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SociedadeFrança

Distúrbios na França podem trazer vantagem para ultradireita

4 de julho de 2023

Desde que um policial matou o jovem Nahel, protestos abalam a França. Mas a solidariedade está longe de ser unânime e a ultradireita de Le Pen tenta colher dividendos políticos com a violência das manifestações.

Manifestantes portam cartaz "Justiça para Nahel"
"Justiça para Nahel", exigem manifestantes em ParisFoto: Eliot Blondet/picture alliance/abaca

Mesmo que pouco a pouco a violência nas ruas pareça estar amainando, não se pode falar de normalidade nas cidades da França. Depois que Nahel M., de 17 anos, foi morto por um tiro em 27 de junho, durante uma blitz de trânsito no subúrbio parisiense de Nanterre, a cólera contra o Estado e suas instituições irrompeu em diversas localidades. Ainda mais depois que um vídeo divulgado nas redes sociais mostrou inequivocamente que o policial não agiu em legítima defesa.

A violência se descarrega sobretudo contra os símbolos da república, postos policiais, escolas e prefeituras. O clímax, até o momento, foi o ataque à residência do prefeito de L'Haÿ-les-Roses, na área metropolitana de Paris, onde desconhecidos romperam o portão com um veículo pesado, ao qual atearam fogo, assim como ao automóvel da família.

A esposa do político ficou ferida ao tentar escapar com os dois filhos pequenos. A Justiça abriu inquérito por tentativa de homicídio. Nesta segunda-feira (03/07), o incidente suscitou manifestações de solidariedade diante diversas prefeituras municipais.

Já houve mais de 3 mil detenções desde o início dos distúrbios na França. Um dos principais potenciais beneficiários desse caos é o partido de ultradireita Reunião Nacional (RN).

Luto e solidariedade com família do jovem de 17 anos diante das prefeituras francesasFoto: Yves Herman/REUTERS

Solidariedade com Nahel não é unânime

Numerosos políticos franceses condenaram o assassinato do jovem descendente de magrebinos (habitantes do norte da África), a começar pelo presidente Emmanuel Macron, que classificou o ato como "inexplicável" e "imperdoável". O centro e a esquerda política reforçaram essa posição.

O deputado François Ruffin, da legenda de esquerda radical A França Insubmissa, exortou toda a nação a se mostrar solidária com uma mãe "cujo filho de 17 anos foi fuzilado à queima-roupa, embora não representasse qualquer tipo de perigo".

Contudo a solidariedade entre a classe está longe de ser unânime: ao mesmo tempo que prestou seus pêsames no Twitter, Eric Ciotti, do conservador Os Republicanos (LR), ressalvou que se devia esperar o resultado do inquérito antes de se condenar o policial.

Já dois dias depois do assassinato de Nahel, o político exigia, diante dos distúrbios, que o governo declarasse estado de emergência. Este confere amplos poderes às autoridades, por exemplo, para restringir a liberdade de reunião ou realizar batidas domiciliares.

Nesse ponto, Ciotti foi até mais longe do que Marine Le Pen, candidata da RN nas últimas duas eleições presidenciais e agora chefe de bancada do partido na Assembleia Nacional. Apesar de tachar as declarações de Macron de "excessivas" e também insistir que se esperasse os resultados das investigações contra o policial, a ultradireitista se pronunciou contra o estado de emergência, que só pioraria a situação.

"Estratégia da gravata" da extrema direita de Le Pen

Para Benjamin Morel, professor de direito público da Universidade de Paris Panthéon-Assas, trata-se de uma "estratégia da gravata", parte da tentativa da RN, há anos, de se mostrar moderada: "Por toda parte eles vestem paletó e gravata, por exemplo na Assembleia Nacional, e não chamam mais a atenção, como antes, com declarações muito radicais. Na atual crise, a RN está quase na mesma linha que Macron."

Motivo para tal seria que "na França – ao contrário de outros países, como, por exemplo, a Alemanha – eles não podem chegar ao poder através de coalizões": a RN teria que ser a número um nas eleições presidenciais, "e por isso precisa atrair muitos eleitores para o seu lado".

Isso não impede certos políticos da legenda de ultradireita de seguirem adotando a linha-dura, observa o cientista político Gilles Ivaldi, do centro de pesquisa Cevipof, do Institut d'études politiques de Paris. Um deles seria o líder partidário Jordan Bardella.

O também descendente de imigrantes de 27 anos condena a "brutalização da sociedade, em consequência de uma política de imigração totalmente desvairada", e promete deportar todos os "criminosos estrangeiros", caso a RN vença as presidenciais de 2027.

"O partido persegue uma estratégia dupla, atendendo tanto a seus eleitores tradicionais extremistas, quanto a potenciais novos eleitores preocupados com a própria segurança, que agora, através de Le Pen, veem na RN um partido aparentemente aceitável, que restabelecerá a ordem", analisa Ivaldi.

Chefe de bancada Marine Le Pen e líder partidário Jordan Bardella: "estratégia da gravata" na ultradireitista Reunião NacionalFoto: Alain Jocard/AFP/Getty Images

"Para a RN os culpados são sempre os imigrantes"

Na realidade, porém, a RN continua mantendo um programa racista, ressalva Sylvain Crepon, docente de ciêncas políticas da Universidade de Tours, no centro do país: "O partido quer dar fim a toda imigração de fora da Europa, e é claramente contra os valores de integração e igualdade." Esse fato seria tão patente, que a sigla sequer precisa mais se referir a ele.

"Mesmo que Marine Le Pen não mencione explicitamente, todo mundo sabe que para o partido dela a culpa pela criminalidade na França é sempre dos imigrantes. Quando outros políticos, como Ciotti, dizem a mesma coisa, isso só ajuda à RN, pois o eleitorado sempre prefere votar no original do que numa cópia."

De forma lenta, mas constante, essa estratégia parece estar rendendo frutos: no decisivo segundo turno das presidenciais de 2022, apesar de perder para Macron, Le Pen já obteve 41,5% dos votos, contra os 34% de cinco anos antes.

Assim como seus colegas Morel e Ivaldi, Crepon acredita que atual crise poderá dar impulso aos extremistas de direita. Um indicador disso seriam os resultados de duas campanhas de doações online: para a família do rapaz assassinado, até agora coletaram-se cerca de 260 mil euros; enquanto para o policial que atirou foram doados mais de 1,2 milhão de euros.

Tarde demais para deter a ultradireita?

Por sua vez, o governo francês acentua que vem reagindo, em primeira linha, com os meios do Estado de direito, tanto à atual crise quanto à possível vantagem que esta possa render para a utradireita.

"Fortalecemos a presença policial e estamos em contato com as autoridades e associações locais, assim como com a família de Nahel. Enquanto alguns propõem soluções radicais, nós queremos evitar uma divisão da sociedade", afirmou um porta-voz do Palácio do Eliseu durante uma conversa informal com a imprensa, nesta segunda-feira.

Segundo ele, o governo já fez muito pelos subúrbios, mas está tendo que compensar déficits de décadas. Mas a afirmação é rebatida por Michel Kokoreff, professor de sociologia da Universidade Paris Vincennes-Saint-Denis, considerado perito na situação da periferia: "Isso é totalmente falso: entre outras, em 2018 o governo simplesmente cancelou um plano de ação de 48 milhões de euros para os subúrbios."

"A única forma de contrapor algo aos ultradireitistas é reparar as fraturas da sociedade, de forma que não voltem a ocorrer distúrbios nos subúrbios. Para tal, seriam necessárias reformas de base, por exemplo da polícia, também para manter unidades policiais in loco, que estejam diariamente em contato com os moradores."

Contudo, mesmo que o governo de Emmanuel Macron de fato iniciasse essas reformas, seria necessário tempo para que seus efeitos se fizessem sentir. E até o próximo pleito presidencial só faltam quatro anos.

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