Durante a ditadura militar argentina, o regime liderado por Videla assassinou e fez desaparecerem 30 mil membros da oposição, entre eles Omar Marocchi. O presumível responsável por seu sumiço vive hoje impune em Berlim.
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Anahí Marocchi nunca esquecerá o 18 de setembro de 1976: ela e a mãe estavam em Tandil, situada 350 quilômetros a sudoeste de Buenos Aires, quando descobriu que seu amado irmão Omar, dois anos mais novo, desaparecera. Anahí ainda se lembra de como ambas desabaram em prantos no banheiro. Desde então, não há vestígios de Omar Marocchi, então com 19 anos, nem de sua namorada Susana Valor, então grávida de três meses.
Hoje, 44 anos depois, ela ainda luta por um esclarecimento e punição: "Não se trata apenas de Omar, de uma pessoa. Defendo todas as vítimas da ditadura militar argentina e todos os que lutam por justiça."
O homem que se acredita estar por trás do assassinato de Omar Marocchi foi descoberto em Berlim, onde vive impune há sete anos. Trata-se de Luis Esteban Kyburg, vice-comandante de uma unidade naval de elite comprovadamente envolvida em crimes internacionais.
Oposicionistas como Marocchi eram levados ao centro de detenção secreta em Mar del Plata, onde eram abusados sexualmente, torturados e mortos. Kyburg, de 72 anos, enfrenta há anos um mandado de prisão internacional, acusado de envolvimento no sequestro e assassinato de 152 pessoas. Enquanto outros militares já foram condenados por esses crimes na Argentina, ele está à solta em plena capital alemã.
Kyburg fugiu para Berlim em 2013, quando deveria testemunhar num processo na Argentina. Dois anos depois esta solicitou sua extradição, mas Kyburg está protegido por um passaporte alemão. O Ministério Público de Berlim assumiu o caso e coopera com os promotores em Mar del Plata e Buenos Aires.
"A nacionalidade de Kyburg não deve protegê-lo do cumprimento da lei. O caso de Omar Marocchi é apenas um entre muitos milhares que foram torturados, mortos, abusados e sequestrados na Argentina", disse em Berlim o advogado Wolfgang Kaleck, fundador e diretor geral do Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR). "A Alemanha deve cumprir suas responsabilidades e levá-lo a tribunal aqui."
Uma luta longa continua
Calcula-se que o regime ditatorial do general Jorge Rafael Videla fez "desaparecerem" cerca de 30 mil membros da oposição. As forças de segurança sequestravam os levavam a centros de tortura secretos e os assassinavam. Muitas vítimas eram jogadas no Atlântico nos assim chamados "voos da morte", ou sedadas ou já mortas. Entre elas, estiveram cerca de 100 alemães e alemãs, incluindo Elisabeth Käsemann, filha do conceituado teólogo de Tübingen Ernst Käsemann.
Logo após o desaparecimento de seu irmão, Anahí Marocchi ingressou em organizações de direitos humanos, e há décadas está em contato com as mães e avós da Plaza de Mayo. "Essa não é uma luta breve. A procura dos responsáveis me ocupa há décadas", afirma.
Nas últimas semanas, Marocchi recebeu grande apoio através de mensagens por WhatsApp, SMS e e-mail. Muitos antigos amigos de escola do irmão pediram que ela perseverasse e prosseguisse. "Isso me fez incrivelmente bem", conta. A mídia argentina também tem dado destaque ao caso.
Ela parte do princípio que Kyburg era uma figura importante numa rede perfeitamente organizada: "Sempre estivemos convencidos de que devia haver uma gigantesca organização para esse plano sistemático da Junta. E sempre faltavam responsáveis. É provável que ele saiba muito sobre o meu irmão." É claro que os acusados sempre vão se recusar a divulgar informações e insistir em sua inocência, mas ela ainda espera descobrir mais: "Eu procuro respostas. Quero saber como o meu irmão morreu."
Contudo, Kyburg ainda pode conseguir se safar, pois o Ministério Público de Berlim tem que provar que ele assassinou Omar Marocchi. Para isso, precisa de declarações de testemunhas, especialistas e peritos da Argentina. O caso Kyburg pode durar anos.
Apesar disso, Anahí Marocchi não vai desistir. Na Argentina foram necessárias décadas para levar os oficiais militares responsáveis à Justiça. "A Alemanha não deve ser um refúgio para um homem que cometeu crimes contra a humanidade. Kyburg deve enfrentar a punição que merece, também como um sinal para o futuro, pois, caso contrário, esses crimes vão se repetir."
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.