Documentos revelam papel ativo do Brasil na queda de Allende
1 de abril de 2021
Arquivos secretos dos Estados Unidos mostram que regime militar brasileiro se empenhou ativamente para instauração da ditadura no Chile. Participação do país vai além do mito da "marionete de Washington".
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O Brasil se empenhou ativamente para derrubar o presidente chileno Salvador Allende (1970-1973) e elevar o ditador Augusto Pinochet, segundo documentos de inteligência divulgados pelo National Security Archive dos Estados Unidos nesta quarta-feira (31/03).
Por ocasião do 57º aniversário do golpe militar no Brasil, a organização, fundada por acadêmicos e jornalistas investigativos e sediada em Washington, publicou em seu site 12 arquivos antes secretos, que mostram "o esforço do regime brasileiro para subverter a democracia e apoiar a ditadura no Chile".
Entre esses textos está um telegrama enviado em março de 1971 pelo então embaixador do Chile no Brasil, Raúl Rettig, ao Ministério das Relações Exteriores do seu país, com o alarmante título: "Forças Armadas brasileiras possivelmente realizando estudos sobre guerrilheiros sendo introduzidos no Chile".
Várias fontes haviam informado a delegação diplomática que o regime militar brasileiro estaria avaliando como instigar uma insurreição para derrubar o governo de Allende. Segundo o telegrama, classificado na época como "estritamente confidencial", também foi revelada a existência de uma sala de operações no Brasil com mapas da Cordilheira dos Andes, para planejar como se infiltrar.
Em sua mensagem, Rettig prossegue: "As Forças Armadas brasileiras aparentemente enviaram ao Chile vários agentes secretos, que teriam entrado no país como turistas, com a intenção de obter mais informações sobre as possíveis regiões em que um movimento guerrilheiro poderia operar."
O embaixador ressalta que ainda não havia uma data para o início desse "movimento armado". Entretanto os diplomatas chilenos no Brasil estavam sob vigilância, e um deles escutara de um colega brasileiro que a República Andina era agora vista como "mais um país atrás da Cortina de Ferro".
Mito da "marionete de Washington"
O centro americano também cita o livro O Brasil contra a democracia: A ditadura, ou golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul, do jornalista investigativo Roberto Simon, recém-publicado pela editora Companhia das Letras.
A obra reúne arquivos do Brasil, Chile e Estados Unidos, expondo o papel do regime militar brasileiro no golpe de 11 de setembro de 1973, que permitiu ao general Pinochet chegar ao poder, assim como a contribuição do país na repressão no Chile.
Simon destaca que "o Brasil deu apoio direto a um modelo para a ditadura de Pinochet", e que a imagem do regime militar de Brasília como "marionete de Washington" é "um mito, relegando o país a um mero papel subsidiário na região". Na verdade "a ditadura brasileira tinha suas próprias motivações estratégicas, ideológicas, econômicas e de outro tipo para intervir no Chile".
O jornalista brasileiro destaca que os militares do país estabeleceram canais de comunicação com os chilenos opositores de Allende, e que agentes enviados por Brasília tinham vínculos com o grupo paramilitar chileno de extrema direita Patria y Libertad.
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"Trabalho sujo" na América do Sul
Um memorando contido no livro retrata o encontro de dezembro de 1971 entre os presidentes Richard Nixon e general Emílio Garrastazu Médici, na Casa Branca, em que os dois comentam os esforços para derrubar Allende.
O então líder da ditadura brasileira achava que o mandatário chileno deveria ser deposto "pelos mesmos motivos que [João] Goulart [presidente de 1961 a 1964] foi deposto no Brasil", e deixa claro que seu país se empenhava nesse sentido. A derrubada do governo Goulart, nos primeiros dias de abril de 1964, selou o início da ditadura militar que vigorou no país até 1985.
Por sua vez, o mandatário americano frisou a importância de os dois países trabalharem juntos "nesse âmbito" e ofereceu "ajuda discreta" às operações brasileiras contra o governo Allende.
Entre os documentos divulgados, está, ainda, um relatório da CIA sobre reuniões entre oficiais militares brasileiros, em que um deles diz crer que "os EUA obviamente querem que o Brasil 'faça o trabalho sujo' na América do Sul".
av/cn (EFE,AFP,Lusa)
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.