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Resenhas

Simone de Mello25 de fevereiro de 2007

Publicações recentes estudam o papel da imagem nas diferentes religiões e buscam no passado comum chaves para um diálogo interconfessional.

Foto: AP

Pelo menos desde a polêmica internacional em torno da publicação de caricaturas de Maomé na imprensa dinamarquesa, em 2006, a opinião pública européia atinou para o impacto explosivo que o uso indiscriminado da imagem no Ocidente pode ter sobre sociedades religiosas que mantiveram normas rígidas do que pode ou não ser representado.

Para os círculos teóricos e acadêmicos, no entanto, a relação entre imagem e religião sempre foi objeto de investigação, embora os rumores de um iminente "choque de civilizações" tenham conferido novas nuances ao assunto. Três recentes publicações teóricas alemãs abordam esta questão com diferentes enfoques e objetos de estudo.

Obra aberta e discurso subversivo

Foto: AP

Em Vom Aufstand der Bilder (Sobre a rebelião das imagens), a estudiosa de filosofia judaica Almut Bruckstein recorre à reflexão imagética do judaísmo rabínico, para desvelar o caráter subversivo da arte. Paralelamente à tradição exegética de um Maimónides (1138–1204), convicto de que as imagens apenas deturpavam o conhecimento da verdade religiosa, o judaísmo abarca tradições – como o Midrash e a Cabala – que enxergam na imagem uma mídia reveladora.

Demonstrando o potencial deconstrutivista do pensamento rabínico, Bruckstein transita entre Rembrandt a Chagall, Cântico dos Cânticos e Sabá, Talmude e Maria Madalena, numa série de fragmentos ensaísticos sobre o poder da imagem de afirmar uma mensagem e ao mesmo tempo revertê-la. É nesta tradição exegética do judaísmo, capaz de minar as palavras sagradas e atribuir à verdade religiosa os mais diversos rumos, que a autora enxerga a heterogeneidade necessária para o diálogo intercultural e interconfessional.

Mais do que uma coletânea de divagações sobre a sedução da imagem, o livro de Almut Bruckstein se entende como programa de uma convergência judaico-islâmica, que inspirou a autora a fundar o ha'atelier, em Berlim, uma oficina intercultural de filosofia e arte.

Resistir à polarização de culturas com passado comum

"Uma das conseqüências fatais da crescente instrumentalização da identidade coletiva, religiosa e cultural, é o fato de que existe cada vez menos espaço de contato entre tradições literárias e artísticas árabes, judaicas e européias que são intimamente ligadas e possibilitam uma visão não polarizada das fontes na presença do outro", justifica a pesquisadora sua iniciativa.

No ensaio central do livro, dedicado à pintura Jacó se debate com o Anjo (1660), de Rembrandt, Bruckstein resgata a tradição exegética narrativa do Midrash, para apontar as ambigüidades com que o quadro mina a fonte bíblica. O encontro com o anjo que renomearia Jacó em Israel é lido ao mesmo tempo como luta e abraço, guerra e beijo de irmãos.

Menos interessada em relações históricas do que na correlação hermenêutica e fenomenológica entre arte e exegese, Almut Bruckstein consegue traduzir – através de um intenso interesse associativo – as herméticas referências do judaísmo para um leitor leigo.

Arca da salvação e da perdição

Com cunho mais acadêmico, o livro Sintflut und Gedächtnis (Dilúvio e memória), organizado pelos teóricos Martin Mulsow e Jan Assmann, toma o mito diluviano bíblico como metáfora de ruptura na memória histórica.

Num estudo iconográfico, o estudioso Moshe Barash investiga as representações pictóricas do Dilúvio desde as primeiras imagens cristãs até os esboços de Leonardo da Vinci. Enfocando a passagem da Idade Média para o Renascimento, o autor mostra como a fonte bíblica pode ser interpretada das formas mais diversas e contraditórias conforme a época.

Se as pinturas das catacumbas mostravam a Arca de Noé como antecipação da Igreja, ou seja, um local que pudesse agregar os adeptos perseguidos da nova religião, os primeiros manuscritos iluminados a partir do século 6º passam a representar o Dilúvio como evento apocalíptico a trazer para a humanidade morte e destruição. O motivo medieval da efemeridade e da punição divina dá lugar a uma tragédia humana mais personalizada no Renascimento, tanto nas representações humanizantes de Michelangelo como nos esboços visionários de Leonardo da Vinci.

Esta coletânea de estudos teóricos (em alemão e inglês) oferece um enfoque interdisciplinar, abordando desde as fontes bíblicas até investigações geológicas, com enfoque na elaboração de rupturas históricas através da imagem do Dilúvio.

Imagem de verdade?

O historiador da arte austríaco Hans Belting analisa, em Das echte Bild (A imagem autêntica), os resquícios religiosos na nossa forma de criar e consumir imagens até hoje, destacando a permanente expectativa de que a representação seja verídica.

"Toda sociedade mediatizada pressupõe crença. Isso também se aplica ao cosmo dos signos, que – sem a nossa crença – jamais poderiam denominar aquilo para o que são utilizados", escreve o teórico.

Apesar de qualquer representação ter um caráter convencional, ou seja, baseado num contrato social sobre seu significado, nunca cessou o impulso de querer provar a autenticidade das imagens, ou então de combatê-las, impondo-lhes uma alternativa de maior autoridade. No âmbito religioso, isso se revela com nitidez ainda maior, algo que Belting demonstra em exemplos como o Santo Sudário, a máscara de Jesus; o ícone com seu valor de relíquia; a prioridade da Cruz como signo durante a iconoclastia bizantina; a emancipação da escrita contra a imagem no islamismo.

Essas três publicações mostram o quanto a nossa compreensão da realidade através da imagem, por mais profana que seja, se baseia em pressupostos religiosos geralmente descartados do discurso corrente como eruditos demais. Mas o estudo de questões como essas com certeza poderia relativizar as imagens deformadas que ameaçam levar a um suposto "choque de civilizações".

Almut Sh. Bruckstein – Vom Aufstand der Bilder: Materialien zu Rembrandt und Midrasch (Sobre a rebelião das Imagens: Materiais sobre Rembrandt e Midrash). Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2007; 148p.

Matin Mulsow e Jan Assmann – Sintflut und Gedächtnis: Erinnern und Vergessen des Ursprungs (Dilúvio e memória: Lembrança e esquecimento da origem). Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2006; 414p.

Hans Belting – Das echte Bild: Bildfragen als Glaubenfragen (A imagem autêntica: Questões pictóricas como questões de crença). Munique: C.H. Beck, 2005; 240p.

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