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Dois anos depois, América Latina segue neutra sobre Ucrânia

24 de fevereiro de 2024

Maioria dos países do continente prefere não tomar posição. Já no âmbito econômico, nações se adaptaram ao cenário global e até conseguem lucrar com conflito, como no caso do Brasil.

Zelenski abraça Milei, que usa faixa presidencial durante sua posse. Ao fundo, Gabriel Boric observa.
Zelenski e Milei em Buenos Aires, observados pelo chileno Boric: presidente argentino quer cúpula regional de apoio a KievFoto: Gustavo Garello/AP/dpa/picture alliance

No segundo ano da invasão da Ucrânia pela Rússia, a maioria dos países da América Latina continua sem assumir posição quanto ao conflito. Por sua vez, a vitória do presidente Javier Milei na Argentina representou uma mudança na neutralidade do país. O novo governo deu fortes demonstrações de apoio à Ucrânia e busca ampliar o suporte, mas analistas veem espaço limitado, especialmente sem perspectivas de ter o Brasil na aliança. Enquanto isso, o forte choque que o conflito gerou no mercado de commodities ainda repercute, mas impulsionou adaptações e novas oportunidades na região.

Em dezembro de 2023, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, fez sua primeira viagem à América Latina desde o começo da guerra. Na ocasião, o líder esteve presente na posse de Milei, que fez uma série de declarações em apoio à Ucrânia, e anunciou que planeja uma cúpula regional para angariar apoio à Kiev.

A possibilidade já havia sido ventilada em um encontro entre o ucraniano e o presidente do Chile, Gabriel Boric, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro. O chileno se notabilizou como um dos grandes defensores da Ucrânia na região. Por sua vez, a esperada ausência do Brasil é vista como um sinal de que os planos podem ter eficácia limitada.

"É improvável que Lula participe ou coopere com tal plano, não só por causa das tensões com a Argentina, mas porque é pouco provável que coloque em risco o bom relacionamento do Brasil com a Rússia”, avaliam os pesquisadores da consultoria Eurasia Group Luciano Sigalov e Julia Thomson. Com a falta de apoio do Brasil, além das prováveis ​​dificuldades em alinhar os governos latino-americanos com opiniões divergentes sobre o assunto, é pouco provável que a cúpula alcance resultados importantes, projetam os analistas.

Na visão deles, a eleição de Milei não mudará a posição da América Latina no conflito, já que a Argentina não é um ator geopolítico relevante. "A principal preocupação de Milei é estabilizar uma economia em dificuldades, e ele irá concentrar-se mais nisso do que nas relações externas”, avaliam.

Laços entre Brasil e Rússia

"Para um grande ator como o Brasil, a importância da sua relação com a Rússia está ligada à sua dependência das importações de petróleo e fertilizantes, que são vitais para o seu setor do agronegócio – 28% dos fertilizantes do Brasil são provenientes da Rússia”, apontam os pesquisadores.

Em dezembro, a afirmação de Lula de que Vladimir Putin seria convidado para a cúpula do G20, que será realizada em novembro no Rio de Janeiro, gerou polêmica e críticas. Putin é alvo de um mandado de prisão expedido em março de 2022 pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Como o Brasil é signatário da Corte, o presidente russo poderia ser detido ao desembarcar em território brasileiro. Nos últimos meses, Putin chegou a evitar compromissos internacionais devido aos riscos envolvidos.

Putin e Lula: brasileiro aceitou convite para ir a cúpula do Brics na RússiaFoto: Tatyana Barybina/TASS/picture alliance | Peter Dejong/AP/picture alliance

Ainda no âmbito do G20, Lula se reuniu nesta semana com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, que esteve no Brasil em razão do encontro de chanceleres do bloco. O ministro reforçou convite para que o brasileiro vá à Rússia em outubro, em razão da cúpula do Brics, o que foi aceito pelo presidente. Na ocasião, Lula voltou a demonstrar disposição para auxiliar em uma solução pacífica para o conflito.

Dias antes, em uma conferência de imprensa na Etiópia, Lula questionou as acusações contra o governo russo por conta da morte do opositor Alexei Navalny. O presidente pediu para que não houvesse conclusões precipitadas. "Eu acho que é uma questão de bom senso. Se a morte está sob suspeita, nós temos que primeiro fazer uma investigação para saber do que o cidadão morreu”, declarou. 

Ainda na América do Sul, Lavrov visitou a Venezuela, onde reforçou os laços com o governo de Nicolás Maduro, seu principal parceiro regional.

A Rússia enfrentou alguns revezes, como um acordo militar entre Equador e Estados Unidos, que desagradou Moscou. Como retaliação, as importações de banana do país sul-americano foram suspensas no começo fevereiro, algo que foi revertido dias depois. Segundo os pesquisadores da Eurasia, os laços comerciais entre a Rússia e a América Latina são muito menos profundos em comparação com a relação entre a região e a China, por exemplo, o que faz com que a pressão econômica seja limitada.

Reconfiguração de mercados

A guerra teve um forte impacto inicial nos mercados de commodities, o que levou à disparada da inflação na região. No entanto, passado o choque, os países se readaptaram ao cenário global, e, em alguns casos, até obtiveram vantagens com o novo quadro. O Brasil, por exemplo, passou a importar uma parte significativa dos combustíveis que a União Europeia deixou de adquirir da Rússia, e se tornou o principal comprador de diesel russo.

Além disso, a busca por alternativas energéticas impulsionou explorações na região, como no caso de Vaca Muerta, na Argentina, zona produtora de gás natural, que passou a ser cobiçada por países europeus devido às restrições às importações russas. Além das fontes tradicionais, energias alternativas, com destaque para o hidrogênio verde, também passaram a ser buscadas por uma série de países, como a Alemanha, visando a transição energética.

Em dezembro, Lula e o chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, assinaram um acordo de cooperação para desenvolver energias renováveis e hidrogênio verde, quando o brasileiro cumpria agenda em Berlim.

No campo dos alimentos, que sofreram fortemente a alta dos preços com a guerra, houve alguma normalização no mercado, e a inflação chegou a registrar recuos. No caso do índice mensal da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), janeiro de 2024 registrou uma queda de 1,0% com relação ao mês anterior. Já na comparação anual, a queda foi de 10,4%. O índice teve seus recordes em 2022, seguindo justamente a invasão da Ucrânia.

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