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Estado de DireitoBrasil

Ditadura e memória: o que Brasil pode aprender com Argentina

Alexander Busch | Kolumnist
Alexander Busch
20 de março de 2024

Às vésperas dos 60 anos do início da ditadura militar, presidente Lula barra recordação dos assassinatos e torturas. Na Argentina esse indispensável processamento do passado está bem mais avançado.

Espaço para a Memória e Direitos Humanos na antiga Esma não deixa morrer a memória dos milhares de vítimas da ditadura argentinaFoto: Luis Robayo/AFP/Getty Images

Uma palavra composta do alemão desafia qualquer estudante de línguas: "Vergangenheitsbewältigung" – traduzível como "processamento do passado", no sentido de um ajuste de contas com a história. Na Alemanha, ela se refere sobretudo ao modo como cada nova geração lida com o Holocausto e impede que, a partir do país, volte a ocorrer um crime contra a humanidade dessa ordem.

O processamento do passado é um conceito extremamente atual no Brasil, neste momento, já que em 31 de março de 2024 completam-se 60 anos do golpe militar e do início da ditadura. Porém esse jubileu não é processado, elaborado, mas sim ignorado.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva bloqueou todo tipo de evento governamental que recorde as violações dos direitos humanos nos 21 anos da ditadura militar. Ele declarou: "O que eu não posso é [...] ficar remoendo sempre. [...] Sinceramente, eu não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente.". Além disso: "Em nenhum momento da história os militares foram punidos como estão sendo punidos agora. Em nenhum momento um general foi chamado pela Polícia Federal para prestar depoimento."

Não se sabe como as Forças Armadas vão comemorar sua tomada do poder 60 anos atrás. O Clube Militar do Rio de Janeiro programou um almoço pelo aniversário do golpe, em "memória" do "movimento democrático" de 1964. Fora isso, reina o silêncio nas casernas.

Lula deve bem saber por que evita recordar aos militares o seu infame passado. Possivelmente teme que eles se sintam provocados, e aí... Sim, e aí? O simples ato de levar adiante esse pensamento já é assustador. Pois mostra como as Forças Armadas são poderosas no Brasil, apesar da fracassada tentativa de golpe pela tropa fiel ao ex-presidente Jair Bolsonaro, em 8 de janeiro de 2023.

Até hoje o Exército nunca reconheceu sua responsabilidade pelas violações dos direitos humanos durante a ditadura. Os inquéritos da Comissão da Verdade de 2014 mostraram que os militares assassinaram, torturam e fizeram desaparecer 434 cidadãos, contudo a autoimagem deles segue sendo a de defensores da Constituição.

Até então uma figura apagada, Bolsonaro ficou conhecido no Congresso e iniciou sua campanha eleitoral ao elogiar publicamente um dos torturadores notórios do regime, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, como sendo seu ídolo.

Em 19/03/2014, no Rio de Janeiro,l manifestantes ainda tentavam reproduzir a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", de 1964Foto: Marcelo Sayao/epa/dpa/picture alliance

Argentina acerta contas com passado ditatorial

Na Argentina é diferente. Também lá os militares negaram qualquer responsabilidade pelas violações dos direitos humanos da ditadura de 1976 a 1983. Eles foram absolvidos e anistiados nas duas décadas após a instituição da democracia – mas aí foram chamados a prestar contas.

Iniciaram-se mais de mil ações jurídicas, resultando em numerosas condenações, outros mil processos estão em curso. Altos generais foram encarcerados, mas acima de tudo o ditador Jorge Rafael Videla, que morreu na prisão.

Diversos monumentos na Argentina recordam o passado sombrio. No Parque de la Memoria de Buenos Aires, inaugurado em 2001, estão listados os nomes de 8.717 vítimas do regime. O Espaço para a Memória e Direitos Humanos, situado na antiga Escola de Mecânica da Armada (Esma), contém diversos memoriais contra as violações dos direitos humanos da ditadura.

Entre outros, lá se encontra o antigo Cassino dos Oficiais, onde era mantido um presídio clandestino e o maior centro de torturas da Argentina, no qual foram torturados cerca de 5 mil indivíduos. A maioria foi assassinada em seguida: apenas uns 200 sobreviveram.

Em 2023, o museu na ex-Esma foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco: trata-se de um dos mais opressivos monumentos de advertência aos crimes contra a humanidade, em todo o mundo. No Brasil, poucos conhecem o Memorial da Resistência de São Paulo.

Também na Argentina as Forças Armadas não colaboraram espontaneamente para o processamento do passado: o presidente Nestor Kirchner teve que confiscar as instalações da Esma em 2004 para transformá-las em memorial.

Um ato simbólico ficou especialmente marcante: Kirchner ordenou que, perante os cadetes reunidos, o comandante do Exército em pessoa retirasse da parede os retratos de Videla e de Reynaldo Bignone, presidente argentino de facto de 1982 a 1983 e último da ditadura.

Quanto tempo será ainda preciso esperar até um presidente do Brasil mandar baixar os retratos de Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo? No momento, nada indica que será Lula a tomar tal iniciativa.

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Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

 

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Há mais de 25 anos, Alexander Busch é correspondente de América do Sul para jornais de língua alemã. Ele estudou economia e política e escreve, de Salvador, sobre o papel no Brasil na economia mundial.

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