Dois anos após a travessia: o destino de três refugiados
Meyre Brito
27 de abril de 2017
Em 2015, eles eram notícia em todos os jornais do mundo. Faziam parte da onda de refugiados que inundava a Europa. Dois anos depois, três deles falam sobre a fuga e como é a vida em seu novo país.
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Pelas contas da ONU, até o final de 2015, aproximadamente 65 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas, emprego, amigos, familiares e planos para o futuro para fugir de guerras e da perseguição em seus próprios países. Grande parte delas simplesmente acordou um dia e partiu.
Esse dia foi 5 de agosto de 2015 para Hamdi Al Kassar. O jornalista nasceu em Damasco, na Síria, onde trabalhava como apresentador de televisão, tinha apartamento próprio, carro e era – ou melhor, é – casado. Há quase dois anos ele vive na Alemanha, longe da esposa. Diferentemente de muitos que fogem da miséria, o jornalista é um asilado político e, por questões de segurança, pediu que a razão de sua fuga fosse mantida em sigilo.
Ele conta que não foi difícil organizar a fuga. Kassar pagou 4 mil dólares a um traficante de pessoas por uma viagem com destino final em Berlim. Durante a travessia do Mar Mediterrâneo, num barco com capacidade para 20 pessoas, mas que levava 63, o pavor o tomou por completo. Muitos pediam que Deus permitisse que chegassem vivos em terra firme. Aquele vozerio, a agonia, o desespero davam o tom da travessia. "Pensei: se eu morrer agora, do que adianta sofrer? E decidi: não importa o que aconteça, eu vou ser sempre otimista." E adormeceu no barco, no meio do mar.
2015, o ano dos refugiados
Nunca tantas pessoas estiveram em fuga como em 2015. Muitos delas seguiram para a Europa, com o objetivo de chegar à Alemanha ou à Suécia. Confira uma restrospectiva fotográfica do "ano dos refugiados".
Foto: Reuters/O. Teofilovski
Chegada à União Europeia
Esses jovens sírios superaram uma etapa perigosa da sua viagem: eles conseguiram chegar à Grécia e, assim, à União Europeia. O objetivo final, porém, ainda não foi alcançado: eles querem continuar a jornada para o norte, em direção a outros países-membros do bloco. Em 2015, a maioria dos refugiados seguiu para a Alemanha e para a Suécia.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Perigosa travessia do Mediterrâneo
O caminho que eles deixam para trás é extremamente perigoso. Vários barcos com refugiados, nem sempre aptos à navegação, já viraram durante a travessia do Mar Mediterrâneo. Estas crianças sírias e seu pai tiveram sorte: eles foram resgatados por pescadores gregos na costa da ilha de Lesbos, na Grécia.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
A imagem que comoveu o mundo
Aylan Kurdi, de 3 anos, não sobreviveu à fuga. No início de setembro, ele se afogou no Mar Egeu, juntamente com o irmão e a mãe, ao tentar chegar à ilha grega de Kos. A foto do menino sírio, morto na praia de Bodrum, espalhou-se rapidamente pela mídia e chocou pessoas de todo o mundo.
Foto: Reuters/Stringer
Onde as diferenças são visíveis
A ilha grega de Kos, a menos de 5 quilômetros de distância da Turquia continental, é o destino de muitos refugiados. As praias geralmente cheias de turistas servem de ponto de desembarque, como no caso deste grupo de refugiados paquistaneses que chegou à costa da Grécia com um bote de borracha.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Em meio ao caos
Porém, muitos refugiados não conseguem simplesmente seguir viagem quando chegam a Kos. Eles somente podem seguir para o continente após serem registrados. Durante o verão europeu, a situação se agravou quando as autoridades fizeram com que os refugiados esperassem pelo registro num estádio, sob o sol escaldante e sem água.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Um navio para refugiados
Por causa da condições precárias, tumultos eram frequentes na ilha de Kos. Para acalmar a situação, o governo grego fretou um navio, que permaneceu ancorado e foi transformado em alojamento temporário para até 2.500 pessoas e em centro de registro de migrantes.
Foto: Reuters/A. Konstantinidis
"Dilema europeu"
Mais ao norte, na fronteira da Grécia com a Macedônia, policiais não permitiam mais a passagem de pessoas, entre elas crianças aos prantos, separadas de seus pais. Esta foto tirada pelo fotógrafo Georgi Licovski no local, e que mostra o desespero de duas crianças, foi premiada pelo Unicef como a imagem do ano, já que mostra "o dilema e a responsabilidade da Europa".
Foto: picture-alliance/dpa/G. Licovski
Sem conexões para refugiados
No final do verão europeu, Budapeste se transformou em símbolo do fracasso das autoridades e da xenofobia. Milhares de refugiados estavam acampados nas proximidades de uma estação de trem da capital húngara, pois o governo do país os proibira de seguir viagem. Muitos decidiram seguir a pé em direção à Alemanha.
Foto: picture-alliance/dpa/B. Roessler
Fronteiras abertas
Uma decisão na noite de 5 de setembro abriu caminho para os refugiados: a chanceler federal alemã, Angela Merkel, e o chanceler austríaco, Werner Faymann, decidiram simplesmente liberar a continuação da viagem por parte dos migrantes. Como consequência, vários trens especiais e ônibus seguiram para Viena e Munique.
Foto: picture alliance/landov/A. Zavallis
Boas vindas em Munique
No primeiro final de semana de setembro, cerca de 20 mil refugiados chegaram a Munique. Na estação central de trem da capital da Baviera, inúmeros voluntários se reuniram para receber os refugiados com aplausos e lhes fornecer comida e roupas.
Foto: Getty Images/AFP/P. Stollarz
Selfie com a chanceler
Enquanto a chanceler federal Angela Merkel era aplaudida por refugiados e defensores de sua política de asilo, muitos alemães se voltavam contra a política migratória. "Se tivermos de pedir desculpas por mostrar uma face acolhedora em situações de emergência, então este não é mais o meu país", respondeu a chanceler. A frase "Nós vamos conseguir" se tornou o mantra de Merkel.
Foto: Reuters/F. Bensch
Histórias na bagagem
No final de setembro, a polícia federal alemã divulgou uma imagem comovente: o presente que uma menina refugiada deu a um policial da cidade alemã de Passau. O desenho mostra o horror que vários migrantes vivenciaram e o quão felizes eles estavam por, finalmente, estarem em um local seguro.
Foto: picture-alliance/dpa/Bundespolizei
O drama continua
Até o final de outubro, mais de 750 mil refugiados haviam chegado à Alemanha. Mas o fluxo não parava. Sobrecarregados, os países da chamada Rota dos Bálcãs decidiram fechar suas fronteiras. Apenas sírios, afegãos e iraquianos estavam autorizados a passar. Em protesto, migrantes de outros países chegaram a costurar seus lábios.
Foto: picture-alliance/dpa/G. Licovski
Sem fim à vista
"Ajude-nos, Alemanha" está escrito em cartazes de manifestantes na fronteira com a Macedônia. Na Europa, o inverno se aproxima, e milhares de pessoas, entre elas crianças, estão presas nas fronteiras. Enquanto isso, até mesmo a Suécia retomou o controle temporário de fronteiras. Em 2016, o fluxo de refugiados deverá continuar.
Foto: Reuters/O. Teofilovski
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Como no filme A vida é bela, de Roberto Begnini – no qual o protagonista finge estar participando de um jogo para que o filho não perceba que eles estão num campo de concentração nazista –, Kassar, um privilegiado entre refugiados, colocou na cabeça que era um turista desbravando a Europa. Em Belgrado, o sírio de 28 anos passou duas noites num hotel quatro estrelas, com jacuzzi e sauna. Ao chegar a Berlim, o abrigo estava lotado. Recebeu então um cheque de 50 euros e foi procurar um hotel, onde morou por um ano, até que seu pedido de asilo fosse aceito. Hoje o sírio tem permissão para morar e trabalhar na Alemanha.
Mas a vida não é um filme. Na Alemanha, é difícil para um jornalista que fala árabe e inglês arrumar emprego. Kassar, que tinha uma carreira promissora em seu país, teve que aprender a falar e escrever em outra língua. Faz oito meses que ele estuda alemão num curso de integração. Kassar poderia se sentir apenas mais um entre 1 milhão de refugiados que vivem na Alemanha, mas desde aquele dia no barco da agonia, ele sorri diante dos problemas. Ainda não encontrou um emprego, mas fez um estágio na emissora alemã RBB e é voluntário na Anistia Internacional.
Apesar de tudo, para o sírio, que está prestes a reencontrar a esposa, às vezes até parece que a vida foi rascunhada por um roteirista. Foi assim que Kassar se sentiu ao ser convidado para entrevistar a chanceler alemã Angela Merkel, no início de abril: como se estivesse num filme. "De repente, fui um dos escolhidos para entrevistar a chanceler alemã em seu vídeo semanal. Eu estava muito nervoso, mas depois que ela conversou comigo, a pressão baixou. A mensagem foi que nós procurássemos ser curiosos, para aprender. Mas Merkel também pediu que os alemães continuassem se abrindo para essa questão, que é de todos."
Kassad também quis deixar uma mensagem, em alemão, às pessoas que agora são chamadas de refugiados: "Quando eu cheguei na Alemanha, não foi fácil. Burocracia, cultura, povo e idioma diferentes. Mas tenho que ficar aqui até a guerra acabar, para que não apenas eu, mas todos nós, refugiados, possamos voltar para nossas casas. Enquanto isso, me esforço para entender esta sociedade. Aprendi o idioma, fiz muitas amizades, trabalho muito, mas sempre e, acima de tudo, sou positivo. Não importa o que enfrentemos, temos de ser positivos."
Um questão de sorte
O dia de partir para a afegã Bibigol Mosavi foi 7 de agosto de 2015. Ela teve mais sorte do que Kassar: veio com marido, irmão e os dois filhos, um de 10 e outro de 12 anos.
Nascida na província de Ghazni, Mosavi conta que nunca se sentiu segura. Um dia, ela e a mãe estavam sentadas na laje de casa quando foram atacadas por flechas. Bem distante daquela realidade, a família conseguiu permissão para ficar na Alemanha ainda numa época em que a cota de asilos concedidos a afegãos era de 70,6%. Hoje, este número caiu para 46,7% dos requerentes.
Bibigol também fez a travessia do Mediterrâneo. Ela conta que 60 pessoas foram socadas em um barco, levando chicotadas para se encolherem a fim de que todos pudessem embarcar. Em alto mar, o motor do barco parou de funcionar por 40 minutos. Eles tentavam tirar água do barco com seus sapatos. Uma mulher engoliu tanta água que ficou inconsciente, mas por sorte não morreu. Homens pulavam do barco desesperados. Vendo que não sobreviveriam, voltavam. A família Mosavi estava sentada na borda do barco. Se a morte viesse, eles seriam os primeiros.
A mulher se sente livre na Alemanha, ao andar de bicicleta. A primeira coisa que percebeu quando chegou foi que a lei vale para todos. " Enfim, temos paz e vivemos sem medo." A afegã está estudando todo dia para realizar o sonho de se tornar educadora. Ela tem a ajuda da organização humanitária alemã Help, instituição que apoia pessoas no mundo todo. Com a crise dos refugiados, a Help agora também assiste essas pessoas a encontrarem um emprego na Alemanha.
Permissão para ser livre
Para Sajad Jadidi, o dia da fuga foi 22 de setembro de 2015. O jovem de 19 anos é o único entre os entrevistados que ainda não tem permissão para ficar na Alemanha. A resposta deve chegar a qualquer momento, mas suas chances atualmente são pequenas. Ele é iraniano. Seu país não está em guerra, como a Síria, mas, segundo dados da Anistia Internacional, o Irã foi responsável por 55% das execuções no mundo.
Fronteiras fechadas e inverno agravam crise de refugiados
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Ele mostrou o mapa em seu celular: foram mais de 30 dias cruzando a rota dos Bálcãs – fechada em março de 2016 – para chegar à Alemanha. De caminhão, a pé, de carro, de ônibus, de barco, de navio. Um navio que, nas contas de Jadidi, levava mais ou menos 2 mil pessoas e voltava, a cada 12 horas, para recolher mais.
Enquanto espera a decisão do Departamento de Imigração e Refugiados da Alemanha, Jadidi estuda numa escola em Bonn, recebe 340 euros do governo alemão por mês e mora em um abrigo para refugiados. Ele joga futebol e vôlei duas vezes por semana, participa do teatro na escola e faz trabalho voluntário em uma igreja que oferece curso de integração.
Ele sente saudades da mãe, mas não pode voltar ao Irã. "Eu fazia propaganda contra o presidente." Jadidi não quer mais saber de religião, mas acredita que exista algo como destino. Em poucas semanas, o jovem iraniano vai saber o que o governo alemão decidiu sobre o seu futuro.
Como começou a crise de refugiados na Europa
Da escalada da violência no Médio Oriente e na África a crises sociais e políticas na Europa, veja como a União Europeia busca solucionar seus problemas.
Foto: picture-alliance/dpa
Fugindo da guerra e da pobreza
No fim de 2014, com a guerra na Síria entrando no quarto ano e o chamado "Estado Islâmico" avançando no norte do país, o êxodo de cidadãos sírios se intensificou. Ao mesmo tempo pessoas fugiam da violência e da pobreza em outros países, como Iraque, Afeganistão, Eritreia, Somália, Níger e Kosovo.
Foto: picture-alliance/dpa
Em busca de refúgio nas fronteiras
A partir de 2011, um grande número de sírios passou a se reunir em campos de refugiados nas fronteiras com a Turquia, o Líbano e a Jordânia. Em 2015, os campos estavam superlotados. A falta de oportunidade de trabalho e escolas levou cada vez mais pessoas a buscarem asilo em países distantes.
Foto: picture-alliance/dpa
Uma longa jornada a pé
Estima-se que 1,5 milhão de pessoas se deslocaram da Grécia para a Europa Ocidental em 2015 através da chamada "rota dos Bálcãs" . O Acordo de Schengen, que permite viajar sem passaporte em grande parte da União Europeia (UE), foi posto em xeque à medida que os refugiados rumavam para as nações europeias mais ricas.
Foto: Getty Images/M. Cardy
Desespero no mar
Dezenas de milhares de refugiados também se arriscaram na perigosa jornada pelo Mar Mediterrâneo em barcos superlotados. Em abril de 2015, 800 pessoas de várias nacionalidades se afogaram quando um barco que saiu da Líbia naufragou na costa italiana. Seguiram-se outras tragédias. Até o fim daquele ano, cerca de 4 mil refugiados teriam morrido ao tentar a travessia do norte da África para a Europa.
Foto: Reuters/D. Zammit Lupi
Pressão nas fronteiras
Países ao longo da fronteira externa da União Europeia enfrentaram grandes problemas para lidar com o enorme número de pessoas que chegavam. Foram erguidas cercas nas fronteiras da Hungria, da Eslovênia, da Macedônia e da Áustria. As leis de asilo político foram reforçadas, e vários países da área de Schengen introduziram controles temporários nas fronteiras.
Foto: picture-alliance/epa/B. Mohai
Fechando as portas abertas
A catastrófica situação dos refugiados nos países vizinhos levou a chanceler federal alemã, Angela Merkel, a abrir as fronteiras. Os críticos da "política de portas abertas" de Merkel a acusaram de agravar a situação e encorajar ainda mais pessoas a embarcarem na perigosa viagem à Europa. Em setembro de 2016, também a Alemanha introduziu controles temporários na sua fronteira com a Áustria.
Foto: Reuters/F. Bensch
Acordo com a Turquia
No início de 2016, UE e Turquia assinaram um acordo prevendo que refugiados que chegam à Grécia podem ser enviados de volta para a Turquia. O acordo foi criticado por grupos de direitos humanos. Após o Parlamento Europeu votar pela suspensão temporária das negociações sobre a adesão da Turquia à UE, em novembro de 2016 a Turquia ameaçou abrir as fronteiras para os refugiados em direção à Europa.
Foto: Getty Images/AFP/A. Altan
Que perspectivas?
Com o acirramento do clima anti-imigração na Europa, os governos ainda buscam soluções para lidar com a crise de refugiados. As tentativas de introduzir cotas para distribuí-los entre os países da UE em grande parte falharam. Por outro lado, não há indícios de que os conflitos nas regiões de onde eles vêm estejam chegando ao fim, e o número de mortos na travessia pelo mar continua aumentando.