Documenta 14 chama atenção para outras culturas
9 de junho de 2017A 14ª edição Documenta, maior exposição de arte contemporânea do mundo, abre as portas para o público neste sábado (10/06) em Kassel. A festa, no entanto, já teve início desde a última quarta-feira, com milhares de jornalistas, galeristas e público especializado visitando os trabalhos de centenas de artistas, de hoje e do passado, em museus, praças, ruas, clubes, parques e instituições públicas e privadas da cidade do estado de Hessen.
Pela primeira vez desde que foi criada, em 1955, a Documenta acontece durante cem dias em duas cidades distintas: Kassel e Atenas, onde a mostra foi aberta em 8 de abril passado. A capital da Grécia também inspirou o lema da atual exposição: Aprendendo de Atenas.
A principal locação da mostra, o Museu Fridericianum, recebe a coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea de Atenas (EMST). E quem pensa que vai encontrar obras menores de um país em crise vai se surpreender com a qualidade dos trabalhos de artistas gregos e internacionais. Como lembraram os curadores durante a coletiva de imprensa na última quarta-feira no Kongress Palais de Kassel, no século 5° a.C., Atenas também viveu um período de crises e guerras, mas também de intensa força criativa.
Também pela primeira vez em décadas, a Documenta não convidou nenhum artista brasileiro, com exceção de uma retrospectiva da obra do cineasta David Perlov (1930-2013), nascido no Rio de Janeiro, mas radicado em Israel. Por outro lado, a presença latino-americana talvez nunca tenha sido tão evidente quanto neste ano, principalmente de artistas da Argentina, México, Guatemala, Cuba e Colômbia.
Coroando a exposição está o trabalho da artista argentina Marta Minujín, O Paternon de livros, uma reprodução em tamanho real do templo na Acrópole de Atenas, feita em estrutura metálica e revestida de livros que foram proibidos durante a ditadura militar na Argentina. O trabalho mais dispendioso da Documenta, cuja realização só foi possível com a ajuda do governo argentino, também se localiza no mesmo local onde, em 1933, milhares de livros foram queimados pelos nazistas em Kassel.
Aprendendo do próximo
Durante a coletiva de imprensa na última quarta-feira, os curadores da mostra explicitaram detalhadamente o seu conceito: o que se propõe é um recomeço, uma reaprendizagem, é desaprender para (re)aprender, sobretudo uma mudança da perspectiva eurocentrista, um olhar sobre o Outro.
E a proposta do diretor artístico da Documenta, Adam Szymczyk, funcionou. Enquanto a última Bienal de Veneza fracassou em tentar encontrar uma saída para o impasse em que se encontra hoje a arte contemporânea, ou seja, a sua comercialização, a Documenta 14 propõe um cotinuum, um deslocamento, um museu em transição, algo que não se pode pendurar sobre o sofá.
"A única certeza é que nada permanece o mesmo”, disse um dos curadores durante a coletiva de imprensa, acrescentando que é "preciso aprender do próximo para que se possa coexistir”. A Documenta aborda assim a capacidade criativa da incerteza, a desmontagem da ideia do nacionalismo, o tema dos refugiados, a Grécia e a crise.
Os muitos trabalhos históricos também evidenciam como, no passado, artistas retrataram lugares que nunca sequer visitaram. Nem mesmo as fábulas dos Irmãos Grimm, escritas em Kassel, escaparam da atual mostra, pois, segundo os curadores, tais contos de fadas foram utilizados, no século 19, como instrumento para solução de conflitos sociais e, mais do que nunca, são um tema bastante atual.
Presença latino-americana
A lista de artistas latino-americanos presentes na Documenta deste ano é grande, entre eles, o peruano Sergio Zevallos, os cubanos Antonio Vidal e Carlos Garaicoa, a chilena Cecilia Vicuña, os mexicanos Antonio Vega Macotela e Guillermo Galindo, os colombianos Abel Rodríguez e Beatriz González, os argentinos David Lamelas, Oscar Masotta e Marta Minujín, como também a guatemalteca Regina José Galindo.
Em sua perfomance ritualística Sonic Borders 2, o músico mexicano Guillermo Galindo reutiliza objetos deixados pelos migrantes ao longo de sua fuga a caminho da Europa, tirando deles sons e dando, assim, vozes aos refugiados. Em entrevista à DW, Galindo explicou que os conflitos vividos no Hemisfério Sul se assemelham e que os itens que ele recolheu na ilha grega de Lesbos "são os mesmos deixados pelos migrantes no deserto da Califórnia.”
Já a guatemalteca Regina José Galindo denuncia em sua obra a violência e o massacre sobretudo de meninas em seu país. Em sua perfomance El objectivo, ela aborda a postura passiva do observador frente às crises do mundo, denunciando também o fornecimento de armas alemãs para países em crise na América Latina. Em conversa com a Deutsche Welle, Galindo explicou que "o corpo não é somente uma instrumento de resistência diante da comercialização da arte, mas diante da própria existência.”
Já a veterana chilena Cecilia Vicuña sintetiza em sua perfomance, em que envolve os espectadores com tecidos de lã enquanto improvisa cantos ritualísticos, muitos pontos que orientam a atual Documenta, entre eles, a capacidade de amar o próximo.
Uma cultura possível
Vicuña disse à DW estar muito contente com a participação de tantos artistas latino-americanos nesta Documenta. "Algo que deveria ter acontecido há muito tempo”, afirmou, acrescendo que "é maravilhoso que isso esteja acontecendo agora nesta Documenta, porque a atual mostra não tem somente a intenção de ser somente um evento de arte, mas de reorientar a consciência humana para outra cultura, uma cultura possivel de solidariedade e de justiça.
Talvez por sua temporalidade e pela presença do corpo vivo – algo que não se pode pendurar sobre o sofá – as perfomances estejam tão presentes nas atuais exposições de arte. Vale lembrar que foi uma perfomance alemã que venceu o grande prêmio da Bienal de Veneza deste ano.
Neste sábado, a Documenta será inaugurada pela presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, no Museu Fridericianum. Pouco depois a instalação Polemos, um tanque feito de peças de estofados pelo artista grego Andreas Angelidakis, será desmontada e transformada num lounge onde as pessoas possam conversar.