Se nenhum governo tiver coragem de bater de frente com militares, continuaremos pagando por décadas pensão para milhares de mulheres só porque elas nasceram filhas de pais que servem nas Forças Armadas.
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"Pensão de filhas". Só esse nome já é antiquado e totalmente machista. Falo do famoso benefício vitalício pago às filhas de militares, um benefício criado nos anos 1960 e que beneficia só as filhas de militares, já que, claro, mulheres "não trabalham" e são frágeis (sic). Para tornar tudo mais antigo, a prioridade no recebimento do benefício é das filhas solteiras. Isso é uma coisa tão século 19 que faz a gente pensar que as meninas cujos pais trabalham nas Forças Armadas recebem também um dote, tudo custeado por dinheiro público.
Essa pensão foi extinta em 2001. Mas calma aí. Milhares de mulheres ainda a recebem, já que, segundo a negociação feita na época, o benefício continuou válido para as filhas de militares que entraram nas Forças Armadas até o ano 2000 e optaram por pagar uma alíquota extra de 1,5 % sobre a remuneração. Funciona assim: na falta dos pais, as moças recebem uma "mesada" custeada com dinheiro dos contribuintes pelo resto da vida. E quem paga somos nós, que pagamos imposto.
Esse é um dos muitos privilégios que o sistema de aposentadoria dos militares tem em relação aos cidadãos comuns, o que faz com que as aposentadorias da categoria pesem 17 vezes mais para a Previdência do que as dos civis que se aposentam pelo INSS.
Na semana passada, quando o governo anunciou uma série de mudanças na previdência dos militares, que fazem parte do pacote de cortes de gastos, muita gente achou que esse benefício seria finalmente totalmente extinto, mas não foi.
De acordo com jornalistas políticos, nas rodadas de negociações com o governo, os representantes dos militares teriam batido o pé sobre a manutenção dessa pensão. Esse "capricho", essa "segurança para as moças", não é apenas uma lei retrógrada, mas um gasto de milhões para os cofres públicos. E que, se não houver uma mudança mais radical, vai continuar sendo uma despesa alta para o Estado por muito tempo.
É só fazer umas contas simples para ver o tamanho do rombo e do absurdo. Se alguém entrou no exército com 18 anos em 2000, essa pessoa tem hoje 42 anos. Vamos supor que ele tenha uma filha hoje. Esse bebê de 2024 vai ter direito ao benefício enquanto viver. Como a expectativa de vida só cresce, podemos supor que se a lei não mudar um dia, até 2.100, pelo menos, o Estado brasileiro ainda vai pagar aposentadoria para essas filhas privilegiadas.
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Mudança requer coragem
Se nenhum governo tiver coragem de bater de frente com os militares (que sempre são tratados com privilégios, já que todos tememos que eles "se rebelem"), continuaremos pagando por décadas pensão para milhares de mulheres só porque elas nasceram filhas de pais que servem nas Forças Armadas mesmo com o benefício tendo sido extinto em 2001. Como pode?
Mas também não podemos dizer que nada mudou para melhor. De acordo com as medidas anunciadas pelo governo, as filhas de militares que foram expulsos das Forças Armadas não receberão mais pensão.
Isso significa, por exemplo, que se os militares que participaram de um plano de golpe que, segundo a Polícia Federal, pretendia matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, forem expulsos, suas filhas não terão direito ao benefício. Que alívio. Mas, para ser sincera, eu fico chocada de pensar que familiares de militares expulsos continuam, até hoje, recebendo uma boa pensão.
Outra novidade: não será mais possível transferir pensões. Essa é outra particularidade da pensão dos militares que eu não imaginava que existia. Há até hoje a possibilidade que, com a morte de um dependente, a pensão seja transferida para outro. Por exemplo, com a morte de uma filha dependente, ela poderia transferir a pensão para outro irmão. Essas são coisas que surpreendem nós, mortais, e que parecem da época das Capitanias Hereditárias.
Também não consigo ignorar o fato de que filhas de torturadores e comandantes da ditadura militar continuam ganhando dinheiro do Estado, pago com nossos impostos, como se fossem premiadas por terem pais criminosos. Até quando?
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.
Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.