Da lista de oradores até o local da cerimônia, preparativos para a despedida oficial do antigo chanceler alemão reabrem velhas feridas em vez de honrar o seu legado político.
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Um ícone político morto, uma jovem viúva, filhos que se afastaram, amigos controversos e uma batalha pela herança e para impor uma versão dos fatos: tudo isso poderia ter saído da pena de um dramaturgo como Shakespeare, mas é a realidade que antecede a homenagem final ao ex-chanceler federal alemão Helmut Kohl, que morreu no último dia 16 de junho.
Tanto do ponto de vista político como emocional, a situação é tensa. Há, por exemplo, a "minha menina", como Kohl costumava chamar a sua antiga protegida Angela Merkel – uma expressão ainda hoje repetida porque sintetiza a complicada relação entre os dois. "A menina" – hoje chanceler federal da Alemanha e presidente da CDU de Kohl – não deveria discursar durante a cerimônia de despedida, segundo a revista Der Spiegel. A relação entre Merkel e o antigo chanceler esfriou muito depois que ele deixou a política, em 2002.
Em 1999, em meio ao escândalo de doações partidárias ilegais para a CDU, Merkel pronunciou as palavras que, segundo especialistas, são hoje vistas como o prenúncio do fim da era Kohl: "As práticas reconhecidas por Helmut Kohl causaram estragos ao partido". A então secretária-geral da CDU escreveu um artigo de opinião para o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, no qual conclamava o partido "a aprender a caminhar sozinho, a ter confiança para encarar a luta contra o adversário político sem o seu velho cavalo de batalha, como Helmut Kohl frequentemente se referia a si mesmo."
Pouco depois desse golpe de misericórdia no antigo mentor, principal nome envolvido no escândalo de caixa 2, e em meio às acusações de corrupção que atingiam boa parte da direção do partido, Merkel assumiria a presidência da CDU. Em 2005, tornaria-se a primeira mulher a ocupar a Chancelaria Federal.
Desde então, Merkel várias vezes tentou se reaproximar de Kohl. Em 2010, por ocasião do seu 80º aniversário, ela o elogiou publicamente pelas suas conquistas, sem as quais "as vidas de milhões de pessoas que, como eu, até 1990 viveram na Alemanha Oriental, teriam sido completamente diferentes". Era uma referência à Reunificação, o legado maior da era Kohl. Mas o antigo chanceler nunca a perdoou. Conhecido por guardar rancor, Kohl teria várias vezes dito à sua esposa que não queria um discurso de Merkel no seu enterro.
Cerimônia europeia, sem Órban
Tentar impedir um discurso da chanceler federal da Alemanha não foi a única ação de Maike Kohl-Richter a gerar controvérsia. Trinta e quatro anos mais nova do que o antigo chanceler, Maike o conhecera na Chancelaria Federal, durante os seus últimos anos de governo. Eles se casaram em 2008, poucos anos depois da morte da primeira mulher de Kohl, Hannelore. A família dele não participou da cerimônia. O empresário de comunicação Leo Kirch e o então diretor de redação do jornal Bild, Kai Diekmann, foram os padrinhos do casamento.
Em 2008, Kohl sofreu um traumatismo craniano após uma queda. Desde então, ele mal podia falar e andava numa cadeira de rodas. Maike assumiu a defesa dos interesses do marido. No seu primeiro embate com a política alemã, ela foi derrotada. Merkel vai discursar, na condição de chanceler federal alemã, na cerimônia oficial de despedida de Kohl. Mas a viúva conseguiu impor que o evento não seja em solo alemão, mas em Estrasburgo, na França – outra decisão controversa.
Um outro desejo da viúva – e, segundo ela, também de Kohl – não foi atendido: um discurso do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Órban, que Kohl conhecera, então ainda um jovem político de ideias liberais, depois do colapso da União Soviética e com o qual ele manteve, desde então, uma forte amizade.
Hoje, Órban é criticado justamente pelo seu autoritarismo, em franca contradição com o legado de liberdade política de Kohl, associado à Reunificação. Além disso, suas posições claramente antieuropeias e sua política restritiva de refugiados também estão em forte contraste com os ideais europeus que a cerimônia em Estrasburgo, segundo Maike Kohl-Richter, deveria ressaltar.
Com ou seu Órban, a opção por Estrasburgo também gerou controvérsia: é a primeira vez que um chanceler federal alemão não recebe uma cerimônia oficial de despedida em solo alemão. Em vez disso haverá um ato europeu, neste sábado (01/07), com discursos do presidente da França, Emmanuel Macron, do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e do ex-presidente americano Bill Clinton.
Brigas de família
Em vez de ser enterrado no jazigo da família, ao lado da primeira esposa, o corpo de Kohl será levado de Estrasburgo para uma missa fúnebre na catedral de Speyer e, depois, enterrado no cemitério ao lado. Apesar de algumas pessoas considerarem tudo isso um desrespeito ao papel de Kohl como chanceler da Reunificação, ao menos a opção por Speyer faz algum sentido: Kohl sempre manteve boas relações com a cidade, onde foi homenageado com honras militares quando deixou o governo, em 1998.
Não se sabe se questões pessoais foram determinantes para que Kohl não seja enterrado ao lado da primeira esposa. Certo está, porém, que as suas relações com os filhos do primeiro casamento eram conturbadas. E também as da viúva. Diante das câmeras de televisão, o filho mais velho, Walter, foi impedido de entrar na residência do pai depois da morte deste. Mais tarde, o advogado de Kohl-Richter negou que isso tenha ocorrido.
"Só posso expressar minha profunda consternação e meu luto pela morte dele e que tudo isso esteja acontecendo desse jeito", disse Walter ao jornalistas presentes. "Meu pai rompeu com muitas pessoas do seu entorno. Principalmente também com os netos, que sofreram muito por o avô não estar mais disponível para eles", afirmou Walter, que estava acompanhado do próprio filho.
Uma coisa deve-se reconhecer: controvérsias sempre fizeram parte da reputação de Kohl, como bem lembrou o presidente do Bundestag, Norbert Lammert, numa cerimônia no parlamento. "Lendárias são tanto sua força de união como sua atuação polarizadora – aliás, isso vale para as relações entre os partidos políticos e também dentro da CDU", disse o político, também da CDU, sobre o antigo chanceler.
Ainda assim, o político Kohl deve ser honrado principalmente pelas suas conquistas políticas, disse Lammert. "Devemos principalmente a ele que a unidade pacífica do nosso país, dentro de uma Europa livre e pacificada, seja hoje realidade." Controvérsias à parte, ao menos o legado político de Kohl segue intacto.
A trajetória política de Helmut Kohl
Ele governou a Alemanha ao longo de 16 anos, mais do que qualquer outro chanceler federal. A queda do Muro de Berlim e a Reunificação são os pontos altos da carreira política de Helmut Kohl, que completa 85 anos.
Foto: picture-alliance/dpa
O pai da Reunificação
Ele governou a Alemanha de 1982 a 1998, mais tempo do que qualquer outro chanceler federal. A queda do Muro de Berlim e a Reunificação são os pontos altos da carreira política de Helmut Kohl.
Foto: dapd
Nos passos de Adenauer
Kohl entrou para a União Democrata Cristã (CDU) em 1946, quando era um estudante secundarista de 16 anos. Foi eleito deputado estadual da Renânia-Palatinado em 1959, aos 29 anos, e virou líder da bancada aos 33. Em 1966, tornou-se presidente estadual da CDU. A foto de 5 de janeiro de 1967 mostra Kohl e o primeiro chanceler federal do pós-Guerra, Konrad Adenauer, na festa de seus 91 anos, em Bonn.
Foto: picture alliance / dpa
Governador aos 39 anos
Em 1969, com a renúncia do então governador da Renânia-Palatinado, Peter Altmeier, Kohl foi eleito seu sucessor. Ele comandaria o estado até dezembro de 1976, e o cargo não seria o auge de sua carreira política. A foto é de 1971, ano em que a CDU obteve a maioria absoluta no parlamento regional.
Foto: Imago
Em família
A família foi muito importante para a formação da imagem pública de Kohl. Ele costumava passar suas férias de verão com a esposa e os filhos sempre no mesmo lugar, no lago Wolfgangsee, na Áustria. Esta foto é de 1974, e mostra Kohl ao lado da esposa Hannelore e dos filhos Peter (d) e Walter (e) na residência da família, em Oggersheim.
Foto: imago/Sven Simon
Kohl na chancelaria federal
Em 1973, Kohl se tornaria presidente nacional da CDU. Mas ele ainda não tinha atingido sua grande meta: a chancelaria federal. Foi só em 1982, quando divergências entre social-democratas e liberais levaram ao fim da coalizão que sustentava o então chanceler federal Helmut Schmidt, que Kohl finalmente conseguiu alcançar seu objetivo. Na foto, de 1º de outubro de 1982, Schmidt parabeniza o sucessor.
Foto: picture-alliance/dpa
Chanceler federal por 16 anos
Kohl foi três vezes reeleito para a chancelaria federal, ocupando o cargo ao longo de 16 anos, de 1982 a 1998. Ele permaneceu na presidência da CDU, para a qual havia sido eleito em 1973, até 1998. A partir de 2000, passou a ser o presidente de honra do partido. A foto é de 11 de setembro de 1989, quando Kohl foi reeleito para a presidência da CDU.
Foto: picture alliance/Martin Athenstädt
Gesto de reconciliação
Esta foto, que mostra Kohl ao lado do primeiro-ministro da França, François Mitterrand, correu mundo. Ela foi tirada em 22 de setembro de 1984, durante um evento para celebrar a reconciliação franco-alemã, perto do cemitério de Verdun, onde estão enterrados soldados que morreram na batalha de 1916. Ao se darem as mãos, os dois líderes criaram uma forte imagem de unidade e reconciliação.
Foto: ullstein bild/Sven Simon
Queda do Muro
Kohl foi literalmente surpreendido pela queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989. Ele estava em viagem pela Polônia quando os cidadãos da Alemanha Oriental invadiram a fronteira interna alemã, com a anuência dos guardas do lado oriental. Kohl interrompeu imediatamente sua visita à Polônia. Na foto, de 10 de novembro de 1989, ele é cercado por berlinenses na avenida Kurfürstendamm.
Foto: picture-alliance/dpa
Negociações com a União Soviética
Na foto Kohl (d) aparece junto com Mikhail Gorbatchov (centro), e o ministro alemão do Exterior, Hans-Dietrich Genscher (e), durante uma visita ao Cáucaso, em 15 de julho de 1990, para discutir a reunificação alemã. Durante uma caminhada com Gorbatchov, Kohl obtivera do então chefe do Kremlin a aprovação da reunificação do país e da retirada das tropas soviéticas da Alemanha Oriental.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo entre as Alemanhas
Na presença do chanceler da Alemanha Oriental, Lothar de Maizière (esq. atrás) e do chanceler federal Helmut Kohl (centro atrás), os ministros da Finanças da Alemanha Ocidental e Oriental, Theo Waigel (dir.) e Walter Romberg (esq.), assinam, em 18 de maio de 1990, o acordo que abriria caminho para a Reunificação.
Foto: picture-alliance/dpa
Chanceler da Reunificação
A Reunificação alemã, em 3 de outubro de 1990, foi o ponto alto da carreira de Helmut Kohl. Ele entraria para a história como o "chanceler da Reunificação". Na foto, Kohl aparece ao lado da esposa Hannelore, do ministro do Exterior Hans-Dietrich Genscher (e) e do presidente Richard von Weizsäcker (d).
Foto: picture-alliance/dpa
Paisagens florescentes
No início dos anos 1990, Kohl é festejado pelos alemães-orientais como promotor da Reunificação. É dessa época a famosa expressão "paisagens florescentes", que ele usou para se referir ao futuro imediato da antiga Alemanha Oriental. A foto mostra o então chanceler cercado por admiradores em Leipzig, durante uma campanha eleitoral, em 14 de março de 1990.
Foto: picture-alliance/dpa
Mentor da primeira chanceler
Sem Kohl, o sucesso da atual chanceler federal alemã, Angela Merkel, é praticamente inconcebível. Foi ele que apoiou a política oriunda da Alemanha Oriental no início da sua carreira nacional, escolhendo-a para ser ministra da Família e, mais tarde, do Meio Ambiente. A foto é de 16 de dezembro de 1991, quando Merkel era ministra da Família.
Foto: picture-alliance/dpa
Fim de uma era
Em setembro de 1998, a CDU perdeu as eleições parlamentares, o que abriu caminho para o primeiro governo de uma coalizão entre social-democratas e verdes. A foto mostra uma cerimônia de despedida para Kohl, em Berlim, com honras militares.
Foto: picture-alliance/dpa
Escândalo de caixa dois
Em 1999, a imagem de Kohl é duramente atingida por um escândalo de doações ilegais para campanhas eleitorais da CDU ao longo dos anos 1990. O partido vira as costas para Kohl, e a primeira a fazê-lo é Merkel, sua protegida. Na foto, de dezembro de 1999, Kohl deixa mais cedo uma entrevista coletiva sobre o caso. Ao fundo, o presidente da CDU, Wolfgang Schäuble, e a secretária-geral Angela Merkel.
Foto: picture-alliance/dpa
Relação rompida
Kohl acabou admitindo que sabia das doações, mas se recusou a dar o nome dos doadores, anônimos até hoje. O processo contra Kohl foi arquivado em troca de uma multa milionária, e ele se afastou da política. Merkel tentou várias vezes se reconciliar com seu antigo mentor, que rejeitou todas as tentativas de aproximação. A foto mostra os dois na festa de 75 anos de Kohl, em Berlim, em 2005.