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E se Ágatha Felix fosse branca e de bairro nobre?

Nina Lemos
Nina Lemos
12 de novembro de 2024

Júri absolveu PM apontado como autor de disparo por considerar que ele não teve intenção de matar a menina. E se uma bala atingisse uma criança branca na saída da escola? O culpado ficaria impune? Duvido.

Protesto após morte de Ágatha Félix, em setembro de 2019Foto: picture-alliance/NurPhoto/F. Viera

O crime, pelo menos por um tempo, chocou o Brasil. Há cinco anos, no dia 20 de setembro de 2019, a menina Ágatha Vitoria Félix, então com 8 anos, voltava de um passeio com a mãe quando a van onde estavam foi atingida por um disparo efetuado pela Polícia Militar no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Ela chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital, vítima de um tiro nas costas.

A imagem de Ágatha sorridente, vestida de Mulher Maravilha, rodou o país. A menina, com todo futuro e alegria interrompidos dessa maneira brutal e inaceitável, virou um dos símbolos da luta contra a violência que atinge as populações negras e de favelas no Brasil, lugares onde crianças morrerem (algumas assassinadas pela polícia, ou seja, pelo Estado que deveria cuidar delas) é algo quase rotineiro. Uma barbárie.

Depois de sua morte, nas redes sociais e em manifestações, familiares, ativistas e cidadãos comuns que não aceitam o horror passaram a pedir "justiça para Ágatha Félix". O certo, claro, seria que ela não tivesse sido morta, mas como o horror aconteceu, que pelo menos seu assassino fosse penalizado. Não foi o que ocorreu.

Em júri popular realizado na semana passada, o PM Rodrigo José de Matos Soares foi apontado como o autor do disparo que matou Ágatha, mas foi absolvido. Os jurados consideraram que o PM não teve intenção de matar. Ou seja, o entendimento foi de que a polícia pode simplesmente sair atirando nas favelas e, no caso de uma uma criança estar no caminho e ser morta, se não tiver sido a intenção, pode ficar por isso mesmo. O Ministério Público vai recorrer da sentença.

Infelizmente, Ágatha não é um caso isolado. Dados do levantamento Pele Alvo, divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança na semana passada, apontam que 4.025 pessoas foram mortas por agentes de segurança do Estado em 2023. Dessas, 2.782 eram negras. Os dados revelam ainda que a polícia matou 243 crianças e adolescentes de 12 a 17 anos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública com dados de 2023, negros têm quase quatro vezes mais chances que brancos de serem mortos pela polícia.

Uma das vítimas mais recentes dessa barbárie contra negros e moradores das periferias é o menino Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, morto na última terça-feira (05/11). Ele brincava em frente à casa de uma prima, no Morro São Bento, em Santos (litoral de SP), quando foi atingido por um tiro no abdômen. Ele foi levado a um hospital, onde morreu. Em entrevista coletiva, o Coronel Émerson Massera, porta-voz da Polícia Militar, afirmou que o disparo "provavelmente" partiu da arma de um policial militar.

Será que o responsável pela morte de Ryan vai pagar por isso? Difícil acreditar em justiça nesse caso. Nem no enterro do filho a família de Ryan teve paz. Segundo relatos publicados pela mídia brasileira, PMs foram ao cemitério, houve bate-boca e um clima de intimidação contra amigos e familiares.

Será que esses horrores teriam acontecido se Ágatha e Ryan fossem brancos e morassem em bairros de classe média? Eu duvido. E se fossem, um escândalo seria feito. Só para falar o óbvio: qualquer assassinato de criança, ainda mais por agentes do Estado, deveria causar ondas de indignação e parar cidades e até o país, independentemente da cor da pele, de onde essa criança more e de sua classe social.

Mas tento esse exercício de imaginação de uma tragédia que espero por tudo que não aconteça. No Rio de Janeiro, por exemplo, quase todos os bairros da zona sul (a área mais nobre da cidade) são rodeados por favelas, e todo mundo conhece barulho de tiro. E se uma bala atingisse e matasse uma criança branca na saída da escola? O culpado ficaria impune? A polícia apareceria no velório para intimidar os familiares? Duvido.

A justiça deveria valer para todos. E crianças precisam parar de ser mortas.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.

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