1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW
CulturaFrança

Dez anos após atentado, "Charlie Hebdo" satiriza Deus

Sarah Hucal
7 de janeiro de 2025

Jornal satírico "Charlie Hebdo" marca dez anos de atentado terrorista com concurso de cartuns #RirDeDeus. Especialista coloca Brasil entre países onde "cartunistas são com frequência atacados e ameaçados."

Edição do jornal satírico francês comemorativa dos dez anos do atentado terrorista de 07/01/2015
Edição comemorativa dos dez anos do atentado traz o título "Increvable" – algo como "inestourável"Foto: Jean-François Frey/PHOTOPQR/L'ALSACE/MAXPPP/dpa/picture alliance

Como um cartunista deve fazer piada do Todo-Poderoso? Para homenagear as vítimas do atentado terrorista de 7 de janeiro 2015 a sua redação, o jornal satírico francês Charlie Hebdo propôs o concurso #RireDeDieu (Rir de Deus), cujos vencedores foram anunciados nesta terça-feira (07/01).

Cartunistas profissionais "que estão de saco cheio de viver numa sociedade regida por Deus e pela religião" foram convocados a "realizar a caricatura mais engraçada e maldosa de Deus". A competição marcou o 10º aniversário do massacre por extremistas islâmicos, em Paris. Entre suas 12 vítimas estão oito membros da equipe editorial do jornal, inclusive os famosos Cabu, Charb e Wolinski.

O pretexto foram as repetidas charges sobre o profeta Maomé no Charlie Hebdo. Considerado um ataque à liberdade de imprensa e de expressão em geral, o crime suscitou manifestações de apoio em âmbito global, sob o slogan "Je suis Charlie" (Eu sou Charlie). Mas também críticas de que a publicação teria ido longe demais.

Uma década depois, certos observadores estão convencidos de que os humoristas e sua capacidade de provocar riso, mesmo que polêmico, são mais necessários do que nunca num momento em que a repressão à liberdade intelectual avança por todo o mundo.

Cabu, uma das vítimas do atentado à redação do jornal satírico "Charlie Hebdo"Foto: TIBOUL/MAXPPP/dpa/picture alliance

Riso sob ameaça também no Brasil

"Estamos monitorando a situação dos cartunistas, onde quer que estejam no planeta, e tenho que dizer que a tendência é realmente ruim", afirma o profissional Patrick Lamassoure, conhecido pelo pseudônimo KAK. "China, Rússia, Irã, Índia, Indonésia, Malásia e Brasil, entre outros: a maioria da população do mundo vive em países onde há censura à imprensa e cartunistas são com frequência atacados e ameaçados."

Liberdade de expressão é poder dizer o que eu quero?

08:50

This browser does not support the video element.

Lamassoure é presidente da Cartooning for Peace, uma rede internacional de cartunistas profissionais "que usa o humor para lutar pelo respeito às culturas e liberdades". A organização apoia incondicionalmente o concurso do Charlie Hebdo, mesmo que os resultados possam gerar ainda mais controvérsia.

Em seguida à Revolução Francesa, as charges políticas ganharam popularidade no país, ao expor os abusos de poder, e desde então se mantém uma tradição de sátira antirreligiosa. "Os cartuns representam a capacidade dos cidadãos de olhar nossos líderes no olho e dizer: 'A gente está vendo o que vocês fazem e pode rir de vocês'", resume Lamassoure.

"Matamos Charlie Hebdo" x "Je suis Charlie": cartum de ZAPIRO, da Cartooning for Peace, simboliza resistência dos colegas parisiensesFoto: ZAPIRO (Afrique du Sud) - Carooning for Peace

Desde sua fundação, em 1970, Charlie Hebdo é notório por testar as fronteiras do que pode ou não ser dito publicamente. Segundo as leis francesas contra o discurso de ódio, é permitido zombar da religião, contanto que não se incite à violência, e as minorias permaneçam protegidas.

Lamassoure argumenta que, embora as sátiras possam contrariar alguns, só a lei decide o que é aceitável: "Porque qualquer coisa que eu diga ou faça vai aborrecer alguém – qualquer coisa. E o único limite tem que ser a lei, pois quanto a ela nós todos estamos de acordo."

Onde é "longe demais"?

Charlie Hebdo não ridiculariza apenas o islamismo, mas também o cristianismo e o judaísmo. Antes mesmo do atentado de 2015, críticos acusavam alguns de seus cartuns de ultrapassar a fronteira para o fanatismo antirreligioso. Em 2011, pouco depois de o jornal publicar uma edição aos cuidados do "editor convidado profeta Maomé", uma bomba incendiária danificou seu edifício.

Mas Lamassoure frisa que comentários provocadores constituem o quotidiano do cartunista político. "E se as pessoas ficam zangadas porque não gostam do que você diz, isso é bom, é liberdade de expressão – contanto que não se quebre nenhuma lei."

Concurso da 'Charlie Hebdo' de 2023, de caricaturas do aiatolá Ali Khamenei, desencadeou protesto no IrãFoto: Atta Kenare/AFP

Por outro lado há quem esteja disposto a infringir leis para expressar sua objeção à expressão artística do Charlie Hebdo – que é protegida legalmente. Por isso, a equipe de Paris precisa trabalhar em locais secretos, sob guarda rigorosa. Alguns de seus funcionários se encontram ainda sob proteção policial.

Segundo a rede Cartooning for Peace, a França é um dos últimos bastiões que mantêm a sátira viva: nenhum tópico, nem mesmo a religião, escapa. "Não sobraram tantos países assim onde se possa de fato rir do que se quiser e não ser ameaçado por isso", afirma Lamassoure.

Ele sente uma "responsabilidade por manter essa chama viva", já que a capacidade de rir de quem está no poder é "uma necessidade fundamental e uma liberdade muito importante". E "mesmo quem critica os cartunistas precisa dessa liberdade".