Edição comentada de "Minha luta" de Hitler promete polêmica
Sarah Hofmann / Silke Bartlick (fc)27 de dezembro de 2015
Escrito cai em domínio público, e edição explicada por historiadores estará à venda a partir de 1º de janeiro de 2016. Mas que riscos oferece esse panfleto em tempos de Pegida e xenofobia contra imigrantes?
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Para alguns, é um cenário de pesadelo; para outros, a tão esperada conclusão de um árduo projeto: a partir de 1º de janeiro de 2016, o libelo de Adolf Hitler Minha luta(Mein Kampf) estará à venda nas livrarias alemãs. Especificamente: uma edição crítica comentada, na qual historiadores renomados colocam o texto no contexto da época e o explicam para os leitores de hoje.
Ao contrário da edição original, da capa não constam nem a foto de Hitler nem o famigerado título em macabras letras góticas. A nova publicação, em dois volumes, é sóbria como um livro didático.
No entanto, seu conteúdo ainda agita os ânimos na Alemanha, tendo sido tema de longas discussões nos últimos anos, tanto no Bundestag (câmara baixa do Parlamento) como no Conselho Central dos Judeus ou na Associação dos Historiadores Alemães.
Os direitos autorais de Minha luta para toda a Europa, detidos pelo estado da Baviera, prescrevem 70 anos após a morte do autor (Como se sabe, Hitler se suicidou em 30 de abril de 1945, ao reconhecer que não tinha como vencer a Segunda Guerra Mundial). Assim que 2015 acabar, portanto, o escrito cai em domínio público. Isso significa que, ao menos em tese, qualquer um pode imprimir, distribuir e vender novas edições.
Até agora, apenas uma editora ousou aproveitar a liberalização: o Instituto de História Contemporânea (IZF) de Munique, cujos especialistas começaram em 2009 a elaborar uma versão histórica comentada.
"Não seria bom, para não dizer irresponsável, deixar esse texto circular de forma mais ou menos livre e estar disponível por toda parte", disse à DW o diretor do instituto, Andreas Wirsching, sobre a motivação da equipe. "Trata-se de esclarecimento: esta edição contém muitas informações novas, ajudando a entender melhor o texto, trecho por trecho, e, idealmente, também a se ter uma melhor noção da história do nazismo."
Um libelo e seus mitos
Embora na Alemanha muito se fale sobre Minha luta, quase não há saber fundamentado a respeito: mesmo sendo o único documento de cunho autobiográfico do líder do nazismo, faltam análises mais aprofundadas sobre a origem, estrutura e, principalmente, sobre as repercussões desse panfleto em sua época.
Até hoje se mantém a lenda do "best-seller não lido". Supostamente milhões o teriam comprado ou recebido de presente, mas a maioria não o leu – e, portanto, não poderia também saber que crimes Hitler planejava. Essa era a estratégia de justificação de muitos alemães depois da Segunda Guerra.
Contrapondo-se a esse mito, Wirsching afirma que, a partir de Minha luta, é possível deduzir que papel Hitler de fato desempenhava em numerosos temas. Este é o caso, por exemplo, da ideia de uma guerra pelo assim chamado "espaço vital" (Lebensraum) no Leste Europeu – concretizada na invasão da Polônia, em 1939, e da União Soviética, dois anos mais tarde.
O mesmo se aplica aos temas antissemitismo, esterilização compulsória e eutanásia. Todos esses crimes, que mais tarde seriam cometidos, já são delineados no libelo de Hitler publicado entre 1924 (primeiro volume) e 1927 (segundo volume).
Assim, segundo Wirsching, os comentários na edição de 2016 teriam funções múltiplas. Eles esclarecem sobre as constelações, personagens e contextos históricos, mas também se trata – o que talvez seja o mais importante – "de interromper Hitler, que aqui fala quase que ininterruptamente, como o demagogo que é. Ou seja, de desmascarar suas meias-verdades, alusões com fim de agitação popular, suas mentiras deslavadas – das quais há um bom número."
Além disso, trata-se de traçar conexões com os acontecimentos históricos futuros, já que "muito do que Hitler escreve em Minha luta se transforma numa realidade brutal após 1933", ano em que os nazistas chegariam ao poder na Alemanha.
Baviera apoia, mas se retira do projeto
De início, o instituto contava para o projeto com o apoio financeiro da Baviera, atual detentora dos direitos autorais e editoriais de Minha luta. Após a Segunda Guerra Mundial, os Aliados haviam transferido para esse estado alemão esse direitos, até então em mãos da editora Eher, de propriedade do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), de Hitler. Desde então o governo bávaro tem usado suas prerrogativas legais para impedir reimpressões – e assim, segundo argumenta, a propagação da ideologia nazista.
Em determinado momento, porém, a Baviera suspendeu seus subsídios. O principal motivo foram as críticas de Israel e da então-presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, Charlotte Knobloch. "O escrito de Hitler está permeado de ódio e desprezo humano e, segundo especialistas, constitui crime de incitação ao ódio", afirmou ela na época.
Wirsching diz compreender e concordar com o argumento de que se deve respeitar a dignidade das vítimas. "E nós também fazemos isso. Mesmo assim, na época não foi nada fácil para nós enfrentar essa guinada de 180 graus", que forçou o IZF a procurar novos patrocinadores para o projeto.
Quem vai ler Minha luta?
Diante da prescrição iminente dos direitos autorais, no entanto, uma outra questão se impõe, além de se deve-se publicá-lo e como: quem vai ler Minha luta?
Serão os assim chamados "cidadãos enfurecidos", que povoam as passeatas do Pegida (acrônimo em alemão para "Europeus patriotas contra a islamização do Ocidente"), esse movimento cujos slogans xenófobos são atualmente motivo de preocupação para tantos alemães? Gente que porta cartazes dizendo "Lügenpresse" ("imprensa da mentira"), expressão proveniente do tempo do nazismo? Ou mesmo funcionários do partido de extrema direita NPD, cuja legenda está sob ameaça de novo processo de proibição em 2016?
Há tempo longos trechos do manifesto de Hitler estão disponíveis gratuitamente na internet, sem que a Justiça alemã possa fazer muita coisa para impedir isso. Em plataformas de internet que operam legalmente no país, como o eBay, antiquários oferecem edições históricas da publicação. Lê-lo nunca foi proibido, somente publicá-lo.
"Em sentido restrito, o livro Minha luta não representa um perigo iminente", opina Wirsching. Mas ele tem um forte efeito simbólico. "É claro que, lamentavelmente, antissemitismo e racismo são temas que não perderam totalmente o significado, hoje em dia. Não se pode descartar totalmente que uma ou outra citação do livro seja assimilada."
Impossível prever quem lerá, no futuro, o libelo de Hitler: o que haverá é a nova possibilidade de lê-lo criticamente numa edição comentada. Aliás, continua passível de persecução judicial todo aquele que fizer citações de Minha luta sem atentar para o contexto histórico: a acusação de incitação ao ódio segue valendo.
Cronologia da Segunda Guerra Mundial
Em 1° de setembro de 1939, as Forças Armadas alemãs atacaram a Polônia, sob ordens de Hitler. A guerra que então começava duraria até 8 de maio de 1945, deixando um saldo até hoje sem paralelo de morte e destruição.
Foto: U.S. Army Air Forces/AP/picture alliance
1939
No dia 1° de setembro de 1939, as Forças Armadas alemãs atacaram a Polônia sob ordens de Adolf Hitler – supostamente em represália a atentados poloneses, embora isso tenha sido uma mentira de guerra. No dia 3 de setembro, França e Reino Unido, que eram aliadas da Polônia, declararam guerra à Alemanha, mas não intervieram logo no conflito.
1939
A Polônia mal pôde oferecer resistência às bem equipadas tropas alemãs – em cinco semanas, os soldados poloneses foram derrotados. No dia 17 de setembro, o Exército Vermelho ocupou o leste da Polônia – em conformidade com um acordo secreto fechado entre o Império Alemão e a União Soviética apenas uma semana antes da invasão.
Foto: AP
1940
Em abril de 1940, a Alemanha invadiu a Dinamarca e usou o país como base até a Noruega. De lá vinham as matérias-primas vitais para a indústria bélica alemã. No intuito de interromper o fornecimento desses produtos, o Reino Unido enviou soldados ao território norueguês. Porém, em junho, os aliados capitularam na Noruega. Nesse meio tempo, a Campanha Ocidental já havia começado.
1940
Durante oito meses, soldados alemães e franceses se enfrentaram no oeste, protegidos por trincheiras. Até que, em 10 de maio, a Alemanha atacou Holanda, Luxemburgo e Bélgica, que estavam neutros. Esses territórios foram ocupados em poucos dias e, assim, os alemães contornaram a defesa francesa.
Foto: picture alliance/akg-images
1940
Os alemães pegaram as tropas francesas de surpresa e avançaram rapidamente até Paris, que foi ocupada em meados de junho. No dia 22, a França se rendeu e foi dividida: uma parte ocupada pela Alemanha de Hitler e a outra, a "França de Vichy", administrada por um governo fantoche de influência nazista e sob a liderança do general Pétain.
Foto: ullstein bild/SZ Photo
1940
Hitler decide voltar suas ambições para o Reino Unido. Seus bombardeios transformaram cidades como Coventry em cinzas e ruínas. Ao mesmo tempo, aviões de caça travavam uma batalha aérea sobre o Canal da Mancha, entre o norte da França e o sul da Inglaterra. Os britânicos venceram e, na primavera europeia de 1941, a ofensiva alemã estava consideravelmente enfraquecida.
Foto: Getty Images
1941
Após a derrota na "Batalha aérea pela Inglaterra", Hitler se voltou para o sul e posteriormente para o leste. Ele mandou invadir o norte da África, os Bálcãs e a União Soviética. Enquanto isso, outros Estados entravam na liga das Potências do Eixo, formada por Alemanha, Itália e Japão.
1941
Na primavera europeia, depois de ter abandonado novamente o Pacto Tripartite, Hitler mandou invadir a Iugoslávia. Nem a Grécia, onde unidades inglesas estavam estacionadas, foi poupada pelas Forças Armadas alemãs. Até então, uma das maiores operações aeroterrestres tinha sido o ataque de paraquedistas alemães a Creta em maio de 1941.
Foto: picture-alliance/akg-images
1941
O ataque dos alemães à União Soviética no dia 22 de junho de 1941 ficou conhecido como Operação Barbarossa. Nas palavras da propaganda alemã, o objetivo da campanha de invasão da União Soviética era uma "ampliação do espaço vital no Oriente". Na verdade, tratava-se de uma campanha de extermínio, na qual os soldados alemães cometeram uma série de crimes de guerra.
Foto: Getty Images
1942
No começo, o Exército Vermelho apresentou pouca resistência. Aos poucos, no entanto, o avanço das tropas alemãs chegou a um impasse na Rússia. Fortes perdas e rotas inseguras de abastecimento enfraqueceram o ataque alemão. Hitler dominava quase toda a Europa, parte do norte da África e da União Soviética. Mas no ano de 1942 houve uma virada.
1942
A Itália havia entrado na guerra em junho de 1940, como aliada da Alemanha, e atacado tropas britânicas no norte da África. Na primavera de 1941, Hitler enviou o Afrikakorps como reforço. Por muito tempo, os britânicos recuaram – até a segunda Batalha de El Alamein, no outono de 1942. Ali a situação mudou, e os alemães bateram em retirada. O Afrikakorps se rendeu no dia 13 de maio de 1943.
Foto: Getty Images
1942
Atrás do fronte leste, o regime de Hitler construiu campos de extermínio, como Auschwitz-Birkenau. Mais de seis milhões de pessoas foram vítimas do fanatismo racial dos nazistas. Elas foram fuziladas, mortas com gás, morreram de fome ou de doenças. Milhares de soldados alemães e da SS estiveram envolvidos nestes crimes contra a humanidade.
Foto: Yad Vashem Photo Archives
1943
Já em seu quarto ano, a guerra sofreu uma virada. No leste, o Exército Vermelho partiu para o contra-ataque. Vindos do sul, os aliados desembarcaram na Itália. A Alemanha e seus parceiros do Eixo começaram a perder terreno.
1943
Stalingrado virou o símbolo da virada. Desde julho de 1942, o Sexto Exército alemão tentava capturar a cidade russa. Em fevereiro, quando os comandantes desistiram da luta inútil, cerca de 700 mil pessoas já haviam morrido nesta única batalha – na maioria soldados do Exército Vermelho. Essa derrota abalou a moral de muitos alemães.
Foto: picture-alliance/dpa
1943
Após a rendição das tropas alemãs e italianas na África, o caminho ficou livre para que os Aliados lutassem contra as potências do Eixo no continente europeu. No dia 10 de julho, aconteceu o desembarque na Sicília. No grupo dos Aliados estavam também os Estados Unidos, a quem Hitler havia declarado guerra em 1941.
Foto: picture alliance/akg
1943
Em setembro, os Aliados desembarcaram na Península Itálica. O governo em Roma acertou um armistício com os Aliados, o que levou Hitler a ocupar a Itália. Enquanto os Aliados travavam uma lenta batalha no sul, as tropas de Hitler espalhavam medo pelo resto do país.
No leste, o Exército Vermelho expulsou os invasores cada vez mais para longe da Alemanha. Iugoslávia, Romênia, Bulgária, Polônia... uma nação após a outra caía nas mãos dos soviéticos. Os Aliados ocidentais intensificaram a ofensiva e desembarcaram na França, primeiramente no norte e logo em seguida no sul.
1944
Nas primeiras horas da manhã do dia 6 de junho, as tropas de Estados Unidos,Reino Unido, Canadá e outros países desembarcaram nas praias da Normandia, no norte da França. A liderança militar alemã tinha previsto que haveria um desembarque – mas um pouco mais a leste. Os Aliados ocidentais puderam expandir a penetração nas fileiras inimigas e forçar a rendição de Hitler a partir do oeste.
Foto: Getty Images
1944
No dia 15 de agosto, os Aliados deram início a mais um contra-ataque no sul da França e desembarcaram na Provença. As tropas no norte e no sul avançaram rapidamente e, no dia 25 de agosto, Paris foi libertada da ocupação alemã. No final de outubro, Aachen se tornou a primeira grande cidade alemã a ser ocupada pelos Aliados.
Foto: Getty Images
1944
No inverno europeu de 1944/45, as Forças Armadas alemãs reuniram suas tropas no oeste e passaram para a contra-ofensiva em Ardenne. Mas, após contratempos no oeste, os Aliados puderam vencer a resistência e avançar inexoravelmente até o "Grande Império Alemão" – a partir do leste e do oeste.
Foto: imago/United Archives
1945
No dia 8 de maio de 1945, os nazistas se renderam incondicionalmente. Para escapar da captura, Hitler se suicidou com um tiro no dia 30 de abril. Após seis anos de guerra, grande parte da Europa estava sob entulhos. Quase 50 milhões de pessoas morreram no continente durante a Segunda Guerra Mundial. Em maio de 1945, o marechal de campo Wilhelm Keitel assinava a ratificação da rendição em Berlim.