todos os dias. Não temos para onde ir, ainda temos esperança de voltar para cá", explica Soares, apoiado no muro. "Comprei o terreno sabendo que não era regularizado, mas era o único jeito de se ajeitar com a família", adiciona.

Sem informação clara sobre o estado da casa, ele diz que o risco de novos deslizamentos não é o que lhe causa maior preocupação. "Medo a gente sempre tem, mas a gente já está acostumado com medo. A gente, que é pobre, encara muita coisa difícil na vida. Mas a parte mais difícil é ter que sair de casa sem saber para onde você vai", detalha.

Enxurrada deixou rastro de lama pelas ruas de Vila Sahy, em São SebastiãoFoto: Nádia Pontes/DW

Na rua de baixo, na parte mais plana do bairro, José Firmino e a esposa também não querem ir embora. As paredes do sobrado onde moravam têm buracos grandes, mas Firmino acredita que uma reforma resolveria o problema.

"Venho todos os dias porque tenho medo de invasão. Aí dentro tem suor, meu e da minha esposa, tem toda a nossa vida", diz Firmino, que chegou na vila há 30 anos e está abrigado na casa dos patrões da esposa.

A jornada do recomeço

O local onde Renato Dantas e as quatro filhas residiam no alto do morro foi demolido. Depois de dias num abrigo, eles foram levados para apartamentos construídos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, CDHU, em Bertioga.

Segundo a prefeitura de São Sebastião, este foi o destino de pelo menos 43 famílias e a expectativa é que os 300 imóveis do conjunto sejam ocupados por pessoas na mesma condição que Dantas.

Em Bertioga, quem aguardou anos na fila para se mudar para os apartamentos populares protestou contra a chegada dos desabrigados de São Sebastião. "Foi horrível, as pessoas xingaram a gente. Eles estão com medo de a gente ficar lá e eles perderem a casa", conta Dantas.

Na manhã em que a reportagem encontrou Dantas no Sahy, ele comemorava a aquisição de um carrinho para vender espetinhos na praia. Ele recebeu doação em dinheiro de duas mulheres e fez a compra, planejando um retorno à atividade informal para os dias seguintes.

Por enquanto, terá que lidar com a distância. O acordo é que ele e as famílias em situação de emergência fiquem até oito meses nos imóveis em Bertioga. Paralelamente, 100 moradias pré-moldadas estão sendo montadas no centro de São Sebastião e devem abrigar as pessoas alocadas nas pousadas, diz o tenente Farina.

"As casas permanentes serão construídas no bairro Baleia Verde com entrega prevista em até 150 dias. Serão 500 residências, atendendo todas as famílias que foram mapeadas em grau vermelho e laranja", detalha o plano do governo do estado.

Tentativa de volta à normalidade

Enquanto isso, algumas famílias que seguem na Vila Sahy buscam um senso de normalidade. Encontrar uma escola para a filha no ensino médio é a missão de Ana Paula Dias. O prédio que recebia os estudantes no bairro vizinho de Juquehy está interditado por conta dos estragos causados pela chuva de fevereiro.

"Ela e muitos outros estão em casa, ainda sem aulas. Estou fazendo de tudo para encontrar um lugar", afirma Dias à DW.

Um dos pontos de busca é o Instituto Verdescola, ONG na Vila Sahy que oferece educação a 700 crianças. Nas primeiras horas após a tragédia, o local recebeu os corpos encontrados soterrados e serviu de abrigo a 400 desalojados.

Tatiana Faustino (à frente) e Cenira Macedo, professoras no Instituto Verdescola, para 700 crianças: dificuldade de lidar com ansiedade e lutoFoto: Nádia Pontes/DW

"Retornamos às aulas há uma semana. Nós escutamos os alunos e observamos. Na minha sala, perdemos duas crianças na tragédia", conta Cenira Macedo, professora de estudantes de 10 e 11 anos.

Tatiana Faustino, professora do terceiro ano, diz que apesar de todos os funcionários terem recebido treinamento específico para lidar com a situação de emergência, é difícil lidar com a ansiedade e com o luto.

"Às vezes eles lembram de algum episódio daquela madrugada e falam, contam o que aconteceu, que perderam tudo. Nós acolhemos e planejamos atividades para que eles ocupem a mente. Não sabemos se todos continuarão na vila, se outras famílias chegarão, tudo é muito incerto ainda", comenta.

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